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Quem é o deputado que o representa?

27 Maio, 2015

No sistema eleitoral português esta pergunta não tem resposta. Ou melhor, as respostas possíveis são “todos os 230 deputados” ou, o que é o mesmo, “nenhum”.

De acordo com o artigo 147.º, n.º 2 da Constituição, a Assembleia da República “é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses”. No entanto, ao contrário de outros sistemas eleitorais, de acordo com o artigo 152.º, n.º 2, “os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos”.

As eleições legislativas servem, em teoria, para eleger deputados. Na prática, porém, a generalidade dos eleitores não vota em candidatos a deputado mas em partidos, uma vez que as listas de deputados são em regra definidas pelas cúpulas partidárias, sem qualquer participação dos eleitores ou sequer dos militantes. A escolha dos deputados não é muito diferente da escolha dos jogadores da selecção portuguesa de futebol: o seleccionador escolhe os jogadores e espera-se depois que os cidadãos a apoiem e se identifiquem com ela apenas porque é composta por jogadores portugueses.

No sistema constitucional português só os partidos podem candidatar-se a eleições, estando excluída a possibilidade de grupos de cidadãos apresentarem candidaturas. Diferentes razões justificam esta limitação, sendo as mais relevantes evitar o risco de pork barrel (ou “queijo limiano”) e facilitar a identificação do eleitorado com os programas genéricos dos partidos.

Alem disso, de acordo com a lei eleitoral, as candidaturas são apresentadas em listas fechadas, por círculos eleitorais plurinominais, de dimensão variável em função do número de eleitores em cada círculo, o que dificulta ainda mais a identificação entre eleitos e eleitores.

Não falta, por isso, quem defenda a alteração das leis eleitorais, seja para aumentar a representatividade e a identificação dos eleitos com os eleitores (através da criação de círculos uninominais, algo que a Constituição permite, no artigo 149.º, mas que a actual lei eleitoral não prevê), seja para aumentar a proporcionalidade e minimizar o desperdício de votos (através da criação de um círculo eleitoral nacional, o que, curiosamente, a Constituição – ao contrario da lei eleitoral – também permite, no n.º 2 do mesmo artigo).

Porém, dada a exigência constitucional de uma maioria qualificada de dois terços dos deputados, qualquer alteração à Lei eleitoral pressuporia um acordo entre os maiores partidos, o que, como é óbvio, não se afigura provável nos próximos tempos.

A actual situação enviesa gravemente o sistema político português: nas eleições legislativas, a generalidade dos eleitores não vota em deputados, mas em candidatos a primeiro-ministro, ignorando, com frequência, a identidade do cabeça-de-lista do partido em que vota no seu próprio círculo eleitoral. Não espanta, por isso, que no PS se tenham realizado directas para a “escolha do candidato a primeiro-ministro”, apesar de o primeiro-ministro não ser formalmente eleito pelos cidadãos.

Se isto reforça a a legitimidade democrática do Governo, contribui, ao mesmo tempo, para a falta de legitimidade do parlamento e para o relativo descrédito que, por razões diversas, vêm afectando aquele órgão de soberania desde o século XIX.

Agrava este cenário o modo como as listas de deputados são elaboradas: sem transparência e com critérios de mérito inescrutáveis.

Não serve de desculpa para este comportamento dos partidos a impossibilidade de qualquer um deles, mesmo com maioria absoluta, alterar as leis eleitorais. Seria possível, dentro dos próprios partidos, dar pequenos passos para aumentar a representatividade dos deputados e a sua identificação com os eleitores, mesmo sem alterar a lei eleitoral.

