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Agora nós*

6 Março, 2008

«Não teremos mais um canal de novelas.» – declara o ministro Santos Silva a propósito do novo canal de televisão. «A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) ‘aconselhou’ a centenária fábrica das amêndoas de Portalegre a encerrar as portas, por falta de espaço». «Lista de devedores ao fisco publicada na Internet»… Compare-se esta forma de falar e mandar com as vaguíssimas e titubeantes declarações do ministro da Administração Interna ou da Justiça sobre a actual crise da justiça e segurança interna e fica-se chocado com o contraste.

O exercício do poder que tradicionalmente associávamos à Justiça, à Administração Interna ou aos Negócios Estrangeiros ou está envolvido numa descredibilização assustadora – como acontece com as duas primeiras pastas – ou, como ocorre com a diplomacia, é cada vez mais apresentado como matéria resolvida algures em Bruxelas ou atirada para um canto por receio que as opiniões públicas percebam que a realidade não é tão cor-de-rosa quanto lhe dizem. Ninguém quer discutir o Tratado de Lisboa, a presença militar no Afeganistão ou os voos da CIA.

Incapazes e também não interessados em reformar o Estado, os partidos vão assim deslocando a sua acção do país para os indivíduos. O que lhes sobra somos nós. Não por acaso o nosso governo legisla com vigor sobre o teor das gorduras, apela a que chamemos a GNR para que esta averigue se num determinado local alguém está a fumar, publica as listas de devedores ao fisco, decide o que devemos ouvir na rádio e ver na televisão, manda fechar empresas porque as instalações e os bens aí produzidos podem ser do agrado dos clientes mas não obedecem àquilo que uns regulamentos quaisquer determinam. Se for necessário até se reactiva mais uma questão fracturante daquelas que tocam naquilo que nos é mais pessoal e  intransmissível, como a morte ou o sexo, para que os partidos possam mostrar que algo ainda os distingue.

Mas o nosso governo que tão lestamente nos diz o que devemos comer, comprar e até pensar, o mesmo governo que se prepara para nos entrar nas casas – não se prepara o ministro do Ambiente para colocar um chip no caixote do lixo? – e que pretende transformar os advogados e os contabilistas em colaboradores das polícias, este governo tal como o governo aqueles o antecederam e provavelmente como aquele que lhe vai suceder, perde toda a capacidade quando em vez dos cidadãos se confronta com a sua própria máquina. Os governos em Portugal estão reféns dum aparelho de Estado cuja voragem de recursos é enorme. Mas também só ganham eleições prometendo mais serviços e mais benefícios desse mesmo Estado. E assim chegámos à paradoxal situação dos ministérios serem falados não por aquilo que fazem mas sim e sobretudo pelos seus problemas de funcionamento. Pensemos no ex libris disto tudo: a Educação. A tal que suscitou paixões e  investimentos que nada ficam atrás dos que são feitos em países ricos. O resultado está aí num ministério da Educação que deveria antes chamar-se ministério de gestão dos professores, auxiliares, pedagogos e demais técnicos. Porque é isso que ele é. Os ministros da Educação não são contestados ou apoiados por aquilo que fazem ou não fazem em matéria de educação mas sim por aquilo que resolvem sobre as carreiras, os estatutos e os vencimentos dos seus funcionários. Qualquer titular da pasta da Educação desde há muito que deixou de ter a educação como a sua preocupação. Quando é que pela última vez se ouviu um ministro em Portugal a debater conteúdos? Maria de Lurdes Rodrigues nunca até hoje falou sobre a trapalhada da TLEBS. Nunca explicou para que servem muitas das novas disciplinas como a Área de Projecto. Muito menos ela e quem a tem precedido na 5 de Outubro se pronunciam sobre o que de facto se ensina ou avalia. O que quer dizer um ministro da Educação quando declara que o sucesso escolar está a aumentar: que os resultados são efectivamente melhores ou que, muito prosaicamente, hoje se considera aprovado um aluno que há alguns anos se reprovava? Não há tempo nem espaço para discutir nada disso. O que conta é que o aparelho resista a mais esta tentativa de o meterem na ordem. E provavelmente vai ganhar mais uma vez.

Esses sindicatos dirigidos há anos pelas mesmas pessoas, mais essas associações de pais que não só não se sabe quantos pais representam como menos se percebe ainda há quanto tempo andam nessas funções, esses secretários de estado com uns currículos de pura burocracia podem estar momentaneamente separados mas fazem parte todos desse aparelho que se alimenta da obrigatoriedade das famílias portuguesas de colocarem os seus filhos na escola pública. Se o Estado português ousar entregar à escola pública ou privada escolhida por cada família aquilo que custa o mesmo aluno actualmente na escola pública que lhe está destinada  certamente que discutiríamos muito menos as questões de funcionamento do ministério e passaríamos a ter inúemras razões para debater educação. Quem sabe até poderíamos ouvir os ministros da Educação a falar de educação, ensino, exames…

Mas não só isso não acontecerá como qualquer tentativa de reforma dos serviços estatais – seja ela boa ou má – acabará a arrastar-se pelos tribunais. A judicialização da vida política é um dos lados mais perversos da desvalorização dos políticos e da política. Fechar uma urgência hospitalar ou alterar modos de funcionamento duma escola podem ser boas ou más decisões. Mas trata-se de política. Não de justiça. Não existe uma forma mais justa ou injusta de tratar o Serviço Nacional de Saúde. Existem opções políticas. Que prefiramos acreditar que tudo isto é uma questão de justiça e legalidade é revelador da actual vacuidade do discurso político.

