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D’ “O Capital” ao “Kamasutra”*

17 Outubro, 2008

Durante os 55 dias em que Aldo Moro esteve sequestrado pelas Brigadas Vermelhas os raptores submeteram-no a um julgamento revolucionário. Todos nós imaginamos que factos como este devem ocorrer em masmorras lúgubres, fortalezas mais ou menos inexpugnáveis ou locais remotos. Contudo não foi nada disso que aconteceu entre 16 de Março e 9 de Maio de 1978: Aldo Moro esteve simplesmente fechado num apartamento de Roma, igual a milhares de outros e com vizinhos tão curiosos como quaisquer outros. No universo demencial que se instala entre as paredes daquela casa decorre para lá do julgamento, cujo veredicto todos sabem que só pode ser a morte para Moro, uma conversa sobre ideologia e livros. Os sequestradores pretendiam que o primeiro-ministro italiano lesse autores marxistas para se esclarecer. Como é óbvio Moro já os tinha lido.
Há 30 anos não só se raptavam e executavam primeiros-ministros na Europa como as diversas interpretações d’ “O Capital” marcavam a agenda. Hoje não sei se alguém lê Marx” com o interesse que Aldo Moro e o seu carcereiro Mario Moretti lhe dedicaram, mas em termos de agenda “O Capital” deu lugar ao “Kamasutra”.
Em Portugal essa troca tornou-se particularmente evidente na passada semana quando a Assembleia da República resolveu ocupar-se do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa matéria gerou entusiasmo, entre deputados e jornalistas, entusiasmo esse que contrastou vivamente quer com a indiferença da população perante o assunto quer a com a pasmaceira fatalista que impera na mesma AR nos momentos em que se discutem os rumos da política ou a crise económica.
Afinal os ideólogos do “Kamasutra” são tão intolerantes quanto os d’ “O Capital” mas já não querem mudar o sistema. Longe disso pois vivem nele melhor que ninguém. Aliás têm um fastio de aristocrata recente pelo povo. Os sindicatos causam-lhes neurastenia. Os problemas da insegurança irritam-nos como um quadro fora de sítio. E a educação é o seu desfile de moda e tendências. Já não disparam sobre quem quer que seja, embora perdoem muito facilmente quem o faz mas precisam de alimentar as polémicas que os mantenham no lugar das pretéritas vanguardas. E é aí que chegamos às causas fracturantes. Qualquer coisa serve desde que sirva a necessidade de polémicas por parte de quem as patrocina. Algo que os ideólogos do “Kamasutra” aprenderam com os d’ “O Capital” foi a importância do esterótipo. Aqueles que não estão de acordo com eles são inevitavelmente reaccionários e trogloditas. Quanto aos seus protegidos do momento, no caso os homossexuais, acabam transformados em personagens de propaganda ao melhor estilo da desaparecida revista “Vida Soviética”: são sempre felizes, vão amar-se para sempre e se por acaso têm filhos as criancinhas repetem para os jornalistas que adoram ter duas mães ou dois pais. Para que a felicidade seja total só falta a certidão de casamento. Das polémicas existentes nos diversos movimentos homossexuais sobre este e outros assuntos também não se fala. Os homossexuais da causa fracturante são seres unidimensionais como convém à propaganda.
E para lá da propaganda o que sobra? Qual a expressão que estes casamentos poderão vir a ter em Portugal? Em Espanha dois anos após a aprovação da lei tinham-se celebrado 2.776 matrimónios entre homossexuais. Poucos sem dúvida. E aqueles que no campo oposto querem fazer deste assunto uma causa também não são muitos: o Fórum da Família com a estrutura da poderosa Igreja Católica espanhola por trás apresentou um milhão de assinaturas a exigir um referendo sobre estes casamentos. Menos de metade daquelas que foram apresentadas pouco depois por um simples cidadão sem quaisquer hábitos destas lides, o pai de Mari Luz, assassinada por um pedófilo reincidente, a pedir um endurecimento das penas para os autores de crimes sexuais: 2.300.000 espanhóis apoiaram a sua petição, provavelmente a que mais apoio recebeu em Espanha.
Não existe nada de estranho nesta disparidade numérica: independentemente daquilo que se pensa sobre a homossexualidade a verdade é que nas últimas décadas o casamento foi perdendo importância. Quando um dos protagonistas da performance em frente à AR declarou que vai continuar a ter vida adiada por casa dum papel parece alguém que nos fala dum túnel do tempo passado. Na verdade, os portugueses casam-se cada vez menos: os avós viúvos já perceberam que têm grandes vantagens em juntar-se e não em casar-se pois tal apego ao formalismo só os levaria a perder a reforma do seu defunto/a. Quanto aos netos as experiências dos divórcios da geração dos seus pais e a paixão do fisco pelos celibatários leva-os a não associar automaticamente certidões a felicidade. Tanto mais que para satisfazer o desejo de conciliação entre o melhor dos dois estados civis e também para contornar a questão dos casamentos homossexuais os governos têm alargado o âmbito e as implicações das uniões de facto. Pese a simpatia nacional pela figura das uniões de facto parece-me não só prepotente como fonte de inúmeros problemas esta opção paternalista do Estado em fazer de conta que se casa quem realmente não se casou. Daí que, na matéria do casamento entre pessoas do mesmo sexo, me reveja num projecto na linha do que foi apresentado pelos Verdes. Exactamente aquele que aceita o casamento entre pessoas do mesmo sexo mas exclui aos casais homossexuais a possibilidade da adopção. Porque a questão que hoje se coloca já não é tanto o direito a casar mas sim quais os modelos de família que o Estado deve apoiar e em que medida é que as crianças, sobretudo as institucionalizadas, devem ser usadas para apoiar uns modelos e não outros. Como explica a própria documentação divulgada por alguns movimentos gay: “Queremos uma sociedade que reconheça a diversidade de modelos familiares com iguais oportunidades perante a lei. Porque a família é uma escolha livre dos indivíduos, lugar para a partilha de afectos e de vidas em comum e porque o Estado não pode privilegiar nenhum modelo em detrimento de todos os outros.”
Entre essa diversidade de modelos de família contam-se os homossexuais e os polígamos, um modelo de família que ao contrário da homossexual, até visa fundamentalmente a reprodução e se pauta por ser estável e muitíssimo tradicional. Vamos entregar crianças para adopção às muitas famílias polígamas? Para não impor um modelo sexista optamos por falar de progenitores como faz a actual lei espanhola para não referir o masculino pai e a feminina mãe? Promover em pé de igualdade todos estes modelos “de partilha de afectos e de vidas em comum” nas aulas de Educação Cívica?
Os promotores das causas fracturantes não deviam esquecer que enquanto, em Roma, Mario Moretti falava sobre marxismo com Aldo Moro, na Alemanha os filhos dos membros do já extinto Baader Meinhof começavam a não esquecer o que tinham vivido nos jardins de infância os seus pais tinham abolido as discriminações e os preconceitos da família burguesa. O resultado dessas memórias foi tão chocante quanto a imagem do cadáver de Aldo Moro atirado para a mala dum carro.  (*PÚBLICO, 13 DE OUTUBRO)

