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o melhor do que aí vem não será melhor do que o pior do que aí está

24 Junho, 2016
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20160227_LDD001_facebookComeço por dizer que considero o projecto comunitário a mais generosa e nobre realização política dos nossos tempos, que foi um privilégio ter vivido nela e beneficiado dela, e que vejo o resultado do referendo inglês como uma tragédia de consequências incalculáveis. Apesar da retórica contra-corrente e dos exercícios múltiplos de história alternativa, a verdade é que, graças a ele, a Europa comunitária viveu, de 51 até aos dias de hoje, um extenso período de paz, desenvolvimento e prosperidade, de que todos beneficiámos, inclusivamente os seus críticos mais violentos. Isto, para mim, é o essencial.

Como qualquer realização humana, o processo comunitário é naturalmente sujeito a inúmeras críticas. Infelizmente, quando vejo que elas unem a extrema-esquerda e a extrema-direita, sou levado a desconfiar. É que é próprio da metodologia dos extremos realçar o negativo, para excitar as consciências e disso tirar dividendos rasteiros, obscurecendo e denegrindo o que é positivo. E, inequivocamente, apesar dos muitos aspectos negativos da integração europeia, as suas vantagens são-lhe infinitamente superiores, embora raramente sejam referidas quando é debatida sob o efeito das paixões.

Não pretendo fazer aqui a história desse processo, mas gostaria de realçar dois ou três aspectos que me parecem, nesta hora verdadeiramente dramática, não deverem ser esquecidos.

O primeiro, que a construção comunitária foi sempre um processo assumido de integração económica e política, e não um mero processo de cooperação internacional. O que foi criado em 51, e reforçado em 57, tinha por objectivo a partilha comum de soberania nacional em instituições supranacionais, e não apenas o derrube de fronteiras alfandegárias entre os estados-membros para a livre circulação de mercadorias. Um Mercado Comum, objectivo liberal que os tratados sempre enunciaram, não se fica pela livre circulação de mercadorias, mas de pessoas, capitais, bens e serviços. Isso não se conseguiria pela criação de um Zollverein geograficamente alargado (embora o Zollverein tenha proporcionado a unificação da Alemanha…), mas pela criação de condições para que as mercadorias sejam acompanhadas pelas pessoas e pelos capitais.

O segundo, que este processo deveria prosseguir pela integração gradualista e horizontal entre os estados-membros e os cidadãos através de «pequenos passos» (Jean Monnet), acreditando no chamado efeito de «spillover», segundo o qual os efeitos benéficos da partilha de espaços de soberania conduziriam a um estreitamento natural da integração, mas sem dirigismos ou imposições verticais de decisões políticas fundamentais e estruturantes. Infelizmente, não foi isso que aconteceu em Maastricht.

O terceiro e último é que a integração económica é sempre política, como é óbvio, e que isso também foi sempre assumido desde o início do processo. Naturalmente, a integração política não é sinónimo de unificação ou de perda integral de soberania, mas também não foi isso que aconteceu na Europa, apesar dos muitos erros cometidos ao longo dos anos.

É chegado, então, o momento de dizer que considero a integração comunitária europeia o único projecto verdadeiramente liberal que conheço na História (e, aqui, a «História» vai em maiúsculas…), e, perdoem-me a sobranceria, escuso-me a explicar porquê. As evidências são claríssimas e falam por si mesmas. Obviamente que este projecto teve inúmeras derivas burocratizantes e construtivistas, mas os liberais têm de começar a aprender que (felizmente) vivemos em sociedades plurais e que não pensamos todos da mesma maneira. Por consequência, é natural que a ordem comunitária tenha reflectido, também, aquilo de que não gostamos. Mas, honra lhe seja feita, o seu acervo fundamental – a liberdade de comércio, de circulação de pessoas, capitais e mercadorias, a defesa dos princípios liberais da propriedade e da iniciativa privada – permaneceu sempre intocado, e disso todos beneficiámos. Em Portugal, por exemplo, foi graças à União Europeia que a parte marxista da nossa Constituição Económica foi seriamente afectada. Um enorme ganho de que somos devedores.

O que correu mal, então, para se ter criado uma forte corrente europeia contrária à União? Infelizmente, e ao contrário daquilo que muitos hoje festejam, o que o Brexit e o êxito das Le Pens dessa Europa fora reflectem é o reforço dos motivos que levaram aos insucessos da União Europeia e não a sua diminuição. À esquerda e à direita, quando se critica «esta» Europa é porque ela não «resolveu» o problema do desemprego e das crises económicas de alguns dos seus estados-membros. Mas não é a ela que compete enfrentar esse problema, mas às pessoas dos estados-membros. O que se pede, então, não é mais liberdade económica, mas mais socialismo. E é esta demagogia que tem parcialmente triunfado nas nossas sociedades e que, em boa medida, deu ontem a vitória ao Brexit. Infelizmente, muitos liberais parecem contentes com isso.