Um modelo possível (que não o único: pense-se na votação interna para definir a ordem dos candidatos escolhidos pelas direcções partidárias, na votação para a escolha dos cabeças-de-lista ou outras formas de participação directa dos eleitores e/ou militantes na elaboração das listas) foi o adoptado pelo Livre/Tempo de Avançar – que, neste ponto, merece ser elogiado – ao decidir que os candidatos a integrar nas listas e a respectiva ordem serão escolhidos com base em eleições primárias (semi-abertas), apesar dos riscos que isso representa para os seus dirigentes (designadamente o risco de não serem colocados em lugar elegível) e para o próprio partido (o risco de serem colocados em lugar elegível candidatos menos predispostos para acatar bovinamente a “disciplina de voto”).

Reconhecendo que o risco seria bem maior em partidos com outras aspirações de poder, veria com agrado o modelo do Livre/Tempo de Avançar (ou um dos modelos alternativos indicados) ser replicado noutros partidos, designadamente nos da coligação governamental e no PS. Apesar dos riscos de governabilidade que tal modelo poderia implicar, a representatividade dos eleitos seria fortemente reforçada e o desinteresse pela política de uma parte significativa dos cidadãos que aqui referi noutro post (ainda mais grave em Portugal do que em Espanha) poderia, finalmente, começar a inverter-se.

14 comentários leave one →
  1. Joaquim Carreira Tapadinhas's avatar
    27 Maio, 2015 15:29

    Andamos a ser enganados há muito tempo. Mas nós gostamos, ou se não gostamos, pelo menos, não nos importamos. Logo, parece que ninguém quer mudar o sistema. Tontos, mas muito democratas, lá vamos às urnas, até que chegue o caixão.

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  2. castanheira antigo's avatar
    castanheira antigo permalink
    27 Maio, 2015 16:15

    Os oligarcas dos partidos escolhem os deputados ( homens de mão) e os media fazem a propaganda para que a “manada” os eleja . No fim “corre tudo bem” , os oligarcas ganham poder e dinheiro , os deputados ganham poder e dinheiro e os “cronies” ganham dinheiro e mantêm o poder .
    Quem se lixa é o povo que ganha cada vez mais impostos , cada vez mais desemprego e cada vez mais dependente do “estado”/oligarcas e assim cada vez mais escravizado e menos livre .

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  3. JS's avatar
    27 Maio, 2015 16:21

    “…bovinamente…” diz bem, deputados e eleitores.
    Uns não representam quem dizem representar.
    Os outros colaboram no jogo … ou não.
    Uma Irresponsabilização institucionalizada cujo resultado está à vista.
    Um salve-se quem puder legalizado, em nome da Santa Estabilidade.

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  4. Procópio's avatar
    Procópio permalink
    27 Maio, 2015 16:34

    Eu sei lá que é esse gajo?
    Será que isso interessa mesmo na presente situção?
    Não me parece

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  5. Gabriel Silva's avatar
    Gabriel Silva permalink*
    27 Maio, 2015 17:19

    Muito bem CL
    Mas nesta legislatura e com estes deputados já em fase final de tudo fazerem para assegurar um lugar elegivel na listinha do Chefe, a coisa já não mudará nada.
    O actual sistema de nomeação de deputados é o mais parecido que temos com uma ditadura: um chefe mantem um coorte junto a si, a qual se terá de manter mais ou menos de acordo com ele, de forma a assegurar que sejam indicados para as listas ou a nomeação apra um qualqwuer cargo futuro, (público ou privado). Dessa forma o Chefe mantem não apenas o poder, como assegura a matilha sossegada internamente, pois dele tudo depende.
    Que se aceite e se conviva com tal coisa é algo de extraordinário.

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  6. katy's avatar
    katy permalink
    27 Maio, 2015 17:30

    O Povo mobiliza-se quando se trata de futebol, e é-lhe totalmente indiferente para quem os representa ou governa, isto reflecte um povo iletrado que sofre duma monumental iliteracia do mundo, que começa precisamente na Assembleia da Republica. Título já antigo:”Os deputados são preguiçosos, incultos e eleitos de forma errada”

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  7. Marquês Barão's avatar
    Marquês Barão permalink
    27 Maio, 2015 18:29

    Tudo a monte até faz sentido só para os deputados fantasmas votarem ao montão.

