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Casos exemplares

31 Julho, 2012

Um trabalhador da construção (dos que ainda têm emprego), com 30 anos e pai de dois filhos, ganhava 1000 euros líquidos por mês. Mas o patrão declarava apenas o salário mínimo nacional, sendo este último o valor considerado para efeitos fiscais e da segurança social. O trabalhador entregava a sua declaração de IRS de acordo com os valores pré-preenchidos, resultantes das comunicações feitas pelo patrão ao fisco.
Um belo dia, o trabalhador foi atropelado or um automóvel conduzido por um condutor embriagado, quando atravessava a rua numa passadeira. Três meses no hospital e dois anos de fisioterapia diária foram insuficientes para evitar uma paraplegia e a consequente incapacidade permanente de 100% para o trabalho. A companhia de seguros do condutor (sim, felizmente havia seguro) aceitou a responsabilidade, mas invocou a lei para dizer que apenas pagará uma indemnização calculada com base no salário mínimo nacional, apesar de saber que o atropelado ganhava mil euros líquidos e não 485 brutos. “É a lei“, disseram: “Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.” Rendimentos não declarados ao fisco são rendimentos inexistentes, pelo menos para este efeito. O assunto acabou naturalmente nos tribunais. Logo em primeira instância, o tribunal entendeu que não pode ser assim. O Estado-legislador  não pode privar os lesados por factos ilícitos de indemnização justa sem violar uma série de princípios constitucionais. A indemnização tem de ser calculada em função dos rendimentos reais (ou provados, por qualquer meio de prova) e não apenas dos rendimentos fiscalmente declarados. Ainda que a eventual divergência entre uns e outros constitua uma infracção fiscal, às sanções previstas para essas infracções não pode somar-se outra, ainda mais grave, que seria a redução considerável do valor da indemnização devida.

Inconformado (ou por dever de ofício), o Ministério Público recorreu da decisão para o Tribunal Constitucional. A decisão do TC pode (e deve) ser lida aqui.

24 comentários leave one →
  1. jcwire's avatar
    31 Julho, 2012 14:05

    Caro Carlos Loureiro,

    O seguro por acidentes de trabalho é pago em percentagem do salário. Se o patrão só declarou o salário mínimo, também só pagou o seguro correspondente. A seguradora não pode pagar uma compensação que não está coberta.
    Caso contrário, o preço dos seguros por acidentes de trabalho dispararia.

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  2. jcwire's avatar
    31 Julho, 2012 14:07

    O comentário anterior é meu,
    Joaquim Sá Couto

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  3. Fincapé's avatar
    Fincapé permalink
    31 Julho, 2012 14:20

    Pois, é! Pois, é!
    As preocupações sociais de Carlos Loureiro são de louvar, em tempos de salve-se quem puder e de blasfémias várias.
    Mas há algumas conclusões a tirar:
    – primeiro, muitas empresas fazem o que querem em relação ao rendimento dos trabalhadores, pagando-lhes como lhes dá na gana,;
    – segundo, muitos trabalhadores alinham nisto muitas vezes satisfeitíssimos porque engrolam o Estado e salvam-se de pagar alguns impostos, nunca pensando no dia seguinte. É este facto muito bem aproveitado pelos patos bravos, safando também alguns descontos para a segurança social e não só;
    – terceiro, isto dá um jeitão do caraças ao ultraliberalismo tuga e aos invejosos de maneira geral, que podem comparar falsos rendimentos do privado com os verdadeiros rendimentos dos trabalhadores do Estado, mentindo compulsiva e maldosamente quanto a este assunto (que, aliás, toda a gente conhece – eu, pessoalmente, conheço-o há muitos, muitos anos, sem nada poder fazer).
    Esta última é talvez a razão maior do interesse destes esquemas. Nunca ninguém viu um hiperliberal a criticar este cancro social que é as empresas (algumas, obviamente) aldrabarem os rendimentos dos trabalhadores, com benefícios em toda a linha, menos para os trabalhadores a médio e longo prazo, como é no que se refere à reforma futura, ou no caso de acidente como o referido.
    Incultura, desleixo, estupidez, além de falta de intervenção do fisco e de outras entidades, são algumas das possíveis justificações. O TC pouco pode fazer quanto a isto. Está no fim da linha!

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  4. inthelimbo's avatar
    inthelimbo permalink
    31 Julho, 2012 14:28

    oh SaCouto, o seguro em causa e’ o do condutor do tractor e nao o do atropelad

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  5. inthelimbo's avatar
    inthelimbo permalink
    31 Julho, 2012 14:29

    E se o trator tivesse atropelado uma pesso com rendimentos zero? o seguro do condutor pagava zero?!?

