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Se não lerem agora

18 Maio, 2014

guardem e leiam mais tarde pois dada a reinante falta de informação sobre as recentes eleições na Índia este texto de Jorge Almeida Fernandes no PÚBLICO  é essencial:

1. A vitória de Narendra Modi e dos nacionalistas hindus do Bharatiya Janata Party (BJP, Partido do Povo Indiano) marca o fim de uma era. A vitória estava anunciada. A surpresa é a sua dimensão. Desabou o Partido do Congresso, que liderou a independência da Índia, moldou as instituições e governou quase sempre. Só este facto permite falar em “ruptura histórica”. Abre-se também uma situação inédita desde os tempos da antiga hegemonia do Congresso: a oposição parece inexistente.

A avalancha que leva Modi ao poder suscita inquietações nas minorias religiosas — muçulmanos e cristãos — e entre os liberais seculares que temem a “hinduização” da “maior democracia do mundo” e uma deriva autoritária. Em Março, o historiador Ramachandra Guha, impenitente crítico de Modi, avisou os intelectuais que falavam na ameaça de um fascismo hindu: “É sucumbir a um infeliz e prematuro alarmismo. A democracia sobreviverá.”

2. O BJP esteve no poder entre 1988 e 2004 e não aconteceu nenhuma catástrofe. O primeiro-ministro de então, A. B. Vajpayee, pertencia à ala “moderada” do partido e estava amarrado numa coligação heterogéna. Ao contrário, Modi tem uma maioria absoluta e um perfil controverso. Fez carreira na “milícia” hinduísta Corpo Nacional de Voluntários (RSS), vanguarda do nacionalismo hindu desde os anos 1920. Depois, o nome de Modi está associado aos confrontos inter-religiosos e massacres ocorridos em 2002 quando governava o estado de Gujarat. Foi ilibado pelo Supremo Tribunal mas os seus críticos replicam: “Falta de provas é uma coisa, inocência é outra.”

O fascismo é um fenómeno europeu e a prioridade do RSS não é conquistar o poder, sublinha o indianista Christophe Jaffrelot. Quer modelar a sociedade segundo os valores e símbolos hindus, identificar Índia e hinduísmo: é a ideologia da hinduidade (Hindutva). As outras religiões teriam liberdade no foro privado, na mesquita ou na igreja, mas o espaço público seria exclusivo do hinduísmo e seus símbolos.

O BJP tem no seu programa uma parte destas reivindicações, como o Código Civil Uniforme que retiraria aos muçulmanos a aplicação de um direito próprio — designadamente em matéria de família — com base na sharia (lei islâmica). A Hindutva visa desmantelar o modelo secularista indiano, muito mais próximo do multiculturalismo do que do laicismo. Poderia desembocar, na expressão de Jaffrelot, numa espécie de “democracia étnica”.

Curiosamente, durante a campanha, Modi evitou o tema da Hindutva e nunca usou a palavra. Deixou esse trabalho para o seu “braço direito”, Amit Shah, no estado do Uttar Pradesh. Duplicidade? Interroga-se o jornalista britânico Edward Luce: será Modi “um Dr Jekyll e Mr Hyde indiano”?

3. Há uma questão prévia: por que votaram os indianos maciçamente em Modi? Primeiro, ele deu “um horizonte de esperança” e centrou a campanha na economia e no desenvolvimento. Foi impressionante o contraste entre a sua “energia” e a “atonia” do discurso do Congresso, sublinham os analistas. A Índia conheceu um período de espectacular crescimento económico e uma travagem nos últimos dois anos. As expectativas das jovens classes médias são elevadíssimas. A travagem deu lugar à frustração e à denúncia da corrupção generalizada: o Congresso era o alvo.

Modi seduziu as classes médias urbanas com o seu discurso contra a corrupção e com a sua imagem de “administrador”, mas também pobres que antes votavam no Congresso. Não falou no combate à desigualdade social mas na aceleração da mobilidade social. Recebeu o apoio dos meios de negócios, graças à sua política liberal e de atracção de investimentos no Gujarat. A Bolsa entrou em euforia mal surgiram as sondagens à boca das urnas. Muitos vêem nele um “Thatcher indiano”. Promete uma política externa guiada pelos interesses económicos da Índia. E também a afirmação da potência indiana: citando a política do governo de Vajpayee quer o “equilíbrio entre força e paz”.

No dispositivo de sedução de Modi pesa também a imagem que de si construiu: um homem rico mas nascido numa casta baixa, um homem novo não corrompido pelos corredores do poder de Nova Deli, um homem com autoridade — o apelo à disciplina está a crescer na Índia. Convenceu os eleitores de que era a solução para o crescimento da Índia. Foi o que o Congresso não soube fazer.

Resume o influente jornalista Swapan Dasgupta, que colaborou na campanha de Modi: “O contexto de hoje na Índia é o sentimento de declínio da economia, de deriva, de frustração pessoal. Modi escolheu directamente a economia e não falou de coisas abstractas como a ideia de India.”

