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O fim de uma era? (*)

27 Outubro, 2008

Muitos têm apontado a presente crise financeira como de gravidade idêntica ou superior à de 1929. Admitindo que quem tal afirma não são os catastrofistas ou as Cassandras do costume, o impacto junto dos cidadãos será brutal: ninguém hoje imagina minimamente o que seja uma depressão, com todo o seu fragor de desemprego, fome e miséria generalizadas. Algo que, no Ocidente, nenhuma das gerações vivas equaciona que possa alguma vez acontecer.

Certo é que, a crise actual tem, na sua sequência, várias similitudes com a grande depressão de 1929: sobreprodução global potenciada por excesso de liquidez, seguida de uma abissal desvalorização de activos, consequente e acentuada redução da massa monetária e inerente contracção do crédito que ameaça paralisar a actividade económica. A causa remota foi então idêntica, ou seja, excessiva criação monetária incentivada pelos Bancos Centrais ao longo de mais de uma década, via taxas de juro artificialmente baixas e, na actualidade, fixação aos bancos de insignificantes taxas de reservas. A expansão de moeda que daqui decorre, não directamente relacionada com o crescimento económico, leva a investimentos especulativos geradores das chamadas “bolhas” que, inevitavelmente, rebentam quando a taxa de juro inverte e os mercados se apercebem do enorme desequilíbrio entre investimento e poupança. Assistimos agora ao estoiro da bolha do subprime, decorrente de uma expansão vertiginosa do crédito hipotecário a abranger devedores conhecidos à partida como sendo de alto risco. A desvalorização dos activos imobiliários – cerca de 2/3 nos Estados Unidos desde o respectivo pico – levou os bancos a assumirem perdas monstruosas nos respectivos créditos, com a inerente insolvência de alguns deles. Na prática, isto mais não é do que o “queimar” de todo o “dinheiro falso” criado anteriormente e que potenciou a bolha.

Há porém uma diferença substantiva face à crise de 1929: os Estados, as entidades de quem todos esperam a solução providencial, constituem hoje os agentes económicos mais indisciplinados do planeta, habituados a gerir um “modelo social” cada vez mais caro com base no défice e na dívida. Confrontados com uma situação de quase catástrofe, reagem da única forma que conhecem, atirando dinheiro aos problemas. Como por todo o lado se encontram reféns de lobbies organizados, qualquer apoio reverte no imediato benefício destes, com especial destaque para a banca, por sinal o sector com maiores responsabilidades na crise, sempre em cumplicidade com os mesmos Estados que, em devido tempo, lhes garantiram a criação monetária para financiarem os créditos de alto risco. Ou seja, todas as soluções já implementadas ou a implementar, vão em benefício do infractor e em prejuízo do eterno financiador final, o contribuinte, com nula capacidade de intervenção e influência. Estamos a falar para já, contando apenas com o Plano Paulson e o Plano Europeu e abstraindo das maciças injecções de liquidez por parte dos Bancos Centrais, de algo como 2,5 biliões de dólares (triliões em termos americanos).

As reacções dos mercados, consubstanciadas nos índices bolsistas, com quedas desde o início do ano a ultrapassarem os 40%, têm denotado um enorme cepticismo. Porventura pelo reconhecimento de que as soluções propostas mais não são do que a tentativa de cura com o mesmo veneno que provocou a doença, a expansão monetária. Só o “pacote” europeu, ascende a 1,3 biliões de euros, qualquer coisa como 15% do PIB da EU, destinados a aumentos de capital dos bancos e a garantir o respectivo financiamento nos mercados interbancários. Uma hipotética utilização de toda aquela verba, encharcaria os mercados de euros, com efeitos mortíferos na estabilidade da moeda e na inflação, podendo pôr em risco a própria união monetária.

Não se conseguindo a retoma da confiança e a acontecerem mais falências bancárias, hipótese já aventada pelas autoridades americanas, a propagação para a economia real pode ter efeitos devastadores, com falências em série e subida exponencial do desemprego. Os Estados ficarão exangues, incapazes de acorrer em simultâneo a instituições insolventes e a carências sociais de todo o género. Será a falência do “Estado Social”, que não resistirá à fragilidade dos seus alicerces de dívida e défices. As tentações proteccionistas serão enormes, o que acentuará ainda mais a recessão à escala global. No final, emergirão três novas potências económicas, a China, a Índia e o Brasil, para onde o Ocidente “exportou” maciçamente capacidade produtiva nos últimos 20 anos e que compensarão a queda das exportações com o desenvolvimento dos seus mercados internos, com uma profundidade quase infinita.

