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Pequeno sumário sobre a vida, o universo e tudo

21 Abril, 2017

Todo o sistema ideológico moderno consiste na busca espiritual de algo que nos transcende como humanos. Durante centenas de anos tivemos Deus para preencher esse papel, porém, em 1960, isso começou a mudar. Podemos falar de marxismo cultural — que é uma realidade, note-se —, mas, como tudo neste planeta, grandes mudanças só ocorrem através de grandes eventos disruptivos. Apenas a partir de 1960 estavam reunidas as condições para a revolução espontânea, aquela que verdadeiramente mobiliza as pessoas, não as revoluções das Catarinas Martins de esquerda ou de direita. A pílula contraceptiva permitiu iniciar o processo de transição da divindade metafísica para a revolução sexual. De forma progressiva, a influência clerical no ocidente foi decrescendo pela constatação da obsolescência de um único mandamento: “não cobiçaras a mulher do próximo”. A partir do momento em que a cobiça de mulher alheia acarreta uma probabilidade muito mais reduzida de gerar descendência bastarda e, consequentemente, de mais bocas para nutrir, o campo de acções humanas “democratizou-se”, para usar um termo querido aos progressistas. Note-se que o termo “mulher” é usado de forma tradicional, aparentando uma noção de posse do homem, o que não é reflexo da nova realidade. A emancipação da mulher passou a ocorrer no ponto em que lhe foi dada a possibilidade de usufruir da capacidade natural para o prazer sem a responsabilidade inerente ao risco de maternidade. A mulher passou a ser o sexo do poder, a chave para o bem-estar masculino, quem manda, quem decide com quem dorme. Nada assusta mais um muçulmano dos malucos que a ideia de poder sexual de uma mulher.

À medida que os anos foram passando e as gerações se foram renovando, a facção mais carente dos agora desprovidos de transcendência metafísica através de religião (estou a pensar em vós, Fernanda Câncio e Isabel Moreira) foi criando uma série de regras — mandamentos — do que teria que mudar para a plenitude do Homem Novo, o que já não consistia no conceito original que os comunistas ainda tentam usar e sim num que integrasse toda a plenitude sexual sem componente reprodutiva.

Finalmente, nos últimos 20 anos, o progressivismo constituiu-se plenamente em Igreja, assimilando os antigos ritos e sacramentos para uma versão em tudo idêntica mas desprovida de Deus. Tal foi possível através da repetição sistemática do conceito de “igualdade” jacobina: a existência de Deus é uma clara violação do conceito de igualdade, se Ele está acima de todas as coisas.

  • O baptismo transformou-se na numeração sistemática dos indivíduos na tribo através do número fiscal. Nenhum de nós teve NIF como recém-nascido, hoje é atribuído imediatamente no registo (topem a palavra usada, “registo”) da criatura.
  • Os safe spaces são os templos onde podemos encontrar a congregação, a missa onde afirmamos a nossa fé e onde temos a segurança de não sermos confrontados com outros credos ou, neste caso concreto, ideias que desafiem a ontologia da nossa crença no conhecimento by proxy. A preponderância do especialista, do comentador sancionado, de todo o Clero da pós-modernidade nos jornais (bastante inconsequentes) e na televisão (muito mais relevantes).
  • O Pecado Original transformou-se na Culpa do Homem Branco. Somos culpados pela colonização, pelos escravos, por atrocidades que possam ter sido cometidas no que hoje são territórios de outros estados, sem que, porém, tenhamos, nós próprios, colonizado, possuído ou transacionado escravos e cometido qualquer atrocidade.
  • Os rituais de iniciação na comunidade, a Comunhão e o Crisma são substituídos pela doutrinação social e sexual da escola, com temáticas como o aborto para miúdos do 5º ano, um marco em tudo semelhante aos rituais “antigos” que consistem em afirmar a fé e a crença em Jesus. O ministério da educação, como máquina burocrática, não passa de um mecanismo bacoco de veneração do Santo Pénis.
  • A necessidade de ser sancionado nos seus comportamentos pela comunidade — e, não podendo ser por Deus, pelo Estado — através do casamento homossexual, cuja importância esteve, precisamente, na utilização da palavra “casamento”.
  • A eutanásia como óbvia extrema-unção estatal.

Perguntam-me o que podemos fazer. Respondo que não é de hoje e compreendo que essa resposta cause desilusão. As coisas são o que são, independentemente de acharmos que são diferentes apenas nos últimos dois ou três anos. É que, bem vistas as coisas, a única coisa que aconteceu muito recentemente foi a substituição de directores de jornais por pessoas bastante estúpidas ao serviço do novo Clero, o clero que exige ser conhecido, ironicamente, como anti-clerical.

30 comentários leave one →
  1. Juromenha permalink
    21 Abril, 2017 10:46

    Resumo mais que brilhante.
    Mas não esquecer a sua circunscrição a um espaço geográfico progressivamente mais reduzido, para além do “sound and fury” merdiático.
    PS A paróquia, histórica e pelintramente, vai sempre atrás do que lhe disseram ser a penúltima moda…

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  2. Os corruptos que se cuidem permalink
    21 Abril, 2017 11:10

    Rendo-me, porra!! Brilhante, fulgurante!!