Uma última palavra para dizer que, obviamente, a precipitação para a União Europeia de Maastricht, em 91, foi um erro, porque prematura, e que o Euro seria um erro sempre e em quaisquer circunstâncias. O receio francês (e inglês, diga-se…) da reunificação alemã causou uma aceleração contra-natura de um processo de integração que eventualmente lá teria chegado por outras vias e com melhores condições. Mas o peso da História é sempre determinante, e a memória, ao tempo ainda muito fresca, do que uma Alemanha unificada fizera num passado recente, levou a um salto artificial de construtivismo político, que hoje todos pagaremos. A União Europeia acelerou artificialmente a integração política de duas maneiras: com o aumento dos espaços da soberania integrada e com a generalização da co-decisão. Isto criou um poder de direito e de facto para o directório da União, ao qual faltou uma verdadeira Constituição política que lhe fixasse as regras fundamentais e os limites. Infelizmente, muitos liberais rejubilaram com o fracasso do Tratado Constitucional, esquecendo-se do verdadeiro sentido e alcance de uma Constituição. Mas, uma vez feita a asneira, a questão sobre o futuro da União Europeia tem sido mal colocada. Ela deveria ser esta: temos a certeza de que destruir Maastricht nos levará ao que existia antes dele, admitindo que fosse melhor do que aquilo que lhe sucedeu?

Dito doutro modo: há mundos melhores e piores para se viver. E tenho as maiores dúvidas de que aquele que se avizinha para a Europa dos próximos anos seja melhor do que o que conhecemos nas últimas décadas.

31 comentários leave one →
  1. Juromenha permalink
    24 Junho, 2016 11:06

    Para os mais distraídos : a “União” europeia teve o seu fim em Novembro de 89 (sec.passado…).

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  2. 24 Junho, 2016 11:06

    este post faz-me lembrar os posts de deslumbramento com o Brasil há uns anos atrás… ::)

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    • rui a. permalink*
      24 Junho, 2016 11:37

      E lembra muito bem, porque, apesar de tudo, o Brasil de hoje está bem melhor do que aquele que conheci (bem) há 20 anos. A História faz-se assim: de avanços e recuos…

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    • 24 Junho, 2016 12:09

      Tem toda a razão rui , o Brasil está muito melhor. É só avanços e sempre a subir…

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    • 24 Junho, 2016 12:25

      e recuos…

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      • rui a. permalink*
        24 Junho, 2016 12:56

        Belos gráficos. Vc., ao menos, conhece o país? E conheceu-o há 20 anos?

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      • 24 Junho, 2016 13:57

        Os gráficos são “belos” ou expõem a realidade que parece querer omitir ? Faz me lembrar o deslumbramento socialista com a maravilhosa situação portuguesa antes do colapso.
        É curioso a sua questão, os comunistas perguntam-me o mesmo em relação à união sovietica e a cuba…

        Sei que que os marxistas tem alergia aos “factos”, e reparo que os “liberais” também já começam a sofrer do mesmo mal. Sobretudo quando passaram a andar de mãos dadas com eles nas negociatas. Portanto perdoe-me por voltar a lhe ferir a vista com outro belo gráfico, do Brasil sempre a subir.

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      • rui a. permalink*
        24 Junho, 2016 15:06

        Olhe que um gráfico sobre a taxa de homicídios contabilizados a partir de 1980 é, no Brasil, de uma utilidade extraordinária.

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      • rui a. permalink*
        24 Junho, 2016 15:07

        Ademais, se consultar os dados da última década em São Paulo verá que, com excepção dos 2 últimos anos, que desconheço, a queda de homicídios foi flagrante.

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  3. LTR permalink
    24 Junho, 2016 11:10

    Isto está tudo muito bem, mas podemos reduzir o problema a uma simples vertente: há na UE países fartos do amamentar países como Portugal.

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  4. castanheira antigo permalink
    24 Junho, 2016 11:31

    Inglaterra,de longa tradição democrática, fora da União (sovietica ) Europeia , será ainda mais importante para a paz na Europa , como se pode constatar pela Historia .
    A deriva burocrática e anti democrática europeia só tem paralelo com a antiga união soviética , pelo que se desenha , a nível europeu , o ressurgimento de partidos de extrema esquerda ou extrema direita , pois os partidos ditos liberais foram absorvidos e dominados pelo establishment que impôs muitos regulamentos e muitos impostos e um intervencionismo que sendo excessivo , parece ainda pouco na optica dos extremismos .

