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Para além da morte trágica de Sita Valles*

10 Setembro, 2010
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Sita Valles teve uma morte horrorosa. Foi torturada, violada e executada com vários tiros destinados a provocar sofrimento. Conta-se que se portou de forma corajosa e enfrentou os torcionários. E também ninguém duvida que a orgia de violência desencadeada pelo regime de Agostinho Neto depois do 27 de Maio de 1977 foi um crime só comparável aos grandes massacres políticos do violento século XX.
Mas isso não faz de Sita Valles uma heroína. Ou, pelo menos, não devia fazer. Contudo foi muito essa imagem que passou para os jornais aquando do lançamento do último livro de Leonor Figueiredo, Sita Valles – Revolucionária, Comunista até à Morte. Isto apesar de o livro, que mais do que uma biografia é uma reportagem longa, não apresentar a antiga militante e dirigente da UEC – União dos Estudantes Comunistas – apenas como uma idealista sem mácula. Isto talvez porque a obra não nos esclarece sobre o tema mais difícil: o da real responsabilidade de Sita na violência que, na Angola pós-1975, não surgiu apenas com a perseguição dos chamados “nitistas” após o golpe fracassado.
Quem era realmente Sita Valles? Uma revolucionária e uma comunista, como se diz no título do livro. E seguramente uma idealista, como alguns dos que com ela conviveram a descrevem. Mas também uma fanática, como se percebe de algumas passagens da obra e como o seu percurso confirma sem margem para dúvidas. Por isso valeria a pena ir um pouco além do seu martírio para tentar perceber os mecanismos do radicalismo político, sobretudo do radicalismo dos jovens intelectuais que aderem a ideologias extremistas.
O livro ajuda-nos nesta procura de respostas. Nascida em 1951, Sita cresceu na Luanda colonial numa família de origem goesa da classe média alta. Era bonita e inteligente, sabia utilizar o seu encanto e gozava de grande autonomia. Até entrar na Universidade não teve actividade política, na Faculdade de Medicina de Luanda ainda se aproximou de uns grupos maoistas, mas foi em Lisboa, para onde veio estudar em 1971, que mergulhou por completo na militância comunista e na UEC, onde se tornaria uma das figuras de maior destaque ao lado de Zita Seabra. Adepta entusiasta do regime soviético (estava em Moscovo no dia 25 de Abril, a assistir a um congresso), decidiu regressar a Angola no Verão de 1975 para, naquela que considerava a sua pátria, participar na revolução. Em Luanda aproximou-se ao sector ideologicamente mais ortodoxo do MPLA, de clara obediência soviética, encabeçado por Nito Alves e José Van-Dunem.
A adesão de Sita ao marxismo-leninismo foi uma adesão intelectual, muito no espírito do tempo que viveu. E o porquê da sua adesão a uma doutrina “global” é bem retratada nesta reflexão de Marcelo Caetano, apesar desta se referir ao integralismo lusitano: “O jovem, não tendo experiência, rejeita o empirismo. À medida que a sua inteligência se vai abrindo ao mundo das ideias, gosta de conquistar certezas resultantes de raciocínios ou neles apoiadas, quer poder discutir numa argumentação sem falhas, precisa de ter a segurança de uma doutrina bem estruturada”.
As cartas à família, citadas abundantemente no livro, revelam alguém que não duvidava das suas certezas, os muitos testemunhos recordam uma militante com grande capacidade de argumentação e não faltam também os que recordam terem-na desaconselhado de voltar para Angola invocando a sua falta de experiência. Ou seja, a Sita Valles que nos é retratada é muito mais do que uma idealista, é uma militante capaz de abdicar de tudo em nome das suas certezas – e poucas doutrinas “armam” os revolucionários com tantas “certezas” como o marxismo-leninismo. O sectarismo e o radicalismo de Sita, que tantos ódios lhe granjeou na Luanda pós-independência, foi por certo apenas a manifestação exterior desse universo de “certezas” em que vivia.