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  6. JPT's avatar
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    31 Julho, 2012 14:54

    “Casos exemplares” é um bom título. Todavia, como é algo ambíguo, permito-me sugerir algumas alternativas: “O bom povo português”; “Não há rapazes maus”; “A jurisprudência do coitadinho”, ou “Ladrão que julga ladrão dá cem anos de perdão”. É, que, por muito que tentemos, há sempre uma história comovente por trás de cada português que (a) aldraba o fisco e/ou a segurança social (a culpa é do patrão e/ou o Estado é um ladrão); b) aldraba o patrão/senhorio/seguradora (faz justiça social); c) arruma em cima do passeio/faz uma manobra proibida/circula em excesso de velocidade/passa à frente na bicha (tem de levar a criança ao hospital e/ou buscar a mulher ao aeroporto); d) cospe para o chão (tem rinite alérgica); e) tira um curso na farinha amparo/assina obras feitas por outros (poupa tempo para prestar serviço público); f) oferece casas aos subordinados/cunhas aos sobrinhos/prestações de serviços à empresa da mulher (é amigo do seu amigo); g) passa atestado médicos falsos (é solidário); h) faz obras ilegais/está aberto depois da hora (dinamiza o turismo); h) recebe dinheiro dos construtores para autorizar obras ilegais (faz obra no concelho/elimina entraves burocráticos); j) declara inconstitucionais reduções nos próprios vencimentos e pensões (assegura o princípio da igualdade)…

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  7. jcwire's avatar
    31 Julho, 2012 15:03

    oh SaCouto, o seguro em causa e’ o do condutor do tractor e nao o do atropelad

    Tem razão. O meu comentário só se aplica ao seguro de acidentes de trabalho que poderia ser accionado num caso destes.

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  8. Me's avatar
    31 Julho, 2012 15:04

    bem , e se o atropelado fosse uma pessoa que não trabalhasse ? um adolescente , uma” dona de casa” ? há aqui qualquer coisa errada , se o seguro não é o de trabalho.

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  9. PiErre's avatar
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    31 Julho, 2012 15:46

    A lei sobrepõe-se à verdade e apoia a mentira. São sinais de que a civilização está em decadência.

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  10. PiErre's avatar
    PiErre permalink
    31 Julho, 2012 15:52

    Fincapé, o maior cancro social é o próprio Estado com as suas arbitrariedades, o seu despotismo e o seu poder de coerção que ninguém lhe outorgou, nem legitimou. Essa treta da democracia é um embuste.

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  11. Portela Menos 1's avatar
    Portela Menos 1 permalink
    31 Julho, 2012 15:58

    Se há empresas sinistras – sem ofensa para os seus empregados – são as seguradoras.

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  12. Fincapé's avatar
    Fincapé permalink
    31 Julho, 2012 16:10

    Pois, PiErre.
    “Essa treta da democracia é um embuste.”
    E quem é que escolhe o ditador. É você ou eu? Eu tinha um amigo que dizia que não seria mau de todo se tivéssemos um ditador porreiraço. Um dos problemas é normalmente não o serem.

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  13. Deko's avatar
    31 Julho, 2012 16:13

    Claro que…

    – O seguro tem que indemnizar a vítima pelo valor que realmente recebia;
    – O segurado tem que pagar os impostos em falta e respetivas coimas;
    – O ‘pato bravo’ tem também que pagar os valores em falta e respetivas coimas e ou multas;

    … Mas tudo isto apenas seria óbvio num numa democracia a sério.
    Não é o caso, por isso ignorem tudo o que acabei de dizer, foi um deliro.

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  14. CeC's avatar
    31 Julho, 2012 16:19

    Isso soa extremamente romantizado, até se saber que o seguro apenas toma responsabilidade de acidentes laborais; o que, sejamos honestos, não foi o caso.

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  15. Figueiredo's avatar
    Figueiredo permalink
    31 Julho, 2012 16:34

    Ganha 1000 e declara 500?
    Já se percebe porque é que a média salarial da função pública é (supostamente) superior ao sector privado!!!!

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  16. jdfernandes's avatar
    jdfernandes permalink
    31 Julho, 2012 16:48

    Agora entendo por que o TC é necessário para estas e outras doutas decisões!

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  17. PiErre's avatar
    PiErre permalink
    31 Julho, 2012 17:07

    Fincapé, a democracia é a pior das ditaduras.

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  18. PiErre's avatar
    PiErre permalink
    31 Julho, 2012 17:09

    Mas o Fincapé deve achar que a democracia é porreiraça.

