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A derrota do imaginário

24 Setembro, 2010

A Suécia será um país tão próspero, cerca do ano 2000, que apenas trabalharão as pessoas que o desejarem fazer, segundo as previsões de um grupo de sociólogos. (…) Computadores e outros aparelhos electrónicos, muito mais avançados que os actuais, permitirão que aqueles que não queiram trabalhar dediquem o seu tempo às mais diversas actividades. (…) Os adultos jovens do ano 2000 sem necessidade de trabalharem para viver rejeitarão o “egoísmo cego” e dedicar-se-ão a examinar os problemas do mundo. Esses jovens, segundo o relatório, não aceitarão a existência de fronteiras entre países industrializados e países em desenvolvimento.” Era assim que em Março de 1969 O Século antecipava o que seria a vida na Suécia no ano 2000. Note-se que O Século era à época um dos melhores jornais portugueses, estava longe de se dedicar ao humor e não nutria simpatia pela astrologia. Logo este artigo surgia aos seus leitores como uma análise ponderada que, aliás, se inseria naquilo que eram nesta época os textos e opiniões sobre a Suécia: uma sociedade quase perfeita.

A Suécia enquanto modelo a transpor para o nosso país sobreviveu nas páginas dos jornais ao marcelismo e ao PREC. Digamos que o nosso compromisso histórico do 25 de Novembro de 1975 era que seríamos certamente socialistas mas à sueca: o Estado na sua figura de grande colector de impostos tornar-nos-ia a todos suave e eficazmente iguais mas sem nacionalizações nem os folclores da Cuba da Europa. Enfim a Suécia estava para o PREC como a Bimby para a cozinha do Mosteiro de Alcobaça: fazia o mesmo, mas o alarido era muito menor. A esta Suécia ideologicamente perfeita juntava-se o imaginário erótico sobre as suecas. Os únicos óbices a tanta perfeição eram as estatísticas dos suicídios e os filmes de Ingmar Bergman que os críticos de cinema incensavam, mas que no público causavam um fastio crescente mas politicamente nada dispiciendo: pois, se um povo que vivia naquela sociedade tão perfeita tinha tais problemas, talvez não fosse mau de todo nós portugueses continuarmos pobretes, mas sem dúvida mais alegretes que os protagonistas das ditas fitas.

Do que foi entretanto acontecendo na Suécia pouco ou nada soubemos. Afinal as sociedades perfeitas não têm História para aqueles que acreditam na perfeição. E, quando a têm, como aconteceu aquando dos assassinatos do primeiro-ministro Olof Palm (1986), da ministra Anna Lindh (2003) e de várias filhas de emigrantes executadas pelas suas famílias por terem querido viver de acordo com as leis da Suécia e não sob as regras dos seus países de origem, os factos eram invariavelmente apresentados como gestos de loucos ou um incómodo borrão no enquadramento político perfeito da ainda mais perfeita sociedade sueca.

A própria notícia de que em 2006 os suecos não pretendiam dar, como de costume, a vitória aos socialistas foi vista como um contra-senso: “Suécia: eleitores felizes, mas prontos a virar à direita“, escrevia intrigado o PÚBLICO em Setembro de 2006. O Partido Pirata, que nesse ano de 2006 irrompera na cena política sueca e que estranhamente, apesar do estardalhaço mediático, teve um fraco resultado eleitoral, ocupou grande parte das notícias do rescaldo eleitoral de 2006 em que os socialistas, ali chamados sociais-democratas, perderam as eleições para os conservadores às mãos duns eleitores certamente ingratos. Pois, pelo menos a avaliar pelas notícias que nos chegavam, só por ingratidão ou parvoíce não se reconduziam no poder os dirigentes responsáveis por tanta felicidade e perfeição.

Em 2010 os socialistas perderam novamente as eleições na Suécia. Desta vez não sabemos se os eleitores estavam tão felizes quanto em 2006, mas isso pouco importa porque de repente descobriu-se que a Suécia estava em perigo: a extrema-direita entrara no Parlamento. Claro que a Suécia passou a contar de imediato entre a sua até há bem pouco tempo ilustradíssima população com um grupo de gente abominável e muito atrasada obviamente responsável por este resultado eleitoral. Quanto mais não fosse, este resultado eleitoral teve o mérito de transformar a Suécia de terra das utopias light num país como os outros.