Até aqui a jovem comunista não se distinguiria muito da grande maioria dos militantes radicais dessa época – ou só se distinguiria por ser mais trabalhadora, mais organizada, mais brilhante e… mais bonita. Só que Sita, em Angola, foi mais do que uma militante. Não restam grandes dúvidas de que desempenhou um papel maior no grupo de Nito Alves e José Van-Dunem. E, apesar de aí este livro ser quase omisso, também não deviam restar grandes dúvidas que este grupo defendia soluções para Angola no mínimo tão radicais, e tão brutais, como as do grupo de Agostinho Neto. As prisões de Angola não ficaram cheias só depois do 27 de Maio. E, no próprio 27 de Maio, durante os confrontos que Sita acompanhou num comando de operações, os “nitistas” também fizeram muitas vítimas (existem mesmo dúvidas se não terão mesmo executado sumariamente alguns ministros afectos à linha de Agostinho Neto).
Que papel teve Sita Valles nestes acontecimentos? Até onde vai a sua responsabilidade na violência política? Este livro, como muitos outros, é omisso. Mas nada nos indica que esta “Comunista até à Morte” tenha sabido, ou conseguido, parar antes de se envolver na violência política – até porque a doutrina em que acreditava previa, e defendia, essa violência política. Mais: como notou Isaiah Berlim em The First and the Last, “causar dor, matar e torturar são actos geralmente condenados; mas se não foram cometidos para meu benefício pessoal e sim em prol de um ismo – socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, de crenças religiosas fanáticas, do progresso, ou do cumprimento das leis da História –, então esses actos são aceitáveis”.

Paul Hollander, que estudou a adesão dos intelectuais ao comunismo em livros como O Fim do Compromisso também notou que “o culto da sinceridade, dos sentimentos fortes, e do desejo de agir consoante os mesmos – quer isto dizer, da autenticidade – tornou-se especialmente pronunciado na década de 60”, uma época em que “a orientação para a acção cativou os radicais e tornou-se a sua marca característica”. Sita Valles era, sem dúvida, uma filha desses tempos, alguém que levou ao limite a condição de “verdadeira crente”, alguém que acreditava numa “doutrina infalível” e, assim, ficava imune não só às incertezas como às realidades quando estas se revelavam desagradáveis. Isso cegou-a – e levou-a a não ver a tragédia que se preparava e da qual seria, ela também vítima.
(Público, 10 de Setembro de 2010)

21 comentários leave one →
  1. 10 Setembro, 2010 22:31

    Tenho lido sobre o assunto. Inteiramente de acordo.

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  2. Arlindo da Costa permalink
    10 Setembro, 2010 22:34

    E se o grupo fraccionário da Srª.Sita Valles se tivesse ganho o poder, qual seria o desfecho para os actuais dirigentes do MPLA da «linha» do Agostinho Neto?

    Qual seria?

    A mesma sorte que os opositores do Pol Pot tinham e que muitos ex-esquerdistas, no qual se inclui o JMF, apoiavam nesses tempos loucos e revolucionários?

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  3. 10 Setembro, 2010 22:52

    Essa gente estava por demais obcecada com o passado. Querendo ser uma Anna Pauker, acabou como Rosa Luxemburgo, ou pior ainda. Nem sequer tenho qualquer dúvida acerca das suas capacidades em engendrar um universo concentracionário. Nesse aspecto, a senhora Mao foi afastada a tempo, evitando contrariedades de maior. paciência, foi o destino que Sita escolheu. Magda Goebbels também foi “uma idealista” até ao fim.

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  4. floribundus permalink
    10 Setembro, 2010 23:23

    na I metade da década de 60 havia na Av de Roma o snack ‘branco e negro’. reuniam-se ali patriotas angolanos de várias linhas politicas. o proprietário era amigo de infância do futuro presidente Neto. na década de 40 levava o amigo a todo o lado e ouvia «lá vem o sacana com o preto». soube por ele que o António era incapaz de dar ordens para torturar quem quer que fosse.
    pertenci à maçonaria e roubaram-me.
    sempre fui ‘cão sem coleira’

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  5. 10 Setembro, 2010 23:35

    #2:

    Conclusão: o marxismo-leninismo é uma ideologia de selvagens.

    Mas isso não justifica o esquecimento da barbárie.

    Assassinaram mais desde a independência do que Portugal em 500 anos.

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  6. António P. Castro permalink
    11 Setembro, 2010 00:06

    Que interessa o que teria acontecido se…?
    A mania de tentar desculpabilizar os tiranos com suposições sobre o que, uma vez no poder, fariam os seus opositores é própria de mentalidades tacanhas que tudo relativizam, com o objectivo de limpar a imagem dos facínoras.
    Ora, Agostinho Neto – que certo despudor, aliado à ignorância, considera ter sido poeta, quando escreveu umas banalidades sem o mínimo valor literário – foi um estalinista impenitente, com direito a lugar cativo entre os nomes mais abjectos da História do séc. XX.
    O caso Sita Valles é apenas uma das provas disso mesmo.
    É arrepiante imaginar o que teria acontecido a Angola se o ditador Neto não tivesse desaparecido na altura em que desapareceu.