19 comentários leave one →
  1. 17 Outubro, 2008 10:47

    Eu prefiro o “Kamasutra”

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  2. Anónimo permalink
    17 Outubro, 2008 10:56

    O Kamasutra é japones.

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  3. Anónimo permalink
    17 Outubro, 2008 10:57

    os ideólogos do “Kamasutra”

    e esses são quem? O tamagoshi?

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  4. 17 Outubro, 2008 11:17

    É.
    Há quem diga que aquela posição de andar do Marx (Groucho), foi um torcicolo que apanhou ao ler a obra de Vatsyayana.

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  5. caramelo permalink
    17 Outubro, 2008 11:48

    O Kamasutra? Ó senhora, o que tem a defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo a ver com o Kamasutra? Isto hoje está divertido por aqui. É o João Miranda com um post tremendista a falar em ditadura a propósito de um grupito de professores a cantar umas coisas, é a Helena a falar do Kamasutra e a fazer comparações com a morte do Aldo Moro, a propósito da defesa do casamento entre homossexuais… bendito país este em que são estas questões e eventos que provocam tanto medo. O mundo inveja-nos.

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  6. caramelo permalink
    17 Outubro, 2008 11:50

    Repararam no pormenor do cartaz? Um comuna com uma criança ao colo… hhmmm, você é boa nisto, Helena 😉

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  7. 17 Outubro, 2008 11:55

    “na Alemanha os filhos dos membros do já extinto Baader Meinhof começavam a não esquecer o que tinham vivido nos jardins de infância os seus pais tinham abolido as discriminações e os preconceitos da família burguesa. O resultado dessas memórias foi tão chocante quanto a imagem do cadáver de Aldo Moro atirado para a mala dum carro.”

    Eu leio muito mal francês, mas no segundo link (“chocante”) não vejo NENHUMA referencia aos filhos dos membros do Baader-Meinhoff – quanto ao primeiro (“resultado dessas memórias”), fica retido no filtro do computador.

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  8. Anónimo permalink
    17 Outubro, 2008 12:02

    Mas porque será que se o não interessa a ninguém, que é desporpositado discutir na AR nunca mais se cansam de falar dele neste blog?

