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A ideologia enquanto cegueira*

2 Junho, 2008

Levei a minha infância suspirando por uma operação. Ao apêndice ou mesmo às amígdalas, isto apesar de não apreciar gelados. O que na realidade eu pretendia era uns dias extra de férias e muitos telefonemas da família e conhecidos a informarem-se pressurosos do meu estado de saúde. Mas nada. Nem sequer uma perna consegui partir. Uma perna partida não dava direito a tanto alvoroço em torno da minha pessoa e devia doer um bom bocado mas havia o glamour acrescido das assinaturas e das dedicatórias feitas no gesso pelos colegas. Até se escreviam números de telefone e desenhavam corações com setas! Mais uma vez os ossos não se prestaram a fazer-me esse serviço e até o nariz se recusou àquele número da hemorragia que sempre dava direito a ir mais cedo para o recreio.

Na verdade nem sei como cheguei até aqui sem precisar de apoio psicológico por ter passado a minha infância a ouvir dizer que era sã como um pêro. Cheguei ao estado adulto sem ter entrado num bloco operatório e, sinal do passar do tempo, vivo agora a temer que termine algum dia este meu estado que só tardiamente percebi ser de graça.

Entretanto arreigou-se-me a forte convicção de que a medicina, tal como tudo o mais, está sujeita a modas. Hoje desenvolvem-se correntes como a slow medicine que recomenda aos médicos que equacionem as reais vantagens da prescrição de operações ou tratamentos muito agressivos a pacientes cuja expectativa de vida é baixa e que podem ver comprometida a sua precária qualidade de vida em consequência dessas terapias tecnologicamente muita avançadas mas também muito intrusivas. E quiçá também muito dispendiosas – como contrapõem os críticos do movimento da slow medicine e que nas teses deste movimento e particularmente dum dos seus teorizadores, o geriatra Denis McCullough, vêem antes uma forma de justificar politica e eticamente perante as opiniões públicas as poupanças nas despesas crescentes com a saúde decorrentes do aumento da população idosa.

Assim postas as coisas espero que tenha ficado claro que a mim não se aplica o provérbio de “médico e de louco todos temos um pouco.” No que ao médico respeita, claro.

Não sei nada de medicina e talvez por isso, porque nunca me vi do lado de lá, existem situações que talvez os outros, por se sentirem um bocadinho médicos, entendam mas que a mim me escapam completamente. As operações às cataratas são um caso desses.

O que levará a que em Portugal 75 mil pessoas esperem por uma primeira consulta de oftalmologia no Serviço Nacional de Saúde? E tendo em conta os enormes investimentos materiais e humanos feitos pelo estado português nos seus serviços de saúde será aceitável que 30 mil portugueses aguardem pelo momento duma operação que, ao contrário doutras de utilidade duvidosa como a extracção das amígdalas da minha infância, devolve aos pacientes uma qualidade de vida que eles já supunham perdida? E como entender que nos hospitais do Algarve um médico oftalmologista faça 361 cirurgias por ano e que os seu colegas dos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo façam quatro vezes menos apesar de terem uma lista de espera três vezes superior? 

Perante as embaraçosas notícias sobre as operações às cataratas que vários idosos portugueses vão fazer a Cuba com o apoio dos respectivos munícipios, a actual ministra da Saúde resolveu intervir. Curiosamente a solução que encontrou é também ela uma espécie de cegueira ideológica: Ana Jorge recusou a possibilidade de essas cirurgias serem feitas no sector privado, preferindo injectar  28 milhões de euros no SNS de modo a que os hospitais públicos façam aquilo que não fizeram até agora. Por outras palavras, o  ministério da Saúde vai pagar 28 milhões de euros em compensações a equipas médicas e aos hospitais públicos para que estes elevem a sua produtividade. Tudo isto é vagamente paradoxal. Dentro dum ano não se sabe se, como agora é prometido, já terão terminado as listas de espera para as operações às cataratas mas é mais ou menos certo que gastaremos um pouco mais a nossa cansada vista a tentar perceber o destino destes 28 milhões de euros. E quanto aos irmãos Castro só lhes posso dizer gracias por terem mostrado aos portugueses as vantagens e o poder subversivo do cheque-saúde.