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  7. permalink
    11 Setembro, 2010 00:37

    Ninguém tem a estatística dos assassinatos e torturas do comunismo em espaço outrora português,para esfregarnas ventas dos comunista quando falam em Salazar?

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  8. Nuno permalink
    11 Setembro, 2010 03:58


    5.António P. Castro disse
    11 Setembro, 2010 às 12:06 am

    Estou inteiramente de acordo consigo.
    Eu conheci Sita em curtos períodos que vim a Portugal. A polítíca não me interessava mas sexo sim, isso interessava-me.
    Coitada da rapariga, tinha umas amigas que comungavam das suas ideias e lhe faziam boa companhia.
    Era completamente louca.
    Esse livro, que serve perfeitamente para aclarar a época e para mostrar quem foi o pulha do Neto e quejandos, é desnecessário para despir apenas uma peça de menor importância.

    Nuno

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  9. revolta popular permalink
    11 Setembro, 2010 05:22

    O marxismo é todo ele selvajaria

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  10. A. R permalink
    11 Setembro, 2010 11:29

    Não nos devemos meter nisto. O bom comunista encontra sempre bodes expiatórios entre as suas fileiras (quando já não há outros) e estes assumem a sua culpa. Morrem fuzilados alegremente como bom comunistas.

    Paz à alma dos outros!

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  11. lucklucky permalink
    11 Setembro, 2010 11:46

    Uma ideologia que tudo quer controlar tem necessáriamente de ser violenta.

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  12. 12 Setembro, 2010 11:47

    «Que papel teve Sita Valles nestes acontecimentos? Até onde vai a sua responsabilidade na violência política? Este livro, como muitos outros, é omisso.»

    E O JMF também não sabe.

    Portanto, enquanto não se souber, não passa de processo de intenção.

    Que actos criminosos dependeram dela?

    Sem se responder a isto, tudo o resto é zero. E é zero perante a selvajaria que lhe foi feita, sendo ainda uma rapariga tão nova.

    Já que, quanto a fanatismos ideológicos o que mais existem por aí são exemplos.

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  13. 12 Setembro, 2010 11:48

    Exemplos que andam, comem, escrevem e até blogam.

    ( e a boca não é para o JMF que não consta de ter sido fanático). Mas existem por aí e por aqui outros e outras.

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  14. 12 Setembro, 2010 11:52

    Bem, quanto ao Agostinho Neto, por cá o que mais há é homenagem “ao poeta” que até tem direito a estátua em Oeiras.

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  15. 12 Setembro, 2010 11:56

    Quanto ao comentário # 3, do Castelo-Branco, apenas demonstra, mais uma vez, a sua ignorância.

    Que raio de imbecilidade é essa de se comparar a Sita à mulher do Mao?

    Que raio de trampa de poder teve ela e façam lá favor de despejar aqui os crimes que cometeu ou que deu ordens para serem feitos.

    Força.

    Sem isso, o mais que demonstram é que são gentalha tão imoral que até são capazes de bater palmas por esta porte, apenas pelas ideias dela.

    V.s não demonstram fanatismo nenhum. Porque, como outros imbecis disseram, o fanatismo só pode existir se for ml.

    Como v-s são umas bestas não ml, o vosso fanatismo, se fosse levado à prática, só podia dar harakiri.

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  16. 12 Setembro, 2010 11:58

    errata: por esta morte.

    E é bom que se recorde o modo como foi morta. Porque o Agostinho Neto ainda é o grande poeta com direito a salamaleques.

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  17. Pedro Oliveira permalink
    12 Setembro, 2010 22:41

    Conheci a Sita em 1975 no 1o congresso da UEC e so me lembro que era boa como o milho 🙂

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  18. 21 Setembro, 2010 16:26

    na politica é assim mesmo, uns vencem e outros perdem *com o MPLA não se brinca* quem brinca com o fogo se queima foi o q a SITA procurou .

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  19. 15 Fevereiro, 2011 22:36

    Que Horror… ser ignorante deve doer muito não é senhor Nzamba?
    como consegue? ja tentou inteirar-se, ser autónomo? ja?

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  20. Figuras de Estilo permalink
    9 Março, 2011 23:13

    Vida brilhante mas nunca devidamente homenageada! http://figurasdeestilob.blogspot.com/

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