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    • 24 Junho, 2016 12:08

      exacto . a diarreia legislativa da UE é uma auténtica camisa de forças. muito emprego destruiu. muito encargo inútil trouxe.
      e nem se percebe a preocupação com a Inglaterra : se a UE é tão boa é só esperar que os ingleses mortos de fome peçam de joelhos daqui por uns 4 anos para reentrar 🙂

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  5. Manuel permalink
    24 Junho, 2016 12:03

    Boa análise. Não vivi de forma interessada este tema. Para mim é evidente que a desconstrução da UE está em curso e vamos voltar à Europa das Nações, para perceber o futuro, basta acompanhar a evolução dos últimos 2000 anos. Agora pensem nesta realidade: com base nos tratados europeus e a troco de subsídios, destruímos sectores fundamentais como o primário(pesca e agricultura), secundário (indústria). Neste momento, além do turismo que nos resta? Quando homens como Adriano Moreira alertavam para esta realidade, ninguém dava ouvidos, em breve, nem os nossos emigrantes têm futuro.

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  6. s.p. permalink
    24 Junho, 2016 12:26

    “o êxito das Le Pens dessa Europa fora ” E o êxito das Catarinas Martins, dos Podemos e dos Syrizas,? Esses não contam? Estão autorizados pelas lojas?

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    • Almeida permalink
      24 Junho, 2016 13:37

      Por acaso está recordado de que o Partido Trabalhista mais à esquerda das últimas décadas, votou pelo Não?

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  7. Almeida permalink
    24 Junho, 2016 13:24

    Por que motivo não foi publicado o meu comentário a este post?

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    • Manuel permalink
      24 Junho, 2016 14:27

      Olha, o nosso colega Procópio foi vítima da censura e também fez “leave” ao blog. Não sei a razão? Mas o blog é dos autores.

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  8. Nuno permalink
    24 Junho, 2016 14:32

    Parabens rui. Do melhor que li hoje sobre o assunto. Subscrevo integralmente.

    “Considero o projecto comunitário a mais generosa e nobre realização política dos nossos tempos, e foi um privilégio ter vivido nela e beneficiado dela.”

    Lamento profundamente que esta (nossa) mensagem não tenha colhido em Inglaterra e Gales.

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  9. Maria Viegas permalink
    24 Junho, 2016 14:36

    “À esquerda e à direita, quando se critica «esta» Europa é porque ela não «resolveu» o problema do desemprego e das crises económicas de alguns dos seus estados-membros. Mas não é a ela que compete enfrentar esse problema, mas às pessoas dos estados-membros.”

    Acredita mesmo nisto que escreveu? Pois é! À Europa não lhe “compete” resolver problemas; “compete-lhe” criá-los. Você é um lírico Rui A.

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  10. 24 Junho, 2016 16:41

    O exposto por Rui a. é apenas expressão do conhecido e elitista/eurocrata ‘Método Monnet’ [adoptado e posto em prática por Delors – sempre muito endeusado pelas Elites domésticas…], salientado por Wolfgang Wessels (Professor titular da Cátedra Jean Monnet da Universidade de Colónia) em “Jean Monnet – Person and Method”:
    • «As decisões de elite consensuais não são orientados para o cidadão. Os cidadãos e os parlamentos nacionais são deixados de fora. Referendos não pertencem ao método Monnet.»
    Os elogiados, por Rui a., «pequenos passos» (Jean Monnet) foram a táctica usada pelos Iluminados de modo que só havia o inevitável: “Não há alternativa”…:
    «As nações da Europa devem ser conduzidas na direcção de um super-Estado sem que as pessoas percebam o que se está a passar. Isto pode ser conseguido através de sucessivos passos que, sob a capa de um propósito económico irreversível, deverão originar uma federação», Jean Monnet (“Pai Fundador” da União Europeia, numa carta para um amigo – 30 de Abril de 1952).
    • Acontece que os Iluminados (ou as Vanguardas da Classe Proletária…) – deixam sempre Sombras…
    O Iluminado Monnet teve em De Gaulle um realista, no conhecido “Duelo do Século” [http://www.voltairenet.org/IMG/pdf/CC-2012_14.pdf].
    Parece que os Ingleses não querem o Iluminismo criado pelos Iluminados Monnet e Delors, que com os «pequenos passos» criaram uma Eurocracia Iluminada…
    A visão liberal-clássica fundadora e predominante após a II Guerra foi – em «pequenos passos»… – substituída pela visão intervencionista e socialista dos habituais Iluminados – visão esta prevalecente na Europa Eurocrata Iluminada dominate. Que nada tem a ver a visão realista de Gaulle, Maurice Schuman e Konrad Adenauer.
    Em «pequenos passos» está o Socialismo Iluminista a Venezuelar…