Seríamos inicialmente levados a pensar que este partido de extrema-direita vai ter o mesmo caminho do agora quase desaparecido Partido Pirata. Mas talvez não venha a ser assim tão rápido, se tivermos em conta os resultados da extrema-direita em países como a Holanda ou a Bélgica, não por coincidência os mesmos onde, nas décadas de 60 e 70, nos garantiam que se tinha encontrado a chave da perfeição. A institucionalização destes partidos de extrema-direita será provavelmente o caminho e nada tem de excepcional. Num passado não muito longínquo e em Portugal bem recente legalizaram-se e desse modo institucionalizaram-se partidos comunistas que estavam longe de defenderem a democracia e a tolerância. Agora mesmo aqui ao lado em Espanha procuram-se vias aceitáveis para enquadrar no jogo democrático os membros da organização terrorista de extrema-esquerda ETA. Por ironia, dado o pendor estatista e proteccionista em matéria económica destes partidos de extrema-esquerda, podem sempre contar com eles os defensores do aumento da despesa pública.

Enfim, para azar do nosso imaginário os suecos têm eleições que nos desfazem as certezas. Em 2010 houve quem descobrisse que na Suécia nada aconteceu como cientificamente estava previsto.

18 comentários leave one →
  1. João Neto's avatar
    João Neto permalink
    24 Setembro, 2010 11:35

    Muito bom.

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  2. Alexandre Carvalho da Silveira's avatar
    Alexandre Carvalho da Silveira permalink
    24 Setembro, 2010 11:55

    Por favor envie um email ao Daniel Oliveira; ele vai adorar este seu excelente post.
    Porque aprendi a ler jornais com “O Seculo”, fui tomado por uma leve nostalgia, e saudades de um excelente jornal, que foi morto e sepultado por esse enorme vulto da Democracia, da “etica republicana”, e da liberdade de expressão, chamado Manuel Alegre. É até a unica iniciativa politica de vulto que se lhe conhece em 35 anos de actividade politica na legalidade: acabar com o mais antigo jornal portugues.

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  3. Eduardo F.'s avatar
    24 Setembro, 2010 12:09

    Johan Norberg, jornalista e historiador sueco, escreveu uma interessante entrada no seu blog a propósito dos resultados das recentes eleições legislativas na Suécia (via O Insurgente).

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  4. Alves's avatar
    Alves permalink
    24 Setembro, 2010 12:12

    O “Século” foi um jornal verdadeiramente republicano, no mais nobre sentido da palavra. Sendo um jornal muito popular, manteve sempre uma clara linha de bom senso e de independência face ao poder político. A Suécia dos anos 60 era um mito poderoso para a “malta” lusitana.

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  5. Arnaldo Madureira's avatar
    Arnaldo Madureira permalink
    24 Setembro, 2010 12:12

    Sempre alguém escreverá no género ficção.

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  6. Eleutério Viegas's avatar
    Eleutério Viegas permalink
    24 Setembro, 2010 13:10

    Parabéns, Helena!

    Sempre a identificar a debilidade mental (ou a atitude de pensar que o público é todo debilóide) de grande parte dos jornalistas.

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  7. EMS's avatar
    EMS permalink
    24 Setembro, 2010 14:18

    “Computadores e outros aparelhos electrónicos, muito mais avançados que os actuais, permitirão que aqueles que não queiram trabalhar dediquem o seu tempo às mais diversas actividades.”
    Derrota do imaginario? Qual carapuça. Isto é profetico.

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  8. Justiniano's avatar
    Justiniano permalink
    24 Setembro, 2010 15:03

    Boa análise, cara Helena! A derrota do imaginário!!

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  9. zazie's avatar
    24 Setembro, 2010 15:30

    Bem, o luck lucky é liberal e preconiza o mesmo se for tudo nacionalizado.

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  10. zazie's avatar
    24 Setembro, 2010 15:32

    Queria dizer privatizado. Até já os confundo, tal são 2 faces da mesma moeda a prometerem as mesmas utopias.

