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Papel de embrulho*

3 Dezembro, 2008

Acontece exactamente um ano depois da cimeira UE-África, e não é por acaso. No próximo dia 9, o primeiro-ministro, José Sócrates, irá anunciar a criação do África.cont, um centro de arte africana contemporânea em Lisboa. Um projecto considerado estratégico para, explicou ao PÚBLICO o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, “a consolidação de Lisboa como espaço euro-africano“. Ou, nas palavras de António Costa, presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), para “perpetuar esta realidade de Lisboa ser a ponte entre a Europa e África” – lia-se no PÚBLICO do passado sábado. Como em todas as notícias sobre a cultura nascida por alto patrocínio estatal temos o inevitável festival de cinema, a “mesa-redonda com intelectuais e agentes culturais” e um arquitecto estrangeiro que umas revistas igualmente estrangeiras definem como “estrela da moda” e que já cá esteve para ver “o espaço e ficou muito excitado com o projecto”. Oficialmente a gestão será tripartida “com o Estado, a CML e os privados que entretanto aderirem ao projecto a assumir os custos de funcionamento“. Deixando para outra oportunidade esta concepção da CML como um organismo não estatal – concepção indispensável no caso para fazer de conta que, tudo espremido, existe alguém para lá do contribuinte português disponível para sustentar mais este “projecto considerado estratégico” -, o que nos sobra são estas declarações, rigorosamente iguais a outras sobre outros projectos considerados estratégicos e que resultaram em vazio e ridículo.
Assim, de repente, que me recorde, neste ano que agora finda, dois projectos, também eles considerados estratégicos, sumiram-se por entre as brumas das notícias. Por exemplo, alguém se lembra ainda de quando Lisboa ia “acolher o primeiro centro Hermitage da Península Ibérica”? Ou melhor, alguém se lembra de como tudo terminou? Porque entre começar e terminar, a vida do Hermitage lisboeta foi apenas um fogacho mediático: tudo começou em 2006, com notícias que pareciam glosas épicas ao mote dado pelo comunicado do Ministério da Cultura anunciando que Lisboa ia ser o “pólo ibérico do Hermitage”. Entretanto, a penúria agravava-se nos outros museus. Mas nada disso contava. O Hermitage era imprescindível, tão imprescindível que nem se percebia como se tinha vivido sem este protocolo. Em 2007, fez-se a primeira (e também a única!) das três exposições agendadas para Portugal e que precederiam a inauguração do dito pólo ibérico do Hermitage. Em 2008, Mikhail Piotorovsky, director do Museu Hermitage, colocou um ponto final nesta ficção museológica ao declarar: “Percebemos que Portugal não tem dinheiro para este tipo de exposição.” E, sem mais explicações, acabou-se o Hermitage lisboeta. Todo este delírio kremliniano custou aos portugueses um milhão e meio de euros e presume-se que a corte lisboeta do dito Hermitage ibérico deve estar a aprender a fazer chá num samovar – coisa difícil, como se sabe – ou a desmontar marioskas, porque até este momento ninguém se dignou explicar o que levou, em primeiro lugar, a esta opção e depois ao seu encerramento.
O segundo projecto que, parafraseando o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, o Governo considerou estratégico para o país dá ou dava pelo nome de Museu Mar da Língua Portuguesa. Na verdade, não sei que tempo verbal devo usar e muito menos que modo ou até que termos, pois o Museu Mar da Língua Portuguesa é um caso fantástico desse universo do anúncio do anúncio que constitui aquilo a que chamamos “notícias sobre a cultura”, mas que pouco mais são que ampliações sobre notas de imprensa ministeriais e autárquicas.
No final de 2006, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, definia como “projecto prioritário” o Museu Mar da Língua Portuguesa e explicava que o mesmo deveria ser instalado no Museu de Arte Popular. Quanto ao acervo do Museu de Arte Popular (pelo qual o Ministério da Cultura tem mostrado um fastio inultrapassável!), seria nuns dias disperso por vários museus e, noutros, integralmente transferido para o Museu Nacional de Etnologia. Essencial era a localização em frente ao Tejo, pois, além do conceito de “mar da língua”, o museu teria também uma ala que funcionaria como Centro Interpretativo das Descobertas. Tudo parecia perfeito: o Museu Mar da Língua Portuguesa receberia 200 mil visitantes por ano, teria um Labirinto das Palavras, o património seria substituído pela tecnologia e o museu custaria dois milhões e meio de euros, segundo as informações do final de 2006. Em meados de 2007, o Museu Mar da Língua Portuguesa já estava orçamentado em três milhões e meio de euros, mas a data da abertura era dada como certa para Julho de 2008. Em Março deste ano, o ministro Pinto Ribeiro mostrou-se duvidoso sobre a possibilidade de o Museu Mar da Língua Portuguesa ser inaugurado em 2008 e, em Outubro, quiçá numa homenagem à tecnologia de efeitos especiais que desde o seu anúncio o envolve, o Museu Mar da Língua Portuguesa apareceu novamente nas notícias mercê duma deslocalização. Ou, mais propriamente, como o museu não existe, pode dizer-se que enquanto objecto virtual sofreu uma mudança também ela virtual de localização ideal para outra localização igualmente ideal. Ou seja, a localização ideal da beira-Tejo foi agora transferida para Bragança. O autarca desta cidade acredita que “Bragança é o lugar ideal para a instalação deste espaço, porque está na confluência de dois mundos fundamentais da língua portuguesa, Portugal e a Galiza”. Do Brasil e da Galiza já se arranjaram uns nomes para apoiar o projecto bragantino, tal como antes outros tinham apoiado a opção beira-Tejo e falado dela, nomeadamente na imprensa brasileira, como se de facto já estivesse concretizada, porque em Portugal não há nada que prove tanto a excelência duma ideia quanto o facto de ser apoiada por um ser ao qual possamos chamar estrangeiro. Se no próximo ano o Museu Mar da Língua Portuguesa na sua versão lisboeta ou Museu da Língua Portuguesa na sua versão bragantina aparecer como Museu Subaquático da Língua Portuguesa e atirado para uma daquelas fossas atlânticas dos Açores, não causará espanto nem indignação. Porque a política cultural tornou-se uma efabulação sobre anúncios.
Espero bem que o África.cont não seja, à semelhança dos exemplos anteriores, mais uma bola de sabão nascida nessa vacuidade ignorantíssima que tantas vezes se chama “política cultural” e que, mais grave ainda do que usar irresponsavelmente os dinheiros e os bens públicos, se tem servido deles para sustentar clientelas, no sentido romano do termo. Mas temo ter razão. A informação que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a CML fizeram chegar ao PÚBLICO confirma, a par das megalomanias lusas do costume, a concepção, tão típica do Governo Sócrates, da cultura enquanto papel de embrulho