4. Para onde vai a Índia? Anota Ramachandra Guha: “Modi falou de uma governação firme e eficaz. O RSS tem uma ideia, que é a da Hindutva. O verdadeiro teste só virá depois de ser eleito. A questão é que isto é a Índia não é um Paquistão hindu.” Corrobora o analista Ganesh Devi: “A diversidade indiana funciona como uma válvula de segurança contra todas as formas de ideologias de exclusão. Modi vai talvez tentar promover políticas de clivagem, mas a Índia não o deixará fazer.”

R. K. Swahney, membro de um círculo de reflexão próximo do BJP, declarou ao correspondente do Monde: “Se você não trabalhar com todas as comunidades, arrisca-se a ameaçar a paz e, portanto, a prosperidade económica do país. Ora, nada afastará Modi da prosperidade económica. Ele quer ser o Deng Xiaoping da Índia.”

Jaffrelot tem uma ideia mais complexa. Modi estará sob pressão da “ala dura” dos nacionalistas hindus, a quem deverá fazer concessões simbólicas. A magnitude da sua vitória é uma face de dois gumes. Pode convencer os radicais de que é a oportunidade para concretizar a sua agenda. Por outro lado, deu a Modi uma enorme legitimidade pessoal. E ele mostrou, no Gujarat, que se sabe distanciar do Sangh Parivar (a cúpula do nacionalismo hindu). Vê um risco: “Entrar a Índia numa nova era combinando nacionalismo religioso, osmose entre círculos políticos e meios económicos, personalização do poder.”

A Índia tem uma democracia que é um modelo de estabilidade institucional apto a “gerir o caos”. Tem um eficaz sistema de checks and balances de inspiração anglo-saxónica. O romancista Chandrahas Choudhury considera que Modi abre um imenso desafio mas propõe um olhar histórico. “Em Agosto, a democracia indiana celebrará os seus 67 anos. (…) Olhando para há 20 anos atrás, a democracia indiana parece hoje mais resistente ao vírus das provocações religiosas e da maioria [hindu]. Olhando para trás, para o ponto de origem, a democracia indiana parece hoje muito mais… muitíssimo mais real.”

6 comentários leave one →
  1. lucklucky permalink
    18 Maio, 2014 22:06

    E notícias do Mundo Comunista:

    “BINH DUONG PROVINCE, Vietnam — Dozens of foreign-owned factories near Ho Chi Minh City lay in charred ruins early Thursday after thousands of Vietnamese workers rampaged over China’s latest efforts to control the South China Sea, this time off Vietnam’s coast.

    The riots marked a rare outpouring of popular outrage over China’s increasingly insistent claims to strategically important, resource-rich seas. But in their rage, the Vietnamese workers appeared to misdirect their anger, attacking businesses from countries that took the risk of investing in their nation.”

    E tem esta parte curiosa..:

    “….His electronics factory was spared, he said, only when guards trying to fend off an angry crowd pointed to the Vietnamese and American flags flying overhead.”

    http://www.nytimes.com/2014/05/15/world/asia/foreign-factories-in-vietnam-weigh-damage-in-anti-china-riots.html?

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  2. Expatriado permalink
    18 Maio, 2014 22:14

    India e’ o pais mais desigual do planeta.

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  3. Tiradentes permalink
    19 Maio, 2014 09:23

    Citando um artrópode apedeuta o problema do mundo é ele ser redondo. Se fosse quadrado não haveria “probrema”. E sendo redondo muita gente ainda não percebeu que o eixo sobre o qual gira se deslocou para aquelas paragens (China/india).
    O “regresso” aos “valores tradicionais” pode vir a tornar-se um problema muito grande.
    Brincaram com o fogo quando quiserem pôr tudo em causa com a valorações/desvalorizações materialistas.
    Este é apenas mais um sinal.

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  4. Carocha permalink
    19 Maio, 2014 10:16

    Tiradentes bateu na mouche.!E agora? Estamos nas mãos dos senhores da grana,e no caso desviando.se para o eixo asiático.Vamos baixar a orelhinha mesmo,sim,até quando?desconfio que com o andar da carruagem vai ser ad eternum,para meu grande ,grandíssimo desgosto.Mas vamos fazer o quê?a vontade popular não conta a ponta dum chavelho para esta gente.Estamos é bem lixados.!Coitados dos nossos vindouros.!

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  5. 20 Maio, 2014 11:47

    Há quem diga que esse resultado não é tão histórico como tudo isso – a maioria de deputados do BJP é pouco mais que um acaso derivado do sistema eleitoral indiana e a sua votação (31%) não foi nada de especial:

    http://www.washingtonpost.com/blogs/monkey-cage/wp/2014/05/16/indias-election-isnt-as-historic-as-people-think/

    Indian election result, 2014

    The India, 2014, result: district-level patterns

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