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Allons enfants de la Patrie. Le jour de gloire… de misère est arrivé

20 Abril, 2012
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Em Maio de 1981 François Mitterrand chegava ao Eliseu como o primeiro Presidente da República de esquerda da V República. Muitos viram na sua eleição o contraponto às recentes vitórias de Thatcher em Inglaterra e de Reagan nos Estados Unidos. E Mitterrand tratou, com efeito, de aplicar um programa de governo alternativo, ordenando uma vaga de nacionalizações e recusando a austeridade. O desvario durou um ano, mas causou danos duradouros à economia francesa.

Em Junho de 1997 foi a vez de outro socialista, Lionel Jospin, chegar ao poder. Tornou-se primeiro-ministro e teve como principal bandeira política diminuir a semana de trabalho para 35 horas. Ele era o “socialista de esquerda” que contrariava o glamour do New Labour de Tony Blair. Acabou mal: na campanha presidencial de 2002 nem sequer passou à segunda volta, ultrapassado por Jean-Marie Le Pen. Quanto às “35 horas”, gradualmente abandonadas, ainda pesam na produtividade da economia francesa: em 2000 os custos laborais eram mais baixos em França do que na Alemanha (-8%), hoje são mais elevados (+10%).

Estas duas experiências podiam ter tido duas consequências: uma era terem tornado o PS francês mais razoável e mais realista; a outra era terem ensinado os franceses a desconfiar de políticos sem contacto com a realidade. Nenhuma ocorreu. François Hollande, que tem feito promessas no bom velho estilo de Mitterrand e Jospin, até pode não ser o mais votado, este fim-de-semana, na primeira volta das presidenciais francesas, mas nenhuma sondagem o dá como perdedor na decisiva segunda volta marcada para 6 de Maio.

A França, que já era conhecida por ter a direita mais estúpida do mundo, acrescenta-lhe agora a esquerda mais casmurra e o eleitorado mais suicidário. Não fosse a situação europeia tão grave e talvez achássemos que o mal seria apenas dos franceses, mas estes tempos são demasiado voláteis para ignorarmos a deriva de Paris.

Dificilmente se pode encontrar um mandato presidencial mais decepcionante do que aquele que Nicolas Sarkozy se prepara para completar. Pior só porventura o segundo mandato dessa oportunista nato que deva pelo nome de Jacques Chirac.

O passivo do actual Presidente é elevado. A França perdeu espaço e proeminência em todos os palcos internacionais. Na União Europeia, tornou-se, irremediavelmente, num país que segue a Alemanha em vez de com ela manter uma parceria de iguais. Internamente, Sarkozy não foi capaz de realizar as reformas que prometeu, cedeu por regra à militância sindical e à força de rua, e deixa um país menos competitivo, menos preparado para um mundo globalizado e com as finanças públicas em mau estado. Deixa até a França sem o seu tão precioso estatuto de país AAA.

Como se tudo isso não fosse suficiente, Sarkozy-candidato não tem sido capaz de fugir à mais básica deriva populista, ora agitando o fantasma da insegurança ou da imigração, ora jogando com os medos franceses de uma Europa aberta e franca.

Perante a perspectiva de mais cinco anos de “frigideira”, os franceses parecem dispostos a saltar para o fogo. Directamente. Pela mão de Hollande, por estes dias transformado em esperança derradeira de uma esquerda europeia à procura de rumo. Que nos propõe ele? Primeiro, umas vacuidades sobre o “crescimento” e sobre a necessidade de acrescentar essa valência ao tratado europeu. As suas propostas oscilam entre mais do mesmo – umas project bonds para uns indefinidos projectos transeuropeus de duvidosa eficiência – e a tradicional receita de mais despesa (encontrando formas de a financiar via Banco Central Europeu) e mais impostos (com destaque para uma taxa destinada a castigar um sector financeiro que atravessa evidentes dificuldades).

O pior, no entanto, está reservado para as políticas domésticas. Primeiro, mais contratações pelo Estado, agora uns meros 60 mil professores. Depois, mais subsídios (como um destinado a dar novas habitações aos jovens), mais regulamentação (quer impor a cada bairro um mínimo de “pobres”) e menos mercado (promete congelar o preço da gasolina durante três meses). Apesar de o sistema de segurança social francês ter mais dificuldades do que o português para assegurar as suas actuais coberturas, Hollande propõe-se reduzir selectivamente a idade da reforma para os 60 anos, isto depois de uma gigantesca luta para a fazer passar para uns meros 62 anos.