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  11. lucklucky's avatar
    lucklucky permalink
    24 Setembro, 2010 16:35

    Ai zazie zazie, você ainda não percebeu que os problemas/bolhas detectam-se mais rapidamente com quanto menos falsidade tivermos. O Euro é uma falsidade para Portugal, vivemos e criámos uma bolha gigante de dívida ás custas da reputação Alemã.
    O Bloco de Esquerda só existe por causa do Euro…
    Portugal é uma gigante bolha -cheio de preços falsos- provocada por especuladores sociais que desviaram recursos de quem produz e criou riqueza.
    Educação, Saúde, Transportes, Energia. Tudo com preços falsos.
    Pessoas pensam que os preços falsos são verdadeiros logo decidem sempre errado.
    Fazem investimentos errados, escolhem pessoas pelo poder que têm sobre o dinheiro dos outros…
    Os Comunistas e os Fascistas sempre gostaram de preços falsos.

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  12. zazie's avatar
    24 Setembro, 2010 17:41

    Já a grelha aposto que a comprou ao Louçã e depois virou às avessas, para parecer o contrário.

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  13. zazie's avatar
    24 Setembro, 2010 17:42

    Ah, é verdade. E morte ao facismo!
    Viva a Liberdade!
    Que mil mãozinhas invisíveis floresçam no seio das massas!!!!
    O Mercado é Vermelho!!!

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  14. Beirão's avatar
    Beirão permalink
    24 Setembro, 2010 18:11

    Essa tal sociedade ‘quase perfeita’ da Suécia, que lunáticos dos passados anos 60 ficcionavam para para a Suécia de 2000, deu no que deu, com a extrema direita a meter, agora, no Parlamento duas dezenas de deputados, isto é, com os suecos a estarem pelos cabelos com os impostos altos que pagam para sustentar um Estado Social em declíneo, por um lado e, por outro, que estão fartos de tantos imigrantes na sua terra, que se reproduzem como coelhos.

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  15. zazie's avatar
    zazie permalink
    24 Setembro, 2010 20:37

    zazie
    Posted 24 Setembro, 2010 at 17:40 | Permalink
    O seu comentário está à espera de aprovação.

    Percebi, pois. V. é o Paul Lafargue dos neo-tontos.
    Decorou uma micro k7. Segundo as suas micro-explicações, o seu problema deve-se a ter estudado na escola pública.

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  16. Zegna's avatar
    Zegna permalink
    25 Setembro, 2010 00:34

    A Suécia é país em mudança……
    a mudança é uma questão de tempo…..
    Só espero que a extrema direita agora no parlamento não traga ideias que ponham os outros partidos entre a espada e a parede, é que estes meninos da direita vão querer um estado social forte e firme mas só para os suecos. Vai ser bonito…….

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  17. o sátiro's avatar
    25 Setembro, 2010 03:41

    Pesquisa cheia de perspicácia, como sempre.
    Esse “relatório” só demonstra como os sectores intelectuais “progressistas” e de esquerda (lembremo-nos do que era a Suécia em 1969…social-democracia muito “avançada”), são um bando de pantomineiros a prometer constantemente há dezenas de anos ilusões mirabolantes.

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  18. o sátiro's avatar
    25 Setembro, 2010 03:52

    O facto do partido caluniosamente chamado de “extrema-direita” (qual o critério para qualificar partidos????) ter vinte deputados é consequência das novidades do MAIO/68:
    sex-drugs-rock´roll.

    A natalidade diminuíu drasticamente, continuam a ser necessárias actividades como limpeza de hospitais, de serviços públicos, recolha de lixos, além de outras mais “nobres”: no UK, há imensa falta de pessoal de saúde. Primeiro recorreram aos islâmicos; depois de descoberta de médicos terroristas, agora são indianos (até se vêem nos jogos de futebol!!!).
    Logo, a Suécia teve de “importar” emigrantes; os Islâmicos instalaram o fanatismo, arrogância, desrespeito pelas leis suecas, “cultura” da idade da pedra.
    Quem vive ao lado deles, não os aguenta, obviamente.
    A votação não admira nada.
    Por cá, os defensores desta “cultura” vivem longe…muito longe dos bairros emigrantes.
    Se lá vivessem, com a arrogância, traumatismos e pedantismo “dandy”, tipo betinhas cócós do Público, de que sofrem, erá só cheliques tipo tias de provìncia.

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