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  19. PiErre's avatar
    PiErre permalink
    31 Julho, 2012 17:13

    Deko, democracia, a sério ou a brincar, é coisa que só existe na mente dos crentes.

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  20. piscoiso's avatar
    piscoiso permalink
    31 Julho, 2012 17:27

    Vamos supor que Relvas tem um cão.
    Ao atravessar a passadeira, o cão do Relvas é atropelado.
    Como é calculada a indemnização, partindo do princípio que à data do acidente,
    já Relvas era licenciado?

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  21. Emanuel Lopes's avatar
    31 Julho, 2012 17:37

    Penso que há aqui muita confusão de conceitos.
    Pelo que percebi da história, vejamos:
    1. O lesado sofreu um acidente de viação (atropelamento) e a culpa do acidente foi do condutor do veículo.
    2. O condutor do veículo transferiu a responsabilidade civil contra terceiros para uma seguradora (seguro obrigatório), não o seguro de acidentes de trabalho (também obrigatório, que apenas cobre acidentes ocorridos em período laboral ou, nalguns casos, no percurso entre casa e o trabalho) .
    3. A seguradora é trazida à colação para indemnizar o atropelado, uma vez que é a responsável civil (e não criminal) pelo sinistro.
    4. As indemnizações por danos patrimoniais revestem 2 tipos de pagamento (digamos assim), pelos danos causados (cuidados médicos, arranjo do veículo, etc.) e os lucros cessantes, que é o montante que o lesado deixou de receber por ficar incapacitado.
    5. É no âmbito da indemnização pelos lucros cessantes que este caso se inscreve, pois o TC declarou parcialmente inconstitucional a norma, para a qual é fornecida o link no post, que define que os cálculos nos rendimentos do lesado sejam feitos com base no valor recebido e não com base no valor declarado, o que me parece correcto, embora o Tribunal de 1ª Instância tenha feito considerações algo subjectivas quanto às seguradoras.

    Em jeito de conclusão, dá a entender que este artigo foi posto lá pelas seguradoras para pagar menos mas não deve ter merecido qualquer contestação por parte do governo/parlamento, uma vez que este tipo de regulamentação tem sido prática comum. Mas vejamos uma coisa: se o lesado tivesse tido culpa no acidente, não tivesse direito a indemnização e, incapacitado como ficou, tivesse que requerer uma pensão por invalidez à SS, qual seria o valor pelo qual seria calculada a pensão? Pois…

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  22. Zé Carioca's avatar
    Zé Carioca permalink
    31 Julho, 2012 17:59

    E se puserem o “pato-bravo” a pagarem o que falta?

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  23. João Branco's avatar
    João Branco permalink
    1 Agosto, 2012 09:08

    Em resumo (para quem não ler a decisão do TC até ao fim) o TC considerou inconstitucional considerar apenas os rendimentos fiscalmente comprovados para cálculo da indemnização, assim permitindo o cálculo com base em todo o rendimento e não apenas aquele para qual se pagaram impostos.

    Mas agora estou confuso, afinal o TC não era sempre a favor do estado e dos funcionários públicos e contra os funcionários do privado?

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  24. JPT's avatar
    JPT permalink
    1 Agosto, 2012 09:34

    O Legislador é o Estado e o Tribunal também é o Estado. O litígio aqui, é entre dois PARTICULARES: o lesado e a seguradora. O Legislador, no interesse da celeridade processual (pois o mais importante parâmetro indemnizatório fica imediatamente definido por um documento autêntico) e da credibilidade das declarações fiscais, determinou que a única maneira de provar os rendimentos de uma pessoa sejam as suas declarações (fiscais) de rendimentos. Parece-me algo de claro e elementar: é eticamente abjecto declarar, durante anos, que se recebe 475 euros, para se pagar impostos e contribuir para a segurança social, e vir depois dizer que se recebe o triplo (pois 1000 líquidos nunca serão menos que isto) para se vir exigir (a quem quer que seja) uma indemnização. Aliás, quando o obrigado a indemnizar é o Estado, tal questão pura e simplesmente não se coloca (como alguém observou acima). Mas, pronto, as seguradoras são entidades abstratas, notoriamente pérfidas – e que, claro, não farão reflectir sobre os seus clientes (que somos todos nós, por força do imposto de responsabilidade civil automóvel), os custos resultantes desta alarvidade com que o Tribunal Constitucional (na esteira do STJ) resolveu premiar mais uma categoria de aldrabões (nota: isto é uma consideração geral acerca da constitucionalidade da Lei – que é o objecto da decisão – e não acerca da bondade da sua aplicação ao caso em apreço, que desconheço).

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