*PÚBLICO

15 comentários leave one →
  1. Desconhecida's avatar
    Mialgia de Esforço permalink
    2 Junho, 2008 12:06

    “…o ministério da Saúde vai pagar 28 milhões de euros em compensações a equipas médicas e aos hospitais públicos para que estes elevem a sua produtividade. Tudo isto é vagamente paradoxal”

    Não, é mesmo assim. Não conhece aquela máxima: não há dinheiro, não há palhaço?

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  2. Luís Lavoura's avatar
    Luís Lavoura permalink
    2 Junho, 2008 12:07

    Conclusão: a Helena preferiria que a ministra tivesse decidido pagar 28 milhões de euros ao setor privado para que este fizesse as operações, em vez de os pagar ao setor estatal para o mesmo efeito.

    Eu não preferiria nem uma coisa nem a outra. Preferiria que a ministra desse os 28 milhões de euros aos doentes com cataratas e lhes permitisse fazer a operação onde bem lhes apetecesse – em Cuba, na Lituânia, no setor privado, ou no estatal.

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  3. Luis Moreira's avatar
    Luis Moreira permalink
    2 Junho, 2008 12:18

    Vai pagar ao infractor!

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  4. helenafmatos's avatar
    helenafmatos permalink
    2 Junho, 2008 12:24

    Exactamente Luís Lavoura. Estamos de acordo. Eu também preferia que «a ministra desse os 28 milhões de euros aos doentes com cataratas e lhes permitisse fazer a operação onde bem lhes apetecesse – em Cuba, na Lituânia, no setor privado, ou no estatal.» Mas a ministra não quis assim. Por razões ideológicas como bem explicou.

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  5. jpt's avatar
    jpt permalink
    2 Junho, 2008 12:30

    Enquanto o estado não garantir mínimos de produtividade nos sector da saúde pública, as listas de espera não acabam. Enquanto o estado pagar a pagar a privados para acabar com as listas de espera, estas nunca acabarão. É preciso listas de espera nos hospitais públicos para que os privados tenham clientes. Muitas vezes são os mesmos médicos a operar nos dois lados. É preciso que o serviço nacional de saúde funcione mal para que a saúde privada dê lucro. Solução: exclusividade obrigatória no SNS; Médicos a ganhar à tarefa.

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  6. Luis Moreira's avatar
    Luis Moreira permalink
    2 Junho, 2008 12:51

    Jpt

    Nem mais!enquanto os médicos não trabalharem em exclusividade para o SNS as listas de espera não acabam!

    Pagar segundo o mérito e a produtividade é a única forma de salvar o SNS!

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  7. Desconhecida's avatar
    a. verneuil permalink
    2 Junho, 2008 12:57

    As razões para os hospitais do sns funcionarem mal têm sido discutidas até à exaustão. Os centros de saúde pior. Sabe-se que os profissionais estão profundamente descontentes excepto os apparatchiks, naturalmente. O pai do sns e outros que berram pela sua sobrevivência do moribundo, apoiados por privados promíscuaos, quando estão doentes, fogem dele como do diabo da cruz, ou então saltam por cima da maralha e dirigem-se aos serviços extra, que por enquanto ainda existem sem passar pelas longas filas e pelas urgências.
    A ministra, não obstante os pézinhos de lã, cega por uma ideologia que já nem no partido do poder existe, vai ter que responder pelos resultados obtidos pelo sns e pelos erros lamentáveis cada vez mais frequentes cometidos no seu seio. Quando os advogados começarem a perceber o filão a coisa poderá chegar facilmente a bruxelas. Os turistas de gama média já perceberam que no algarve por exemplo, podem ter surpresas muito desagradáveis. O contraditório do governo, feito em geral com dados estatísticos falaciosos já não enganam ninguém.

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  8. Luis Moreira's avatar
    Luis Moreira permalink
    2 Junho, 2008 13:18

    A Verneuil

    O SNS é um sistema de saúde que funciona muito bem.Tem problemas como todos os outros têm e continuará a ter se não houver uma clara separação de águas.

    O exemplo que v.dá do Algarve e dos turistas mostra bem que as pessoas falam com dados que estão muito longe da realidade. O Algarve tem 200 000 habitantes que mais do que duplicam nos meses de verão.

    Pergunto: deverá o SNS no Algarve estar dimensionado para 500 000 pessoas durante todo o ano? É que não é possível desmontar hospitais e equipamentos!