A cereja em cima do bolo é a intenção de taxar os rendimentos acima do milhão de euros (em França não são assim tão poucos como isso) a 75%. Considerando as contribuições sociais, tal representará quase 90%. O efeito desta intenção já se está a fazer sentir: os franceses mais ricos começaram a mudar as suas residências para Londres, para a Suíça ou mesmo para Hong Kong. Paris tem os seus encantos, mas não vale ficar sem quase todo o rendimento.

O candidato socialista tem, contudo, uma vantagem: é sincero. Uma das razões por que propõe estas medidas é porque “não gosta de ricos”. Tão simples – e tão francês – como isso.

A França é, em muitos aspectos, uma contradição irresolúvel. Ao mesmo tempo que tem o maior número de empresas privadas no Top 500 da Fortune por comparação com os seus parceiros europeus, é um dos países do mundo onde é mais baixa a popularidade da economia de mercado. Como escrevia recentemente a revista The Economist, “a França beneficia da riqueza e dos empregos que as suas companhias globais criaram, ao mesmo tempo que denuncia o sistema que permitiu o sucesso dessas empresas”.

Não é uma contradição recente. Como notou François Furet, o grande historiador da Revolução Francesa, já os jacobinos de 1793, “de quem se esperava que abrissem o caminho à burguesia, deram-nos o primeiro exemplo de burgueses que detestam os burgueses em nome de princípios burgueses”. Desde então o ódio antiburguês tem estado bem presente na cultura política francesa, desde os reaccionários de sempre, nostálgicos dos tempos da aristocracia, aos eternos revolucionários, submetidos a uma obsessão pela igualdade que, por definição, é sempre inatingível. O desabafo anti-ricos de Hollande é apenas uma interpretação moderna de sentimentos que ainda hoje são dominantes, sobretudo entre os eleitorados de Marine Le Pen (extrema-direita) e Jean-Luc Mélenchon (extrema-esquerda).

Em França, também notou Furet, “a ideia de revolução não existe apenas como ideia de passagem de um regime a outro […], mas como uma cultura política inseparável da democracia, e como ela inesgotável, sem limites legais ou constitucionais”. Tem sido por isso que o país se tem revelado tão difícil de reformar, tem sido por isso que cada pequeno passo no sentido de tornar a França mais parecida, digamos, com a Alemanha, é sempre recebido com manifestações gigantescas, senão mesmo com estradas bloqueadas e barricadas.

Custa assim a entender a argumentação dos que vêm dizendo que será mais ou menos indiferente o resultado das presidenciais. Ou, para ser mais exacto, que não há razões para preocupações, já que Hollande tratará de não cumprir as suas irrealistas promessas eleitorais. É uma perspectiva tão cínica como difícil de engolir. É como acreditar que, desta vez, Sarkozy “será diferente”. Ambas revelam o grau de desespero que suscita um país aparentemente empenhado em transformar-se num problema ainda maior do que a Espanha. Um país que se recusa a ver a realidade, que não quer entender que a sua economia não é suficientemente rica para suportar o seu generoso Estado social (apesar do Estado já absorver 56% da riqueza nacional). Um país que parece totalmente impreparado para realizar as reformas que permitiram à Suécia (nos anos 1990) e à Alemanha (nos anos 2000) saírem de crises que muitos disseram insuperáveis.

Público, 20 Abril 2012

19 comentários leave one →
  1. zazie permalink
    20 Abril, 2012 20:29

    «é um dos países do mundo onde é mais baixa a popularidade da economia de mercado»
    .
    Porque são campónios com os pés assentes na terra. A ver se tiveram crash da bolsa como os outros. O tanas, não há por lá campónio a acreditar em cartões milagrosos que nem árvores das patacas.
    .
    Ainda vivem o trauma John Law que levou à Revolução francesa.

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  2. Fincapé permalink
    20 Abril, 2012 21:02

    jmf1957 começou mal o texto, logo nunca poderia acabar bem. Começo falar em contraponto de Miterrand às duas vitórias mais idiotas que o planeta conheceu. No momento dessas vitórias, pouca gente imaginaria que fossem tão perniciosas e transformassem o mundo no cagaçal que ele é hoje. Isso, sim! Um, pôs o seu país a ser governado por uma bruxa. Outro(a), por um copo de uísque. E hoje temos o que temos.
    Sobre Miterrand, seria interessante ir vasculhar nos arquivos o que jmf1957 na altura debitou. Certamente, fortes encómios. O habitual!