E Portugal no meio disto? É apanhado no turbilhão numa situação de extrema fragilidade. O período de expansão económica global que ocorreu nos últimos 10 anos passou-nos totalmente ao lado e não deixámos de divergir face à média europeia, tendo já sido ultrapassados por alguns dos países de leste com quem concorremos na captação de investimento estrangeiro e caminhando assim alegremente para a cauda. Um défice das transacções correntes que se estima atingir já 12% do PIB e uma dívida externa que quase o iguala, ilustram uma situação de quase mendicidade. Não estando o seu sistema bancário exposto aos chamados “produtos tóxicos” do subprime, é no entanto responsável por uma grande parte da dívida externa, a que nada servirá a garantia do Estado se o risco-País aumentar por força de uma hipotética desagregação da união monetária. Teríamos então uma inflação estratosférica e uma queda abissal do nível de vida, com repercussões sociais alarmantes.

O acordar súbito para a realidade de quase toda a população, há vários anos “dopada” por doses maciças de propaganda governamental que promete diariamente o paraíso na terra, representaria um choque de dimensões imprevisíveis. Ressaltaria então a total incompetência da nossa classe dirigente para lidar com uma situação de catástrofe e, fruto do seu eterno e crescente intervencionismo no quotidiano de todos nós, a ela seria imputada toda a responsabilidade, com ou sem razão para tal. A instabilidade política redundaria rapidamente em crise de regime, a denotar desde há muito sinais de podridão. Uma sociedade civil abúlica por séculos de estatismo paternalista, estaria então de novo receptiva para a emergência de um caudilho.

(*) Publicado inicialmente no semanário O Diabo em 21/10/08 

17 comentários leave one →
  1. lucklucky's avatar
    lucklucky permalink
    27 Outubro, 2008 19:47

    É o fim da era em que os gastos dos Estados cresceram sem travar passando de 20-30% da riqueza de um país para 50% , isto foi alegremente feito por Governos ditos de esquerda ou de direita seja neo-liberal ou não neo-liberal com muito poucas excepções. Não é mais possível de fazer. Com a demografia a ajudar colocando em causa toda a lógica do passado recente. Todas as obras públicas vão cair sobre os ombros de cada vez menos pessoas. Isto é o TGV vai ser pago provavelmente por menos portugueses do que outros elefante brancos do passado. Terão de pagar mais.

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  2. bis coitus interruptus's avatar
    bis coitus interruptus permalink
    27 Outubro, 2008 20:00

    vamos pagar com lingua de palmo os elefantes brancos do sargento lateiro dos xuxas do largo dos ratos

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  3. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    27 Outubro, 2008 20:06

    “vamos pagar com lingua de palmo os elefantes brancos do sargento lateiro dos xuxas do largo dos ratos”

    Está a faltar uma reacção “Ota”.

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  4. piscoiso's avatar
    piscoiso permalink
    27 Outubro, 2008 20:11

    Diz a minha tia Euclidina que a grande maioria da população mundial nem tem nada a perder.

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  5. LR's avatar
    27 Outubro, 2008 20:19

    Lucklucky,

    Se há algo de bom nesta crise é que irá inviabilizar os mega-projectos. Por muito que Sócrates propagandeie que os irá realizar.

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  6. Desconhecida's avatar
    honni soit qui mal y pense permalink
    27 Outubro, 2008 20:35

    Há ainda alguns elementos da geração que viveu isso a seguir a 29 , que estão vivos e têm memória .
    Gerações vivas . Tenho ainda dois comigo , um nasceu em 30 o outro em 35 , e fartam-se de falar de dificuldades e carências naqueles tempos…e lá prá frente.
    Lá me passaram a ideia , e sempre fugi de dividas e creditos e cartões e toda essas coisas que fazem a vida mais fácil.Sempre pareceu que haveria mais tarde ou mais cedo um preço a pagar .
    Afinal parece que não era assim .
    Como está tudo na merda , e votam , os Governos vão safar as idiotices e irresponsabilidades de toda a gente, Bancos, auditores dos Bancos e clientes.
    Parece que é o papel do Estado.Deve ser isto o socialismo.
    É apenas um pormenor.E se for preciso até vendem a independência das suas nações.( alguns já venderam , mas dizem que não )

    Estou para ver , mas não tenho muitas ilusões.

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  7. Desconhecida's avatar
    honni soit qui mal y pense permalink
    27 Outubro, 2008 20:36

    A malta quer viver , mas viver á grande , mesmo que não possa.

    Isso é que é o paradigma do Ocidente.

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  8. LR's avatar
    27 Outubro, 2008 20:56

    “A malta quer viver , mas viver á grande , mesmo que não possa.

    Isso é que é o paradigma do Ocidente.”

    Não! Isso é o paradigma do socialismo.

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  9. Ruben's avatar
    Ruben permalink
    27 Outubro, 2008 20:59

    .
    Enquanto a ganância das FINANÇAS PUBLICAS (Governanças) proibirem MEDIDAS PODEROSAS e EXCEPCIONAIS para todas as EMPRESAS ECONOMICAS e aumento do poder de compra SEM AUMENTOS SALARIAIS de TODOS os CIDADÃOS (suspensão do IRS, IRC, IMI e Amnistia Fiscal completa),
    .
    a falência, o desabar das INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS (nacionalizadas ou não) é contínua arrastando consigo a rápida falência das FINANÇAS PUBLICAS e do País que entrará em recessão incontrolada por vários anos. Eis o “black-hole”. A panaceia das descidas das taxas de juro é absolutamente incapaz de resolver a violentissima situação actual vertiginosa.
    .
    O adiamento destas medidas, seja quais forem os pretextos, será cada vez mais ruinosa. Quanto mais tarde menos rapidez de efeitos e rotura/inplosão, mais pobreza.
    .
    É obvio que´até aqui as Governanças andam a usar “Ban-Aids”, pensos rápidos para curar fracturas multiplas.

