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A ler

30 Março, 2014

Alberto Gonçalves: Segundo dados do INE, a taxa de risco de pobreza em Portugal aumentou em 2012 para 18,7%. Dito assim, parece justificado o alarme geral e a presença nas televisões de estudiosos aflitos. Porém, ao acrescentar-se, de modo a acentuar as sombras, que a taxa é a mais elevada desde 2005, obtém-se o efeito inverso ao desejado e a coisa muda de figura. Se não erro, em 2005 os poderes públicos tinham acabado de construir uma resma de úteis campos da bola (e organizado o “melhor Europeu da História”), planeado o TGV e prometido o futuro aeroporto de Lisboa, entre outros desígnios nacionais que nos haveriam de conduzir à felicidade eterna. Os tempos, pois, eram risonhos, tão risonhos que o facto de o número de pobres de então superar o actual não incomodava ninguém, ou quase ninguém. E achava-se importantíssimo lembrar que os portugueses, incluindo os menos afortunados, não são números: são pessoas.

Infelizmente, as pessoas em causa vêem-se transformadas em números logo que os seus alegados paladinos necessitam de agitar estatísticas. As dramáticas condições de vida de perto de dois milhões de cidadãos, de resto uma quantidade relativamente estável ao longo da última década, constituem a garantia de uma vida desafogada para as centenas ou milhares que “combatem” a pobreza como se o salário deles dependesse disso.

E o engraçado é que depende. Não falo dos sindicatos, que há muito desistiram de investir conversa fiada nos desvalidos e passaram a ocupar-se dos funcionários do Estado. Nem falo das organizações caritativas, religiosas ou laicas, as quais, com boas ou duvidosas intenções, conseguem alimentar e vestir quem precisa. Falo das fundações, redes, associações e “observatórios” (?) dedicados, assaz naturalmente, a observar a desigualdade e a pobreza – à distância, claro.

Não gostaria de ofender essas prestimosas entidades, mas desconfio do empenho em salvar os pobres quando os salvadores carecem dos mesmos para se alimentar, vestir, pagar a renda, viajar (os voos para reuniões em Bruxelas são indispensáveis) e, em suma, existir. Se não faz sentido um observador de pássaros pretender dizimar as populações de rouxinóis, estorninhos e toutinegras, também não se compreenderia que os observadores da pobreza desejassem genuinamente a erradicação desta. Ou, se quisermos um exemplo familiar ao capitalismo “selvagem” que tanta indignação suscita, seria estranhíssimo que a Pizza Hut se mostrasse preocupada com o avolumar de apreciadores de queijo derretido.

Donde a perversidade da retórica em voga: espreita-se o “telejornal” e leva-se com “técnicos” autodesignados para “analisar” os pobres (da maneira que se analisa os aminoácidos), enquanto desfiam percentagens que “provam” o respectivo crescimento (a pobreza, nova ou velha, envergonhada ou indecente, escondida ou escancarada, cresce independentemente das circunstâncias). A terminar, lançam meia dúzia de “conclusões”, embora sobretudo concluam a urgência em reforçar os apoios às fundações, redes, associações e “observatórios” a que pertencem. A observação da pobreza não pode ficar entregue a pés-rapados.

 

7 comentários leave one →
  1. Joaquim Carreira Tapadinhas's avatar
    Joaquim Carreira Tapadinhas permalink
    30 Março, 2014 21:32

    Começa a ser altura de se deixar as conversas, as análises, as apreciações jesuíticas da miséria e começar a actuar, a pôr mãos à obra. Porque passados os momentos de leitura condoída das desgraças, os que têm melhores condições de vida continuam a desfrutá-las e os infelizes continuam sem agasalho. Já basta de corações condoídos e de mãos inertes.

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  2. fado alexandrino's avatar
    30 Março, 2014 21:55

    É o abono de família do on-line do DN.
    Ultrapassa sempre a centena de comentários com uma percentagem de insultos que deve roçar os 80%.

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  3. Oalves's avatar
    Oalves permalink
    30 Março, 2014 22:35

    Hoje já ultrapassa as 6300 visualizações e 115 comentários e já deve ter rebentado com o figado de uns quantos “democratas” do insulto.

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  4. Castrol's avatar
    Castrol permalink
    31 Março, 2014 00:48

    Na Mouche!!!

    A lembrar a célebre frase: “Portugal é o País onde Camões morreu de fome, mas onde muitos enchem a barriga à custa de Camões”…

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  5. Joam Roiz's avatar
    Joam Roiz permalink
    31 Março, 2014 03:03

    Ressalvando o facto de que se “a taxa de risco de pobreza em Portugal aumentou em 2012 para 18,7%”, muito dificilmente se possa deixar de considerar que o número de pobres também aumentou (embora não haja uma relacção directa causa efeito entre as duas variáveis, a percentagem de aumento da primeira variável é suficientemente alta para que se não tenha produzido, pelo menos, uma redução mais ou menos significativa do rendimentos das classes mais desfavorecidas ), são muito plausíveis as considerações tecidas neste artigo. Com efeito, a pobreza não se analisa à lupa e o que seria do sistema económico vigente se deixasse de haver pobres para o sustentar?
    Indignei-me aqui.

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  6. carolino's avatar
    carolino permalink
    31 Março, 2014 09:33

    Mesmo pelos paises mais ricos por onde andei, encontrei sempre pobres, mas os pobres desses vivem melhor.

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  7. Atento's avatar
    Atento permalink
    31 Março, 2014 10:27

    Helena.
    Lembra-se de um dos slogans do PS aqui há uns anos que era «primeiro as pessoas». Não se diziam quais as pessoas… Se da Mota Engil, para onde foi o Coelhone e que depois beneficiou da negociata através da qual o estado assumiu a gestão de duas auto-estradas falidas, se, enfim….
    Como você diz de forma lapidar, «… donde a perversidade da retórica em voga…».

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