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Um liberal das arábias

10 Agosto, 2018
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Ao contrário do Rui, e de outros liberais, não tenho notado uma grande tendência para me tornar conservador ao longo dos anos. Possivelmente aquilo que me ajudou a solidificar os meus instintos liberais foi o tempo que passei no Médio Oriente. No que toca ao liberalismo económico, o meu período no Dubai (um local onde a desigualdade é levada ao extremo, mas onde são precisamente os da parte mais baixa da pirâmide que mais ganham em termos relativos) deu-me a segurança de pensar que mesmo modelos económicos excessivamente liberais para a nossa cultura política têm efeitos positivos e beneficiam todos. No que toca ao liberalismo nos costumes foi o longo período que passei na Arábia Saudita que me ajudou a solidificar esse pensamento.

Passei mais de um ano na Arábia Saudita, graças a Deus voltando ao Dubai todos os fins-de-semana. Nesse período conheci e conversei com muitos sauditas (homens, claro). Numa conversa normal não se distinguiam de homens ocidentais. Tinham os mesmos gostos que qualquer homem ocidental, gostavam de futebol, viam as mesmas séries e filmes americanos e liam autores ocidentais. Para desanuviar da sociedade fechada em que viviam, era comum viajarem para o Dubai ou Bahrain ao fim-de-semana (locais onde, apesar de serem conservadores para os standards ocidentais, é permitido beber álcool, não há separação de sexos, as mulheres podem vestir o que bem entenderem e a fornicação é tolerada, ainda que ilegal).

Apesar de, na maioria dos tópicos, se poder falar com sauditas como se fossem ocidentais, quando se chegava à questão dos costumes, caía sobre nós um choque de realidade. Mesmo os sauditas mais bem formados (muitos com cursos nas melhores universidades dos EUA) e inteligentes, conseguiam racionalizar as limitações à liberdade individual na Arábia Saudita. Faziam o mesmo tipo de julgamento em relação ao Dubai e ao Bahrain que o Rui faz aqui em relação a Amsterdão. E em muitas coisas tinham razão: nunca vi na Arábia Saudita um tipo bêbedo na rua. Uma mulher pode andar descansada sem ser sujeita a piropos. Os casamentos duram e resultam em muitos filhos. O espírito de tribo e família é muito forte (o anterior rei casou com uma mulher de cada grande tribo para conseguir unir o país). Ao ler este texto do Rui, lembrei-me dessas conversas, da forma como é possível racionalizar limitações à liberdade individual tendo em conta um bem superior, da maneira como a nossa vivência individual pode ditar a forma como julgamos a felicidade dos outros. Para aqueles sauditas, uma sociedade onde uma pessoa pudesse escolher beber em excesso todos os fins de semana ou onde uma mulher pudesse escolher ter mais do que um parceiro sexual durante a vida, era uma sociedade triste e doente. Com as devidas adaptações, e a uma escala diferente, a linha de raciocínio não diferia muito desta. A lição que aprendi é que não importa o quão restritivos são os costumes: qualquer pessoa que tenha vivido tempo suficiente exposto a um código moral, defenderá sempre esse código como o correcto. E é sempre possível racionalizar limitações à liberdade individual, independentemente do ponto de partida, usando as lentes da sua própria mundividência. Uma coisa é certa: a Holanda está no topo de todos os rankings da felicidade (que valem o que valem, é certo), e eu seria menos feliz sem as liberdades do mundo ocidental, mesmo que os meus amigos sauditas achem que não.

17 comentários leave one →
  1. Mario Figueiredo permalink
    10 Agosto, 2018 12:17

    “a Holanda está no topo de todos os rankings da felicidade”

    Claro. Os toxicodependentes holandeses são muito felizes.

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    • CGP permalink
      10 Agosto, 2018 12:19

      É como os bêbedos do Dubai, dirão os sauditas.

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    • Mario Figueiredo permalink
      10 Agosto, 2018 12:38

      Diriam mal. Porque os toxicodependentes holandeses não são felizes porque os deixam injectar livremente, mas sim porque vivem num país liberal… segundo as estatísticas. Não é assim?

      Mais a sério. Eu sei que o CGP lhes atribui valor relativo. Mas mesmo assim não deixou de os referir. Não deixa é de me fazer um bocado de cócegas que pessoas inteligente refiram estudos que dizem medir a felicidade.

      Mas o que me faz encolher todo é esses estudos pretenderem que quem está no topo são precisamente aqueles países para quem está completamente aberto o caminho para a toxicodependência e prostituição; que — digo eu, não sei — não são claramente actividades com grande potencial de felicidade pessoal.

      Não consigo descortinar onde está aqui o elemento de felicidade. Ajude-me lá! Em termos de liberdades individuais não existe muito mais para além destes dois elementos que distinga uma Holanda de, por exemplo, uma Polónia. Portanto é possível depreender que a Holanda é mais feliz que a Polónia porque é mais fácil ser-se toxicodependente ou prostituta…

      É claro que isso não faz sentido. Portanto, alguns de nós — que não o CGP, aparentemente — arriscaríamos a tese que o tal elemento de felicidade que estudos dizem existir, a existir, não tem nada a ver com o liberalismo vigente, porque esse é mais recente que os elevados níveis de qualidade vida que estes países à muito anos usufruem, mercê de boas políticas económicas. Em vez disso, a tal da felicidade é o resultado da economia e os efeitos que ela têm na sociedade. E que o liberalismo social é precisamente o que o Rui A. descreveu; em poucas palavras; o caminho descendente de quem atingiu o topo da curva de sino.