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  9. 17 Outubro, 2008 12:03

    Gostei da analogia e, pela argumentação, compreendo bem o escopo. E concordo.

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  10. caramelo permalink
    17 Outubro, 2008 12:27

    já agora, Helena, na sequência do meu comentário 6, o que você fez ao postar o cartaz foi uma manipulação de imagem e ideias que em nada fica a dever aos velhos e saudosos métodos da máquina de propaganda soviética.

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  11. 17 Outubro, 2008 14:24

    “Porque a questão que hoje se coloca já não é tanto o direito a casar mas sim (outra cena)…”

    E eu a pensar que a questão que se colocava era, tipo, mesmo essa. Ainda bem que há gente a pensar por mim.

    (E a Helena pode dizer à vontade que eu não percebi que você defende a tese que o casamento já não é o que era e que as pessoas já não precisam de um papel e tal e por isso “o casamento” já não é o tema central da discussão sobre o casamento. Mas engana-se, é mesmo. Enquanto não for dado/reconhecido/degradado [escolha o que quiser] o direito ao casamento todas as flores da discussão aguardam vez.)

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  12. Miguel permalink
    17 Outubro, 2008 16:35

    “Aqueles que não estão de acordo com eles são inevitavelmente reaccionários e trogloditas.”
    Portantos…
    Não são patriotas.
    Fazem parte do eixo do mal.
    O W tinha razão.

    Nuquiler power, word…

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  13. José permalink
    17 Outubro, 2008 17:06

    Helena:

    V. anda a glosar um assunto e um tema malditos. A pedofilia envergonhada, tem pano para mangas, neste país, mas são poucos, muito poucos os jornalistas que se atrevem a escrever sobre isso.

    Por uma razão que se apresenta, agora, óbvia: há pessoas da nossa vida social e política, com peso institucional ( sim, sim) e político, envolvidas nesses escândalos.

    Aqueles que se vêem de algum modo prestes a chamuscar as barbas, já as tem posto de molho. Veremos se a água lhes basta.

    Este é um assunto escabroso até certo ponto, mas com um significado tremendamente irónico: os ballet rose de antanho, um dia destes são vingados.

    O que- repete-se- seria de uma ironia extrema.

    Tirando isso, os exemplos sobre os rouges, rossos e rotes, têm o seu quê de pitoresco, até ao momento em que estas considerações entram em linha de conta.
    E para além de Moretti há o Cursio.

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  14. vasco permalink
    17 Outubro, 2008 18:24

    “Poucos sem dúvida. E aqueles que no campo oposto querem fazer deste assunto uma causa também não são muitos: o Fórum da Família com a estrutura da poderosa Igreja Católica espanhola por trás apresentou um milhão de assinaturas a exigir um referendo sobre estes casamentos. Menos de metade daquelas que foram apresentadas pouco depois por um simples cidadão sem quaisquer hábitos destas lides, o pai de Mari Luz, assassinada por um pedófilo reincidente, a pedir um endurecimento das penas para os autores de crimes sexuais: 2.300.000 espanhóis apoiaram a sua petição, provavelmente a que mais apoio recebeu em Espanha.”

    Esta referência a um pedófilo reincidente é um mimo.

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  15. 17 Outubro, 2008 19:57

    Quer-me parecer que a Helena vai ficar surpreendida, não com os que ainda lêem o Capital, mas com os que, não tarda nada, o estão a ler desenfreadamente. Quanto ao Kamasutra, tem pouco que ver com o assunto. O outro.

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  16. 20 Outubro, 2008 11:11

    Definitivamente, abolição do estado civil JÁ !

    Mas não deixa de ser curioso ver a tão liberal Helena Matos dizer que “a questão que hoje se coloca já não é tanto o direito a casar mas sim quais os modelos de família que o Estado deve apoiar e em que medida é que as crianças, sobretudo as institucionalizadas, devem ser usadas para apoiar uns modelos e não outros”.

    Que frase absolutamente estatista ! Um liberal consequente deveria afirmar que o Estado não tem que fazer quaisquer considerações sobre os modelos de família !

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  17. fcl permalink
    20 Outubro, 2008 16:33

    O helena matos,
    você é mesmo parva ou faz os possíveis por parecê-lo??

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  18. C.R. permalink
    21 Outubro, 2008 17:29

    Parabéns!

    Estou mesmo a ver a declaração do Comité Nobel, aquando da atribuição do respectivo prémio, para a Literatura: “Pelo realismo mágico patente …, o Comité decidiu…”.

    Depois, as adaptações ao cinema pelo tipo que levou Tolkien ao grande ecrã, Jackson something.

    A coisa promete…

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