Código de praxe para líderes políticos caloiros*
Durante muito tempo embirrei com as praxes e não me vejo a protagonizar qualquer um daqueles papéis. Mas confesso que ultimamente tenho descoberto méritos nas praxes: em instituições que, como acontece em muitas das universidades, apagaram quaisquer rituais que assinalem a passagem dos anos lectivos, o sentimento de pertença tem de se manifestar de algum modo. Fazê-lo através das praxes não é necessariamente o pior que pode acontecer nestes universos cheios de jovens. Também não deixa de ser irónico para quem como eu defende muito mais autoridade para os professores e funcionários das escolas básicas e secundárias, constatar que os mesmos meninos que na adolescência não podiam usar uniforme nem ser castigados por causa dos traumas acabam na juventude todos vestidos de igual e a cumprir o rígido código da praxe. E que essas turmas de aprendentes que ruminam pastilha elástica enquanto chamam “velha”, “cota” ou coisas piores às professoras, uma vez na faculdade tratam por “excelentíssimo”, “digníssimo” ou “venerável” os colegas que lhes chamam “vermes“, “bestas” ou “bichos”.
Na verdade, tudo isso me parece até bastante previsível. O que realmente me surpreendeu, quando esta semana folheei um código de praxe, foi ter constatado que estes códigos são uma inestimável fonte de ensinamentos políticos, particularmente para perceber a relação entre o PS e o PSD. Ao alinharem-se diante dos meus olhos os direitos e deveres dos caloiros, mais do que a cara pintada dos recém-chegados às universidades eu vi o ar aturdido dos líderes do PSD desde 2004. Como é óbvio, para que exista praxe tem de existir caloiro e no caso político português há sempre um caloiro de serviço. A saber, o líder do PSD de cada momento, pois, desde que, no ano de 2004, Durão Barroso trocou S. Bento por Bruxelas, deixando no seu lugar essa espécie de caloiro-Calimero que é Santana Lopes, que o PSD e os seus sucessivos líderes estão constantemente a ser praxados.
Invariavelmente interrompem-lhes a praxe, pois a meio do ritual são apeados da liderança não pelo que fazem ou dizem de errado, mas sim porque o seu afastamento é decretado pelos “veneráveis”, entendendo-se por “veneráveis” o PS e aqueles outros políticos que, não sendo do PS e militando noutros partidos, nomeadamente no PSD, dão como adquirido que o exercício do poder político passa por executar com algumas variações aquilo que os socialistas definem como positivo. Consequentemente, é bem mais provável e socialmente aceitável que um governo PS tome medidas como as agora anunciadas de redução de vencimentos na função pública ou de diminuição das verbas para o RSI do que um governo do PSD, pois este último vive constantemente sob a suspeição de não se dizer socialista. O que em Portugal implica viver sob a continua suspeição de não ter preocupações de carácter social. Por exemplo, agora que se temem greves e agitação social, se o governo for do PS, tem-se a garantia de duas coisas nada irrelevantes nestes transes: a polícia intervirá, se necessário, e os sindicatos nunca deixarão de ter em conta que é um partido de esquerda que está no Governo. De igual modo, os empresários têm sérias razões para preferir governos socialistas, pois não só estes últimos revelam um entendimento da máquina do Estado enquanto sector empresarial do governo, como assumem com a naturalidade de quem é “veterano” nesta República todos aqueles procedimentos que aos caloiros causam sobressaltos e dúvidas.
Tal como os caloiros das universidades, também a nossa oposição caloira mais do que o direito tem o dever de existir, pois, caso não existisse um grande partido de oposição, o PS seria confrontado com o incómodo facto de Portugal não ser uma verdadeira democracia. Mas nada de confusões: o papel da oposição é o de dar os passos certos para legitimar o exercício do poder pelo PS. Qualquer outra presunção sobre o seu papel é recebida pelos “veteranos” e “veteraníssimos” da República mais com desconcerto do que com surpresa, pois é sempre embaraçoso constatar que alguém não conhece as regras, como bem se percebeu com a encenação criada em torno da crise de dimensões incalculáveis que cairá sobre o país, caso o Orçamento do Estado seja chumbado. Anunciaram-nos o apocalipse, caso o Orçamento seja chumbado. Não só os governos não caem, porque os orçamentos são chumbados, como nós mesmos neste mesmo ano de 2010 estivemos em regime de duodécimos até Maio e nessa fase ninguém considerou que estivéssemos mergulhados numa crise intransponível. É sem dúvida melhor termos Orçamento do Estado aprovado do que não termos, mas o interesse nacional não passa certamente por termos um orçamento qualquer. Aliás, sendo complicado gerir um país em duodécimos, este regime tem pelo menos o mérito de impedir o crescimento da despesa. Note-se ainda que a crise não existe porque o Orçamento corre o risco de ser chumbado. A crise existe porque a despesa cresce sem parar. E a nossa má imagem internacional não surgiu porque em Bruxelas ou Berlim ficaram muito apreensivos com as divergências entre os líderes dos nossos principais partidos, mas sim porque duvidam que cumpramos o estabelecido para disciplinar as contas públicas. Se hoje estamos entre os melhores colocados no chamado “índice da bancarrota”, chegámos aí não por termos tido crises políticas. Antes pelo contrário, chegámos aí após quatro anos de um governo de maioria absoluta. A este Governo, que gozou de maioria absoluta durante quatro anos, seguiu-se um governo minoritário chefiado pelo mesmo primeiro-ministro. Há muito tempo que não existia um executivo em Portugal com tal estabilidade. E dificilmente outro no futuro a reunirá. E, contudo, durante esses anos de enorme estabilidade e ausência de crises políticas a despesa aumentou sempre, tal como aumentaram os impostos e as contribuições para a Segurança Social. Todos os anos aquando da discussão sobre o Orçamento do Estado se desenhava um futuro radioso à nossa frente. Todos os anos nos era prometido que a despesa iria baixar. Todos os anos a despesa aumentou. Os orçamentos do Estado tornaram-se uma espécie de anúncios de um país que se gostava que existisse, mas do qual infelizmente divergíamos cada vez mais. Os orçamentos rectificativos chamavam brevemente a atenção para a realidade, mas logo outro Orçamento do Estado nos garantia que desta vez é que ia ser. (Aconselho a que se revejam no os vídeos dos debates entre Manuela Ferreira Leite e José Sócrates: o país foi mais do que avisado do que estava a acontecer, mas quis adiar um pouco mais o choque com a realidade. Está a pagar muito caro por isso.)