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  11. Rafael Ortega permalink
    24 Junho, 2016 18:30

    Com liberais destes não são precisos socialistas…

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  12. Artista Português permalink
    24 Junho, 2016 22:43

    Quem se lembra dos fundos estruturais e sobretudo a sua aplicação em Portugal? Foi talvez a primeira manifestação de como a CEE foi responsável pela importação do fenómeno da corrupção. Era tanto dinheiro que, para o gastar, tiveram de desmontar o mecanismo de controlo dos dinheiros públicos que era feito pelo Tribunal de Contas. Depois disso, veio a bola de neve e com ela o regabofe. Hoje, graças à CEE e ao processo europeu, este sítio mal frequentado tornou-se um dos maiores centros de corrupção e lavagem de dinheiro em toda a Europa. Obrigado CEE! Nalguma coisa havíamos de estar na linha da frente. RIP

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  13. Arlindo da Costa permalink
    25 Junho, 2016 01:43

    Tenho a certeza que o futuro será muito melhor do que esta merda da Europa «unida».
    Os meus parabéns aos ilhéus britânicos.
    Jamais se submeterão à servidão dos nazi-comunas dos boches!

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  14. 25 Junho, 2016 06:27

    A democracia é exigente e os cidadãos nem sempre assumem isso.Olhando para a campanha dos brexit, vemos factualmente maioria de mentiras , reais. Mas vão pagar isso, basta eles irem preenchendo as colunas de deve e haver , e falamos daqui a dois anos. pagar com lingua de palmo. Nessa altura já ninguem se lembrará da garotice e tentativa de engenharia eleitoral do palerma amigo do Murdock chamado Camarão.

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  15. atom permalink
    25 Junho, 2016 14:25

    A CE pode implementar um projeto de economia liberal ou um projeto de economia Keynesiana desde que o faça dentro das regras democráticas. O que aconteceu foi a imposição de projetos saídos de mentes iluminadas, sem a recorrer à massada de consultar os eleitores. Reparem que os Estados Unidos, teem uma economia liberal com a concordância do seu eleitorado. Qualquer cedência de soberania deve ser referendada para que possa ser aceita de uma forma duradoura. Senão o processo, seja ele qual for, terá a longo prazo uma reversão. Eu estou convencido que em Portugal, se tivesse referendado a entrada no Euro o resultado seria favorável. Como o referendo não foi feito, agora já tenho dúvidas que fosse hoje seria aprovado. No futuro um referendo acerca do mesmo assunto dará resposta negativa. Não vale a pena fazer as coisas nas dos eleitores…

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  16. anti-comuna permalink
    27 Junho, 2016 09:46

    Na mouche, caro Rui. Na Mouche:

    “É chegado, então, o momento de dizer que considero a integração comunitária europeia o único projecto verdadeiramente liberal que conheço na História (e, aqui, a «História» vai em maiúsculas…), e, perdoem-me a sobranceria, escuso-me a explicar porquê. As evidências são claríssimas e falam por si mesmas. ”

    E o resto são cantigas. 🙂

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    • anti-comuna permalink
      27 Junho, 2016 09:54

      E é precisamente por ser um projecto Liberal, no verdadeiro sentido do termo, que gera e gerou tantos inimigos.

      Desde a extrema-esquerda aos saudosistas da antiga URSS, agora lliderados pelo Putin, a UE representa aquilo que verdadeiramente interessa a um Liberal. Consagrar a Liberdade plena a todos os integrantes de uma Europa, independentemente da raça, cor, língua, cultura, etc.

      A esquerda gringa, por exemplo, acusa a Europa de ser neo-liberal. lol

      A dita nova direita liberal de pacotilha acusa a Europa de ser socialista. lol

      Os ditos “soberanistas” são os mesmos que depois querem ter acesso aos mercados alheios (sobretudo consumidores) mas cumprindo apenas as leis que eles querem produzir dentro da sua casa para conviver na casa alheia. lol

      O tempo passa e vemos apenas uma Europa aliviada pelo Brexit (não ufanante mas contente) e um Reino Unido que se desuniu. O que é cómico, quando precisamente os mais radicais proponentes do Brexit pretendiam destruir a tal EUSSR e implodiram com o seu país, que nem sequer é uma federação clássica, pejada de Nações dispares mas unidas sob uma mesma bandeira.

      O tempo irá mostrar que quem perdeu no Brexit foram os populistas e não as tais “elites”, que eles dizem combater. lol

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