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  3. Pável Rodrigues permalink
    20 Abril, 2012 21:28

    Pelos vistos os franceses esqueceram-se das sábias palavras do velho “maquisard”. Questionado sobre a razão pela qual não votava nos partidos de esquerda, esclareceu:
    – C’est que nous avons apri avec le Front Populaire. Quand ils sont au pouvoir, les communistes remplissent les prisons et les socialistes vident les coffres.”
    A confirmar-se a vitória de Hollande, a História recua aos anos trinta. Dizem que ela nunca se repete! A ver vamos..

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  4. Sousa Pinto permalink
    20 Abril, 2012 23:25

    Em França, os socialistas já estão todos a espreitar para dentro do pote para verem o que lá há.
    Vai ser um fartai-vos vilanagem, se se confirmar o acesso ao pote.

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  5. Francisco Colaço permalink
    20 Abril, 2012 23:58

    Sousa Pinto,
    .
    Longe de mim encomiar o Hollande, mas o desempenho económico da França não tem sido de modo algum justificador de qualquer elogio para o incumbente. Basta ver o crescimento da dívida, galopantemente socratino.
    .
    Se o Hollande for eleito e fizer pior, Oh enfants de la patrie, la misère sera bientôt arrivée.(fica como exercício para o leitor encaixar essa letra na Marselhesa, coisa que sinceramente não consigo)

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  6. Francisco Colaço permalink
    21 Abril, 2012 00:15

    Pável Rodrigues,
    .
    Sabe qual é a diferença entre a esquerda e a direita?
    .
    Uma das tendências assume o poder. Desbarata todo o dinheiro, e pede mais a quem tem, e dão-lho liberalmente. As pessoas recebem essa maquia, têm dinheiro nas mãos, sentem-se felizes, acreditam no amanhã e cantam. Festejam e desbaratam como se não houvesse amanhã. E sentem-se bem, confiantes e felizes. Até que têm de pagar o dinheiro, que já ninguém empresta mais um chavo. Sentem-se então traídas pelos givernantes, lamentam o sentido do seu voto e votam na outra tendência, alternando o poder. Instala-se a austeridade, vão-se colocando as contas em ordem, mas a maralha não gosta de não ter dinheiro na mão (pois está a ser canalizado para pagar as dívidas anteriormente contraídas). Mal o país está nos eixos, voltam a exigir os tempos anteriores, de farta mesa e boa festança, à custa, é claro, de mais dívida. E voltam a eleger os primeiros. É um ciclo vicioso dos viciados em dinheiro dos outros.
    .
    A segunda tendência ainda não está no poder em Portugal. Por enquanto somos governados por socialistas tão socialistas como os primeiros socialistas que foram corridos. Mas a populaça gosta, e a dívida pública vai aumentando. A populaça não sabe fazer contas, tanto lhe faz se temos 108% ou 200% do PIB, pois não se sabe o que é PIB se não se o pode cozer com as batatas.
    .
    Não surpreendentemente, e segundo as sondagens, para desespero, choro, pranto e ranger de dentes do Aremandus e do Portela, o Passos Coelho seria reeleito primeiro ministro com apenas menos 3% dos votos que teve caso as eleições fossem hoje. Vendo a comunicação social quem viesse de Marte, algo diferente ser-lhe-ia apresentado, para além do céu azul em vez de cor-de-rosa e das imbecilidades imprevisíveis do António José Seguro e do Carlos Zorrinho.*
    .
    * Estas últimas estultícias têm o condão de esticar, ultrapassar e desarraigar quaisquer limites anteriormente aceites à estupidez humana.

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  7. JCA permalink
    21 Abril, 2012 01:50

    .
    =New treatment for prostate cancer gives ‘perfect results’ for nine in ten men: research
    .
    A new treatment for prostate cancer can rid the disease from nine in ten men without debilitating side effects, a study has found, leading to new hope for tens of thousands of men.
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    http://www.telegraph.co.uk/health/healthnews/9206425/New-treatment-for-prostate-cancer-gives-perfect-results-for-nine-in-ten-men-research.html
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    =German civil servant says he ‘did nothing for 14 years’
    A German civil servant has admitted that he “did nothing for 14 years” in frank retirement email sent to colleagues.
    http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/germany/9200054/German-civil-servant-says-he-did-nothing-for-14-years.html
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    =France raises 2012 growth forecast to 0.7%
    http://www.rte.ie/news/2012/0323/france-business.html
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    =German ‘wise men’ cut 2012 growth forecast
    http://www.rte.ie/news/2012/0315/germany-business.html
    .
    Piigs !?!?
    .