Repito, entre 2005 e 2009, o país teve um governo de maioria absoluta, os orçamentos foram aprovados sem crise política alguma e acabámos enfiados numa crise económica tremenda, com uma carga fiscal asfixiante, a regozijarmo-nos porque ainda há quem compre a nossa dívida (com aqueles juros haverá sempre quem compre!), com o Orçamento sob a supervisão da UE (por mais que se diga que tal estava previsto nos tratados europeus, isto nunca foi claramente dito aos portugueses nem consta da nossa Constituição) e com vários responsáveis a desejarem que o FMI nos imponha o que é indispensável. Pois não só o FMI cumprirá o seu papel de ficar com o odioso da questão, como mais uma vez, seja recorrendo à muleta da UE ou do FMI, os “venerandos” da República preferirão dizer aos portugueses que determinadas medidas são tomadas porque “lá fora” nos impõem isso e não porque essas medidas são indispensáveis à organização da nossa vida “cá dentro“. Nos momentos de grande crise como aquele que vivemos, a alienação do mundo surge-nos como a mais reconfortante das saídas: cerramos os dentes e fazemos o que o “lá fora” disser, desde que o “lá fora” nos deixe viver “cá dentro” sem explicações que nos embaracem. Não por acaso ontem na sua comunicação ao país José Sócrates e Teixeira dos Santos apresentaram a nossa situação como o resultado da crise internacional e justificaram as medidas apresentadas com a necessidade de cumprirmos nossos compromissos internacionais e de escaparmos aos ataques dos mercados. Como se o nosso problema decorresse do “lá fora” e não deste viver acima das possibilidades que se enraízou no Estado português. Quando Passos Coelho declarou que encarava a hipótese de não viabilizar o Orçamento, caso este implicasse um agravamento da carga fiscal, não fez o que se esperava dele neste ritual desta República que significativamente se apega cada vez mais à forma, foge da substância e confunde estabilidade com ausência de discussão. Os “veteranos” da República irritaram-se. Boa parte da comunicação social certamente saudosa ou ansiosa da magna clarividência dos governantes autoritários considerou que tudo não passava de uma série de “arrufos” e de “birras”. Mas a República ganhou: não só o Orçamento do Estado vai ser discutido no Parlamento, como os líderes políticos vão ter de fazer o mínimo dos mínimos que se pode exigir a um político: que para um problema concreto apresentem as propostas que acham mais adequadas dentro do seu campo ideológico. Em conclusão, que façam política. Sem “venerandos” nem caloiros, mas como representantes da vontade do povo. A esse povo a quem o Governo hoje anunciou que vai ainda pagar mais impostos e receber menos do Estado que lhe prometeram social.
*PÚBLICO

“Também não deixa de ser irónico para quem como eu defende muito mais autoridade para os professores e funcionários das escolas básicas e secundárias, constatar que os mesmos meninos que na adolescência não podiam usar uniforme nem ser castigados por causa dos traumas acabam na juventude todos vestidos de igual e a cumprir o rígido código da praxe.”
Eu sou um dos que “defende muito mais autoridade para os professores e funcionários das escolas básicas e secundárias”, e não estou muito bem a ver a ironia…
Há uma diferença entre ser obrigado a fazer algo, ou fazê-lo de livre vontade. Se chama a isto “ironia”, eu chamo liberdade.
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A última , a inenarrável paranóia de origem PS é a de que
os Partidos que não aprovarem o Orçamento são . . . anti-patriotas.
(ISTO provindo do Partido do Manuel Alegre agora candidato
a Presidente da República . . .)
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Porra, nao se percebe esta gente… se não corta é porque não corta, se corta é porque corta… não têm mais nada que fazer??
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Bem apanhado Helena!
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Dublin
Posted 1 Outubro, 2010 at 17:57 | Permalink
Porra, nao se percebe esta gente… se não corta é porque não corta, se corta é porque corta… não têm mais nada que fazer??
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Está a sentir-se incomodado pela discussão dos locais do corte de despezas e das suas intensidades, está?
Nas Democracias é sempre assim, né?
Pode é emigrar para um país de regime ditatorial à sua esco,ha , e pronto, resolve o seu problema . ..
TÁ BEM?
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Se descontarmos o facto de a praxe ser (quase sempre) uma luta cíclica da animalidade e da bestialidade do ser humano contra a tentativa de organização e progresso social, o texto é excelente.
Excelente, mesmo!
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