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  8. Juromenha's avatar
    Juromenha permalink
    27 Maio, 2015 21:33

    As eleições legislativas servem, neste jardim à beira-mar plantado, para legitimar quadrilhas…
    O chefe de uma delas,bicharel “doublé” de desenhador camarário ( abaixo de cão, seja dito de passagem ), ocupa actualmente o quarto 44 de um peculiar estabelecimento hoteleiro eborense…

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  9. sm's avatar
    28 Maio, 2015 00:04

    E a democracia? Com este sistema no Reino Unido, os Conservadores elegeram 50,9% dos deputados mas apenas tiveram 36,9% dos votos… Os Liberais-Democratas elegeram 1,2% dos deputados mas tiveram 7,9% dos votos…

    E a representatividade? Se fores PSD vais-te sentir representado por um deputado PS? Se fores CDU vais-te sentir representado por um deputado PSD? Se fores BE vais-te sentir representado por um deputado CDS?

    A ideia dos círculos uninominais é uma tentativa para melhor perpetuar os interesses dominantes que nos levaram a este estado de país.

    O nosso sistema político não é mau e não é responsável pelo estado do país. O que é mau e é responsável é quem nos tem governado. Mudar de sistema político para os círculos uninominais não vai melhorar o estado do país, vai é melhorar a perpetuação dos actuais interesses dominantes.

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  10. Rui's avatar
    Rui permalink
    28 Maio, 2015 01:13

    Não me parece muito relevante essa falsa questão (na minha opinião) do “deputado que me representa”. Eu quando voto, voto num partido, não voto num deputado. Existem países em que efetivamente se vota num deputado e isso não tem dado propriamente resultados melhores que aqui os portugueses. Por exemplo no Brasil, onde existe este sistema de se votar em pessoas em vez de se votar em partido, um dos deputado com mais votos foi o “Tiririca” e recentemente também elegeram o ex jogador de futebol Jardel. Sinceramente não me parece que o caminho a seguir seja por aí, seria mudar alguma coisa para continuar tudo na mesma (ou pior).

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    • Francisco Miguel Colaço's avatar
      28 Maio, 2015 12:07

      Rui,

      O coletivo é melhor para si que o indivíduo?

      Quem elegeu o Tiririca quis o Tiririca porque «pior do que está não fica». Votaram em quem quiseram e têm a representá-los quem escolheram livremente.

      Em Portugal, o deputedo não é escolhido pelo povo, mas pelos líderes parretidários, a quem, desde logo, devem a lealdade. Tente dizer que gostaria de votar no segundo da lista do seu parretido, mas não que o cabeça-córnica-de-lista nem banhado a água de colónia! Tente, pior, dizer ao «seu» (qual?) deputado que necessita de defender os interesses da sua terra!

      O Daniel Campelo foi o último que o tentou fazer. Já ouviu falar dele depois do caso Limiano? Pois é! Nunca mais os seus eleitores, agradecidos ou não, o viram a escrutínio para votarem nele nas listas do parretido por onde tinha sido eleito.

      O caminho a seguir é mesmo esse: os círculos uninominais, mas com a ressalva de possibilidade de «recall elections» se uma maioria de 2/3 dos eleitores do seu círculo o manifestar. Vão ser eleitos burgessos? Sim, e em número suficiente para um espetáculo de circo. Bolobos, sim, mas não piores no essencial do que aqueles que hoje lá estão.

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  11. piscoiso's avatar
    piscoiso permalink
    28 Maio, 2015 11:03

    Quando voto num Partido, tenho a preocupação de ver quem são os deputados. É certo que não posso eleger os deputados escolhidos pelo Partido, mas posso não votar neles e ir votar noutro Partido, que tenha um deputado que me possa fazer um jeitinho.

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