 

*PÚBLICO, 2 de Dezembro

24 comentários leave one →
  1. Zé's avatar
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    3 Dezembro, 2008 09:43

    *Aplausos*

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  2. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    3 Dezembro, 2008 09:44

    Enquanto estes políticos infantilóides andam entretidos com este projecto e com o campeonato do mundo de futebol, a linha de atendimento de emergências 112 perde chamadas e as que atende demora demasiado tempo a atender.

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  3. lucklucky's avatar
    lucklucky permalink
    3 Dezembro, 2008 10:14

    Um Museu “estratégico”… Há qualquer coisa de desespero neste anúncio.

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  4. spartakus's avatar
    3 Dezembro, 2008 10:19

    Tanta excitação, tanta estratégia…tão pouca uva. E daí. O circo está garantido, uns ” trocados ” também e os abixanados entusiasmados.

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  5. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    3 Dezembro, 2008 10:20

    Por este andar, a ponte para África vai ser Madrid!

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  6. Desconhecida's avatar
    3 Dezembro, 2008 10:21

    Temos 500 anos de Africa, não são 500 dias, se há Povo que pode medir meças da presença, somos nós – fomos o centro do mundo em 1500 o que me admira alguns jornalistas fazer tabua rasa da historia, mostra, que mija no carro, em andamento

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  7. spartakus's avatar
    3 Dezembro, 2008 10:22

    No Inem está a resolver-se, Anónimo. Primeira parte: nem se pague mais aos poucos médicos que andam na rua ( e acredita que é mesmo pouco ) como andam a dar aulas aos bombeiros para fazer de médicos. A seguir deve vir o resto. Um satélite de comunicações português tipo Magalhães.

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  8. spartakus's avatar
    3 Dezembro, 2008 10:24

    Aos outros: NUNCA ESQUECER QUE DEVEMOS SOFRER TODOS DO TAL IMPORTANTE COMPLEXO DO HOMEM BRANCO, COLONIZADOR, OCIDENTAL E RACISTA. Atenção, meus Senhores.

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  9. Desconhecida's avatar
    helenafmatos permalink
    3 Dezembro, 2008 10:25

    «Por este andar, a ponte para África vai ser Madrid» -e este centro vai ser uma ponte para África?

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  10. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    3 Dezembro, 2008 10:40

    Qualquer coisa estrategica não pode ser deitda abaixo todos os dias por quem quer antes uma barragem, paga anuncios para o bota abaixo, etc. Existe muita gente má neste país. Gente rasca.