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  8. S.Martins permalink
    21 Abril, 2012 01:51

    vejam bem a austeridade permanente é que é bom, a acumulação de riqueza no topo da pirâmide social que bloqueia a distribuição de rendimentos e a criação de emprego é que é bom, a escravidão do ser humano é que é bom. a ideia de uma alternativa, mesmo que criticável, à austeridade, à pobreza e à escravidão é que é mau.

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  9. 21 Abril, 2012 04:40

    Realmente ninguém morre… com saúde nem deixa o Poder… com sucesso.
    Pois não seria possível fazer exercício equivalente ao seu, com os governantes de Direita?

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  10. 21 Abril, 2012 08:34

    Toc, toc, toc! Alô, josé Manuel Fernandes! A atual política da União Europeia, não só não é a única possível, como, a continuar, vai destruir o projeto europeu. E sim, as eleições em França e na Alemanha podem ser importantes para corrigir a via suicida em que nos encontramos.

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  11. aremandus permalink
    21 Abril, 2012 13:56

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  12. 21 Abril, 2012 13:58

    S.Martins…
    O cavalheiro está com um problema, creio.
    R.

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  13. A. R permalink
    21 Abril, 2012 16:51

    No fim Miterrand também teve a sua Missa depois de se ter passado -seguindo a aposta de Pascal- e ao fim e ao cabo volta tudo ao mesmo.

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  14. J.Silva permalink
    21 Abril, 2012 21:35

    Creio que pecamos todos num pormenor, ou talvez numa falha de atenção : formatamos as análises segundo o padrão “pós-45”, particularmente acentuado a partir da década de 60 , isto é ,a “mercearia” acima de todas as coisas.
    Como dizia o outro, há a manteiga…mas convém não esquecer as metralhadoras.
    E isto numa altura em que os E”U”A se retiraram de campo…

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  15. JCA permalink
    22 Abril, 2012 01:14

    .
    Este diz. Estará Frio > Morno > Quente ou a ESCALDAR ?
    .
    .
    -CAPITALISM WITHOUT FAILURE
    .
    “You had a choice when it came to how you were going to restore confidence in our economy. You could have done it in a way that eliminated many of the industry people and practices that led to the crisis – in which case our confidence would arguably be based on having a more sound financial sector;
    .
    or you could have sought to restore confidence by reinforcing the status quo – systemically dangerous institutions and people who pose a threat to our well-being – by flooding the financial sector with no-strings-attached money.
    .
    You, somehow, chose the latter approach. You chose to protect the wrongdoers at the expense of the victims, you did it with the victims’ money, and you did it in such a way so as to guarantee a future threat to those same victims. That is downright diabolical.”
    .
    http://www.capitalismwithoutfailure.com/2012/04/open-letter-to-chief-confidence-officer.html
    .
    Cada um leia como quiser e q.b.
    .

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  16. neotonto permalink
    23 Abril, 2012 10:53

    Sobre Miterrand, seria interessante ir vasculhar nos arquivos o que jmf1957 na altura debitou. Certamente, fortes encómios. O habitual! . Fincapé.

    Naquela época (na que tudo era juventude e portanto desconhecimento da realidade) a Helena, digo o JMF ainda nao sabia que o Presidente Mitterrand nao mostrava detalhes de sua vida privada: como os dados sobre a descoberta de suas relações com a extrema direita e do governo colaboracionista de Vichy durante a sua juventude, sabiase sim detalhes de sua doença e soube depois da existência de uma filha extraconjugal, Mazarine Pingeot.

    Mais o que ja nunca lhe perdo-ou JMF amem de seguir uma ruta política completamente oposta foi o fatal referendo sobre o Tratado de Maastricht, que conseguiu a aprovação por uma maioria estreita, e o apoio expresso francês para o processo de reunificação alemã que deu um novo impulso à integração europeia.

    Small peanuts.

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  17. neotonto permalink
    23 Abril, 2012 11:09

    Isto sim é o Estado de bem-estar protestante.

    http://www.elmundo.es/elmundo/2012/04/13/economia/1334341361.html

    Portanto de agora em adiante digam Suiça todos os que poem como modelo a Suecia. Suiça, Suiça,Suiça.
    E até um pais muito bem mais “familiar” para os paises-porkitos do Sur…

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