Entre uma máquina estatal da qual dependem para ser poder e que não podem nem conseguem reformar e um país para o qual não apresentam um discurso ideológico mas sim de estilo, os dirigentes políticos deslocaram para os cidadãos, para os seus comportamentos, para as suas atitudes o campo onde traçam aquilo que supostamente os distingue.  Era mesmo o que nos faltava.

*PÚBLICO 4 de Março

13 comentários leave one →
  1. Desconhecida's avatar
    Mialgia de Esforço permalink
    6 Março, 2008 16:17

    Fiquei sem fôlego! Excelente texto!
    A Helena quando se aplica é outra coisa, ao contrário daquela treta sem pés nem cabeça sobre o acondicionamento dos porcos.

    Bem sei que o portal do Governo não é das coisas mais excitantes, mas não resisto a inserir o link:

    http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT
    Em sete notícias na homepage, cinco incluem uma foto do Grande Timoneiro. Alguém disse culto da personalidade?

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  2. Desconhecida's avatar
    Teresa permalink
    6 Março, 2008 16:36

    O Primeiro é bem parecido. Por isso as fotos.

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  3. RV's avatar
    6 Março, 2008 16:48

    Bom diagnóstico mas… e agora o que fazer? Produzir menos leis a até eliminar alguma legislação e garantir que se cumpre a existente já seria vantajoso para todos. Significaria, pelo menos, que novos problemas não fossem “resolvidos” pela habitual prosa jurídica a que temos sido habituados.

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  4. Desconhecida's avatar
    trevor permalink
    6 Março, 2008 16:49

    A lista de devedores ao fisco é uma coisa tremendamente divertida, sobretudo quando o estado português,incapaz de cumprir uma das funções do estado moderno – cobrar impostos, deixa prescrever 800 milhões de euros que lhe são devidos.Mas a explicação do ministro das finanças também é hilariante: tratava-se de limpar o sistema fiscal e, de sopetão, aliviar o judicial. Libera nos Domine!
    Abrenuntio!

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  5. frei de jesus's avatar
    frei de jesus permalink
    6 Março, 2008 17:00

    … e as dívidas do Estado – uma «pessoa de Bem» – também estão na Internet?

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  6. C. Medina Ribeiro's avatar
    6 Março, 2008 17:02

    Lembra-se da canção «CHUNGA, CHUNGA», que a Hermínia Silva cantava?
    A parte melhor, é quando ela diz «… Está tudo tarado/Está tudo a pedir/Um pano encharcado!»

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  7. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    6 Março, 2008 17:04

    O primeiro è bem parecido? com que tipo de expressão?
    Quando lhe falam no curso ou preguntam, se assinou os projecyos?

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  8. Contabilista's avatar
    Contabilista permalink
    6 Março, 2008 17:17

    Os 800 milhões que prescreveram não eram devidos ao Estado. O Estado DIZ que lhe eram devidos. Há uma grande diferença. Como também há uma grande diferença entre as liquidações adicionais e as correcções à matéria colectável que a Administração Fiscal faz, e o que o contribuinte efectivamente poderá dever. Basta ver o que se está a passar nos TAF…

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  9. Lololinhazinha's avatar
    Lololinhazinha permalink
    6 Março, 2008 18:21

    Excelente análise.

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  10. piscoiso's avatar
    piscoiso permalink
    6 Março, 2008 18:39

    No aniversário do Público, Miguel Esteves Cardoso tem um texto brilhante sobre os pêlos púb(l)icos.
    Referiu-se aos “chouriços encartados”, que apostava serem textos do género destes da Comissária Helena, enchidos sempre da mesma propaganda política.
    Mesmo retrasado de dois dias, já tem ranço.

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  11. Luis Moreira's avatar
    Luis Moreira permalink
    6 Março, 2008 18:42

    Muito bem Helena! O Estado está bloqueado por interesses que, quando necessário,se juntam !Mesmo os que, aparentemente, estão colocados em posições diferentes.

    Um Estado que está de cócoras perante o poder económico pode estar,ao mesmo tempo,de pé perante os sindicatos e as corporações ?

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  12. Desconhecida's avatar
    bipennis permalink
    6 Março, 2008 19:34

    as tvs existentes são o retiro dos analfas. agora todas têm paneleiros como diz um conhecido advogado no seu blogue. as telenovelas revelam a triste mentalidade deste local mal frequentado, sobretudo pelo lixo humano da politiquice. à frente vai o flautista de Hamlin a conduzir os ratos para o local da comezaina. “eles roem tudo” e os milhões de famintos assistem babados ao banquete. mariano de carvalho escreveu “o povo quer albarda”. baseava-se nas “conversas à mesa” de martinho lutero.não era a mesa de josé valentim e brito camacho, nem a de f. pessoa

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  13. phuongnana's avatar
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