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  11. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    3 Dezembro, 2008 10:53

    Em Foz Coa as pessoas em vez de serem bota-abaixo rascas podiam pensar no modo de preservar as gravuras. Sianlizar, colocar dentro de redomas de vidro gigantes, fazer a barragem e depois levar as pessoas de mini-submarinos fabricados e desenhados pela universidade a ver o pre-historico. Até para a coisa ser mais interessante até podia afundar lá mais uns navios ou desenhar o elvis presley e a amalia no fundo do rio.

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  12. Desconhecida's avatar
    3 Dezembro, 2008 11:40

    «…e presume-se que a corte lisboeta do dito Hermitage ibérico deve estar a aprender a fazer chá num samovar – coisa difícil, como se sabe – ou a desmontar marioskas…»

    No meu caso pessoal, garanto-lhe que não estou a fazer nem uma coisa nem outra…

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  13. Mula da comprativa's avatar
    Mula da comprativa permalink
    3 Dezembro, 2008 12:27

    Aderiram à Europa mas querem-nos em África.Donde nos tiraram e sem bens.Com os resultados brilhantes para toda a gente.
    Não admito aos anti-colonialistas qualquer veleidade por ausência de moral para tal que andem a africanizar o país, a comprar com o dinheiros dos contribuintes as suas elites africanas.Que é disso que se trata.Pagar.
    500 anos em áfrica são para esquecer.Cortar laços.Deseinvestir.É um caso perdido.Que só nos sai caro.
    Os anticolonialistas, os desertores, os sabotadores, os traidores que vão para lá se quiserem mas evitem africanizar e colonizar agora o país.Que só invertebrados sem um pingo de vergonha na cara é que consentem.
    Nunca vi tanto racismo contra brancos como agora e estes gajos das novas oportunidades, empregados de alguns sobas ainda andam a sacar dinheiros os indígenas para áfrica ou para a colonização africana?Deixem-se disso que ainda se vão arrepender.
    Os traidores ao povo Português que deixem de o escravizar para andarem a alimentar ex-impérios lá fora e agora cá dentro.Quemostrem é os números das “ajudas”, perdões”, nacionalização de africanos ao longo dos anos, quantas “pensões” env8iiam para áfrica e quantas de lá vêm…
    Metam as cimeiras e a arte africana no rabo com piri-piri…

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  14. Piscoiso's avatar
    3 Dezembro, 2008 12:50

    Ó pá, o João já fez um post disso a 1 de Dezembro.
    Chiça !

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  15. Xico's avatar
    Xico permalink
    3 Dezembro, 2008 16:44

    Haverá funcionários para o manterem aberto? É que se for como aos museus o melhor é gastarem o dinheiro noutra coisa!

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  16. fado alexandrino's avatar
    3 Dezembro, 2008 17:39

    Cada post é melhor (no sentido de desconstrutivo) do que o anterior.
    Eu se fosse a si começava a pensar em pedir segurança pessoal.
    Está a tocar em gente importante.

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  17. rvb's avatar
    rvb permalink
    3 Dezembro, 2008 17:44

    Nunca gosto do que escreve, mas há sempre a excepção que confirma a regra. Parabéns.

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  18. MJRB's avatar
    3 Dezembro, 2008 18:10

    Salvaguardando as proporções e objectivos, este Centro de Arte Africana Contemporânea vai calar muitas vozes e rasurar escritas contrárias, tal como o Centro Cultural de Belém serenou os seus antigos opositores, muitos deles hoje usufruidores encantados e gratos.

    Lembro-me bem de ler algo de António Barreto sobre o CCBelém designando-o com Centro Comercial de Belém…

    E recusei-me a assinar, por convite, uma petição de pessoas afectas ao PS comtra a sua edificação. Muitos deles já o usaram e enelteceram !…

    Deixem-se de merdas, invistam na Cultura e progridam ! E Viajem ! Tenham mundo !

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  19. Gabriel Silva's avatar
    Gabriel Silva permalink*
    3 Dezembro, 2008 18:21

    Quem vai adorar o novo CAAC é o Sindika Dokolo.
    Ainda é capaz de doar um ou dois quadros…..

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  20. MJRB's avatar
    3 Dezembro, 2008 18:47

    Mr. Gabriel Silva,

    Há muito boa arte africana contemporânea. Garanto !
    (“Estamos” padronizados por conceitos, estratégias, mercados e estéticas europeias e norte-americanas. Esse é o problema que agrava o desconhecimento ou receptividade da arte africana actual).

    E o Centro Africa.con não será recheado só com arte dos PALOPS’s.

    Sindika Dokolo estará representado.

    Talvez Vc. não tenha visto duas excelentes exposições de arte africana contemporânea: uma na Culturgest e outra na FCGulbenkian, em 2004….

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  21. Desconhecida's avatar
    Porco permalink
    4 Dezembro, 2008 04:15

    idem ao #1

    * aplausos *

    Obrigado HFM!

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