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  3. javitudo permalink
    21 Abril, 2017 11:17

    Vitor, você está inspirado!
    Apesar de tudo aquela coisa da pílula sempre dá um geitão. Confessemos.
    Quanto ao que podemos fazer, sou mais otimista. Mais dia menos dia a casa cai.
    Há até jovens que progressivamente vão percebendo até que ponto são enrolados.

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  4. licas permalink
    21 Abril, 2017 11:29

    Nada há mais ridiculo e inconsequente do que o carpir Ciceriano, o tempora, o mores,
    dos moralistas passadistas . . .
    Tentar fazer parar um processo que se desenrola há mais de 200 anos contra a dogmática
    irracional da superstição canónica, bem. . .

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  5. 21 Abril, 2017 11:44

    Republicou isto em O LADO ESCURO DA LUA.

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  6. carlos alberto ilharco permalink
    21 Abril, 2017 11:50

    Gostei, tem no entanto na minha pouco modesta opinião um erro e uma omissão.
    O erro está na frase

    “Nada assusta mais um muçulmano dos malucos que a ideia de poder sexual de uma mulher.”

    Dos malucos está ali a mais, tire-se fica perfeita.
    A omissão está nos safe spaces sendo que aqui os campos de futebol transformaram-se nas catedrais modernas, aliás o Estádio da Luz é conhecido pela Catedral e a comunhão entre os seus frequentador é alucinante, une esquerdas direitas e todos os credos.
    Um milagre dos tempos modernos.

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  7. javitudo permalink
    21 Abril, 2017 13:29

    Pequeno sumário sobre a vida, o universo e tudo.
    A parte que eu gostei mesmo foi a do tudo.
    Pôs-me fora de mim antes das esquerdas o poderem tentar.

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  8. piscoiso permalink
    21 Abril, 2017 14:51

    Caramba, isso tudo por causa da substituição de directores de jornais!

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    • alex.soares permalink
      22 Abril, 2017 14:39

      Olha o piscoiso. Então! Tudo bem lá pela Venezuela? E o arlindo tosta? Já partilharam um br(i)oche?
      Ok. Valentes.

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  9. 21 Abril, 2017 16:11

    Filosofia hiper-catártica, mas da boa. Parabéns.

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  10. Mauro Pires permalink
    21 Abril, 2017 16:29

    Texto filosoficamente e histericamente brilhante Vitor!
    Falando em xuxas: https://portugalgate.wordpress.com/2017/04/21/os-investidores-internacionais-nao-sao-parvos/

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  11. Raghnar permalink
    21 Abril, 2017 17:29

    Hahaha, excelente…

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  12. 21 Abril, 2017 17:36

    Vitinho vá a Fátima pagar as promessas

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    • 21 Abril, 2017 17:37

      E você vá à Fátima, que parece precisar.

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      • 21 Abril, 2017 20:05

        Vou lá várias vezes comer um cabrito no forno que é uma maravilha

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      • 21 Abril, 2017 20:09

        Deve ser uma Fátima grande, para lhe caber um cabrito inteiro.

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      • 21 Abril, 2017 20:24

        Fátima é muito generosa . E o negócio das medalhas e das velas vai de vento em popa para gáudio do Zeca das Medalhas e do senhorzinho Malta .

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      • 21 Abril, 2017 20:32

        Isto seria tão mais interessante se você fosse espirituoso a insultar.

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      • 21 Abril, 2017 20:39

        Insultar ? onde ? Não se arme em vítima . Olhe para de ter visões místicas

        D. Carlos Azevedo: “Maria não vem do céu por aí abaixo”
        Delegado pontifício da Cultura no Vaticano diz que é o momento de se falar com a “linguagem exacta” sobre o que se passou há 100 anos na Cova da Iria: foram visões místicas, não aparições.

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  13. 21 Abril, 2017 17:38

    “1960, isso começou a mudar.”

    Foi com os Beatles! love love me do !

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  14. Arlindo da Costa permalink
    21 Abril, 2017 17:42

    Muito profundo, meu.

    E num artigo de tanta intensidade filosófica e existencial, citar Catarina Martins e Isabel Moreira, não é para qualquer um.

    Estava à espera que citasse Kant ou Hegel.

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    • alex.soares permalink
      22 Abril, 2017 14:52

      Olha o arlindo tosta. Então! tudo bem lá pela Venezuela? E o piscoiso? Já partilharam um br(i)oche?
      Ok. Valentes.

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  15. Manuel permalink
    21 Abril, 2017 18:29

    Espectáculo de artigo! Parabéns.

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  16. Arrakis permalink
    21 Abril, 2017 20:38

    Brilhante!
    Tantas vezes me imagino em pleno Arrakis, planeta do para mim fabuloso filme, Dune.
    Ainda bem que ainda posso ler os seus artigos.
    Obrigado

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  17. 21 Abril, 2017 20:50

    Última hora: o Papa já não
    vem a Fátima a 13 de Maio !

    O estimado e valioso poeta Nuno Júdice escreve hoje no Público, numa peça sobre o «Portugal futurista», que «a juntar a isto, tinham-se dado as primeiras aparições de Fátima, em Outubro de 1917, coincidindo com a Revolução de Outubro na Rússia »

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  18. sam permalink
    22 Abril, 2017 15:42

    Os cães também vão para o céu.

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