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  10. Ruben's avatar
    Ruben permalink
    27 Outubro, 2008 23:03

    .
    E HÁ MENOS DE UMA SEMANA PARA EXECUTAR ISTO, por:
    .
    BOLSA ESTOIRADA: $16.3 trillion in stock value lost since Sept. 1, em praticamente 1 mês ….
    .
    CORRIDA AOS BANCOS: Gulf Bank Customers Withdraw Deposits After Losses …..
    .
    http://www.bloomberg.com/apps/news?pid=20601087&sid=aHofkM2HOoYw&refer=home
    .
    E há muito mais. Nem vale a pena falar porque é util não rebentar com a CONFIANÇA que é sol de pouca dura.
    .
    A Governança normal está completamente impreparada para isto.
    .
    Isto é para outro tipo de gente. Homens que estão treinados a agir em Crise, em Risco, no CONCRETO, em Competição totalmente adversa e ganham. Self-made-men, rápidos e segurissimos a agir. Que contam só com eles. De fortissima capacidade de previsão e raciocinio, que SEM SONHOS E VAIDADES do ZERO fizeram FORTUNA contra as FINANÇAS PRIVADAS especulativas e PUBLICAS especulativas que é o que está a ziguezaguear e que colherá o que o que o Post em comentário repete a escrita como “papel quimico” da realidade. Os outros são uteis mas não importantes.
    .
    O Poder tem sempre a possibilidade de se aliar a quem é capaz. Mas a Vaidade e a Ilusão cegam e actuam com a “solução do nada”.
    .
    Nem vale a pena estar a discutir esta CRISE à luz de eleições, está muito além disso.
    .
    Se teimarem resta, como já disse, assistir tranquilamente à QUEDA DA TORRE.

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  11. Ruben's avatar
    Ruben permalink
    27 Outubro, 2008 23:08

    .
    e é claro, esta outra gente nunca precisou do Estado para nada. São raros em Portugal. Mas existem e estão perfeitamente tranquilos porque sabem o que é FORÇA real.

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  12. Ruben's avatar
    Ruben permalink
    27 Outubro, 2008 23:14

    .
    e não se colem que isto é outra variante de Capitalismo que não tem nada a ver com o vosso. É o “LIBERALISMO AVANÇADO COM DIREITOS SOCIAIS DOS TRABALHADORES”. Não é “LIBERALISMO PARASITA DOS DIREITOS SOCIAIS DOS CIDADÃOS” que acabou pelo rolo compressor planetário.

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  13. Desconhecida's avatar
    27 Outubro, 2008 23:21

    “Diz a minha tia Euclidina que a grande maioria da população mundial nem tem nada a perder”.

    Por uma vez, estou de acordo com o sobrinho da Tia Euclidina.

    Pior, há também uma parte significtaiva da população portuguesa (20% a 30%), que também já não tem nada a perder. E esses, poderão ser a “faísca” que fará arder o monte….

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  14. Ruben's avatar
    Ruben permalink
    27 Outubro, 2008 23:23

    .
    adenda a 12,
    .
    onde aparece não sei como “Liberalismo Avançado com Direitos Sociais dos TRABALHADORES” deveria ter aparecido “LIBERALISMO AVANÇADO COM DIREITOS SOCIAIS DOS CIDADÂOS”. Ideologicamente diferente.

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  15. Ruben's avatar
    Ruben permalink
    27 Outubro, 2008 23:30

    .
    Pois é J.

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  16. jose manuel santos ferreira's avatar
    jose manuel santos ferreira permalink
    28 Outubro, 2008 00:54

    Dizia a minha tia Maria Luísa, no alto dos seus 87 anos, que este mundo está louco
    Falta aqui um Salazar
    Eu disse-lhe: olhe que não, olhe que não
    Deserdou-me
    Estou prementemente a tentar reconstituir este desastre
    Como é que eu lhe explico que a crise veio do eeuu ???
    Diz-me logo: dos eeuu ??? O que é que temos a ver com isso ???
    E a globalização ???
    Que se lixe a herança

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  17. Tarzan's avatar
    28 Outubro, 2008 10:43

    Muito bom.

    Só não concordo com:
    «Ressaltaria então a total incompetência da nossa classe dirigente para lidar com uma situação de catástrofe e, fruto do seu eterno e crescente intervencionismo no quotidiano de todos nós, a ela seria imputada toda a responsabilidade, com ou sem razão para tal.»

    Acho que a culpa seria atribuída à falta de paternalismo e não ao seu excesso.

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