    Como vê, no Algarve e no verão, sempre haverá constrangimentos!

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  9. dazulpintado's avatar
    dazulpintado permalink
    2 Junho, 2008 14:25

    Luís Lavoura, você anda tão enganado homem!Não vá muito longe, procure saber como é em Espanha.

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  10. Desconhecida's avatar
    Helena Matos permalink
    2 Junho, 2008 14:38

    Por acaso no Algarve a oftalmologia funciona melhor: nos hospitais do Algarve um médico oftalmologista faz 361 cirurgias por ano. Nos hospitais de Lisboa e Vale do Tejo a média de cirurgias por médico é quatro vezes menor e a lista de espera para as operações três vezes superior

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  11. Desconhecida's avatar
    Raskolnikov permalink
    2 Junho, 2008 14:51

    Vê-se mesmo que nunca, ou quase nunca, esteve doente…

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  12. Luis Moreira's avatar
    Luis Moreira permalink
    2 Junho, 2008 15:05

    As operações ás cataratas “dão” muito dinheiro,não se acredite que é por acaso ou desleixo que há listas de espera.

    A técnica é simples e segura e pode ser executada num consultório médico.Não tem que se pagar anestesista,bloco operatório,instrumentista nem material sofisticado.

    Sempre o vil metal…

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  13. Lololinhazinha's avatar
    Lololinhazinha permalink
    2 Junho, 2008 16:35

    “Entretanto arreigou-se-me a forte convicção de que a medicina, tal como tudo o mais, está sujeita a modas.”

    Não é o tema central do post mas é uma questão curiosa que me parece merecedora de discussão. A medicina está, mesmo, sujeita a modas.
    Um exemplo: quase todos os miúdos da minha idade (dois anos a mais, dois anos a menos) apanharam com o diagnóstico dos pés chatos. Botas caríssimas, tratamentos caríssimo, e até operações horríveis. Antes ninguém tinha os pés chatos e depois daquela época também raramente alguém voltou a ter os pés chatos. Que raio de mania foi aquela?

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  14. Elcaseiimunitates's avatar
    Elcaseiimunitates permalink
    2 Junho, 2008 17:04

    É igual á mania dos aparelhos dentários, não há quem não o use desde que bem comparticipado por sistemas e subsistemas e ainda subsistemas de saude, mesmo que o “paciente” tenha so dó mm de desvio e tenha quase 50 anos.
    Mas dá muito dinheiro sim dos contribuintes:

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  15. Desconhecida's avatar
    ourição permalink
    2 Junho, 2008 23:09

    Luís Moreira,
    Se considera que o SNS é um sistema de saúde que funciona muito bem, você lá sabe. É de facto um sistema protegido à partida por não ser possível, a não ser em casos excepcionais, saber de facto a verdadeira causa da morte de um doente hospitalizado mediante um exame anatomo-patológico decente. Até prova em contrário, morre-se sempre por causas naturais.
    Se pensa não ser possível resolver o problema do Algarve durante o verão, pensa bem, com este SNS de facto não é possivel. Noutros locais equivalentes, andaluzia aqui bem perto, grécia, verá que os problemas sempre se resolvem.
    No dia em que a exigência dos utentes aumentar um pouco, em que os olhos se abrirem, pode ter a certeza que cairão em cima do seu SNS processos sobre processos que para além de todas as irregularidades, despesas sumptuárias com as administrações rosa (de que porventura estará a par) e gastos incontroláveis com infecções pós operatórias em série, para lhe dar só um exemplo, tornarão o sistema inviável. Como saberá os médicos, cientes dos riscos que correm, já se protegeram em parte, mas as instituições não podem fazer o mesmo. Em última análise, serão os nossos impostos a pagar até à insustentabilidade.
    O SNS poderia ter sido um sucesso com outros utentes e outros profissionais de saúde. Uma coisa são os salários chorudos dos profissionais inqualificados que pululam nas urgências outra coisa são os riscos que corre quem lá vai.
    Uma coisa é a média exorbitante que sai ao estado uma consulta num centro de saúde de vão de escada 70 a 100 euros, outra coisa é o desprezo a que são votadas grande parte das pessoas que lá vão mesmo que desgraçadamente nem percebam.

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