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      • CGP permalink
        10 Agosto, 2018 12:49

        O caminho para a felicidade não é igual para toda a gente, porque isso implicaria sermos todos iguais. Não somos. Temos perspectivas, capacidades, níveis de tolerância e alternativas de vida diferentes. O facto de o álcool, o tabaco, as francesinhas, a droga, a homossexualidade e a prostituição serem permitidas em Portugal não obriga ninguém: dá opções. Algumas destas coisas trariam infelicidade a muitos e felicidade a outros. A mim fazer sexo com um homem fazer-me-ia muito infeliz, mas sei que outros são bastante felizes por terem essa opção. Eu também não gostaria de viver num mundo sem álcool, embora conheça muitas pessoas felizes por não beberem.

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      • 10 Agosto, 2018 19:15

        As sociedades com culturas “liberais” laicas cujo ultimo objectivo é a “felicidade” têm menos de 1 filho por casal as islâmicas 3 ou 4. A continuar assim e se as imigrações em massa das islâmicas para as liberais laicas, não forem paradas, daqui a uma centena de anos as liberais laicas serão eliminadas e passarão a ser dominadas pelas islâmicas . Neste caso qual é a cultura cujo codigo moral é superior, aquela que consegue-se preservar e impôr ao longo dos milénios, ou aquela cujo ultimo objectivo é a “felicidade” do individuo ?

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      • CGP permalink
        10 Agosto, 2018 21:16

        Ahhhh, mg, agora sim, podemos falar. Esse é verdadeiramente o ponto fulcral. Essa sim é uma defesa válida do conservadorismo social. Mas que, necessariamente, tem que ir bastante atrás.

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      • Mario Figueiredo permalink
        10 Agosto, 2018 20:03

        Ocorreu-me precisamente isso ao ler este última resposta do CGP. Mas então onde está a família? Mas não quis estender mais o diálogo. Ainda bem que não o fiz; o mg disse-o magistralmente.

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  2. Filipe permalink
    10 Agosto, 2018 14:27

    Sempre é mais “honesta” esta argumentação do que a anterior (dos cubanos) porque se baseia na impressão de quem lá viveu.

    No entanto falta um dado fundamental (que não falta ao rui a.): a amostra é reduzida (limita-se aos homens e, sobretudo, aqueles que têm liberdade de ir às vezes ao Dubai, experimentando o melhor de 2 mundos).

    Ou seja, continua mais válida a argumentação do rui a.

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    • 10 Agosto, 2018 14:32

      Pelo post, não me pareceu que o Rui A. também tenha ido ao Bijbelgordel, p.ex.

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      • Filipe permalink
        10 Agosto, 2018 14:48

        O rui a. ignorou 50% (ou mais) da população de Amesterdão?

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      • Duarte de Aviz permalink
        10 Agosto, 2018 17:50

        O CGP ignorou 90% da população Saudita com quem obviamente não contactou, nem faz ideia como vivem e o que pensam. Nem sequer se apercebeu que nas conversas em que ele e os amigos racionalizavam sobre costumes os Sauditas lhe estavam a dar um bailarico,
        Santa ingenuidade…
        Vejam que nem se apercebeu que a estatística sobre os casamentos que acabam em divóricio é por volta dos 50%.
        (…)
        Mas a que propósito entra o Reino num conversa sobre liberalismo?
        Adiante.

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    • Tiago P. permalink
      10 Agosto, 2018 14:51

      A argumentação do Rui A. é simplesmente um conjunto enorme de generalizações feitas com base na mera observação de uma cidade por parte de um turista e através de um prisma moral pessoal muito específico. Rui A. nem sequer se dá ao trabalho de verificar, por exemplo, que os morais, tradicionais e católicos portugueses se divorciam mais que esses bandalhos libertinos que são os holandeses.
      Enfim, é esperar que se assuma conservador. Defender o liberalismo económico não é ser-se liberal, nem é ser-se liberal esperar que o Estado funcione como ferramenta de imposição de um código moral colectivo que se superiorize em relação à vontade e à moral de cada um.

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      • JPT permalink
        10 Agosto, 2018 15:39

        De uma cidade, não. Com sorte, de 20% de uma cidade!

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  3. Leunam permalink
    10 Agosto, 2018 17:47

    Mudando de assunto:

    Quantas ventoínhas vão surgir na paisagem sinistrada pelo incêndio de Monchique?

    Aceito estimativas.

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  4. 10 Agosto, 2018 18:47

    “como é possível racionalizar limitações à liberdade individual tendo em conta um bem superior”

    Todo o código juridico é por natureza código restritivo da liberdade individual, para o bem comum.
    O CGP não tem noção que é precisamente isso que está na base da construção e estabilidade da civilização, pois não ?
    É que não há civilização sem código moral, não há civilização sem limitação à liberdade individual.

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    • Andre Miguel permalink
      10 Agosto, 2018 19:10

      Muito bem.
      Kierkegaard dizia que a existência de homens livres de Deus foi a cruz que o Cristianismo não conseguiu suportar. Podemos, sem receio, dizer a civilização sem limites à liberdade individual é a cruz que os liberais não conseguem suportar.

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      • Andre Miguel permalink
        10 Agosto, 2018 19:11

        A existência de homens livres DIANTE de Deus. Perdão pelo lapso.

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