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Xanax flambê

27 Julho, 2017

hamburg

 

“Saia de casa, conviva com os outros, viaje, corra, pratique desportos de combate”. Qualquer pessoa que já tenha lido um daqueles textos levezinhos com dicas para lutar contra a ansiedade, o stress ou a depressão, sabe que estes são alguns dos ingredientes sempre presentes nessas receitas. Embora não tenha nada a apontar a estas actividades, sinto por vezes alguma dificuldade em conciliá-las e encaixá-las na agenda semanal: se vou viajar, não posso levar o saco de boxe para descarregar uns murros; se aceito o convite para uma festa, no dia seguinte estou de ressaca e não consigo ir dar uma corrida; se passo umas horas a aliviar as frustrações no ringue, fico sem energias para sair à noite e conviver; e assim sucessivamente, como dizia o João César Monteiro.

Estava eu sentado no sofá a reflectir sobre estes dilemas (em casa, longe dos amigos, parado e sem estar a bater em ninguém – ou seja, a chocar uma coisinha ruim), quando me chegam pela televisão as imagens da batalha campal de Hamburgo, enquadradas no âmbito da Cimeira do G20 realizada naquela cidade alemã. Fez-se luz: ali estava uma carreira profissional, a de activista ambiental, anti-guerra, anti-sistema, anti-globalização e anti-capitalismo, que, exercida com seriedade, pode salvar a minha saúde mental. Viajar por todo o mundo, seguindo os vários encontros do G20, do G7, da OMC, do FMI, da NATO, em harmonioso convívio com milhares de outros activistas, correndo desalmadamente à frente das forças policiais e praticando todo o tipo de artes marciais contra pessoas, viaturas, montras comerciais e mobiliário urbano diverso, é uma forma coordenada e coerente de aplicar de uma só vez toda a terapêutica recomendada. A coerência é, aliás, um dos principais atributos deste tipo de movimentos. Atravessam fronteiras físicas e virtuais para combater a globalização, espalham o caos e o terror para afrontar a guerra e deixam as cidades por onde passam literalmente a arder para tentarem contrariar o aquecimento global.

Em Hamburgo, e considerando as inclinações proteccionistas de Donald Trump, senti apenas falta de uma marcha contra o comércio livre liderada pelo Presidente norte-americano e acolitada por Black Blocs e pelo Boaventura de Sousa Santos. E gostava que tivessem feito ainda mais fogueiras. Para mim, que sinto sempre alguma dificuldade em acender a lareira lá de casa, é um consolo assistir a tão rápidas e eficazes tácticas de ignição.

 

11 comentários leave one →
  1. Procópio permalink
    27 Julho, 2017 16:14

    O que há mais é fogueiras a arder
    http://observador.pt/2017/07/27/zeinal-bava-o-dr-ricardo-nao-me-estava-a-dar-nada-que-nao-tinha-oferecido-a-outros/
    Até alguém se queimar uns vão à missa e outros são condecorados.

    Vocês gostam de cinema?

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  2. piscoiso permalink
    27 Julho, 2017 16:36

    Finalmente um texto de agradável leitura.

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  3. Alain Bick permalink
    27 Julho, 2017 16:45

    Morte e Vida Severina
    de João Cabral de Mello Neto
    «Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte Severina
    que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte Severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar alguns roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra

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  4. Raghnar permalink
    27 Julho, 2017 17:04

    Entre estes e os liberalóides defensores do “comércio livre”, mas que assistem impávidos e serenos à injecção de milhares de milhões de dinheiros públicos em empresas que eram ex-libris desse mesmo tipo de comércio, não fazem um de jeito.

    Toda a liberdade tem limites ou deixa de ser liberdade…

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    • 27 Julho, 2017 19:09

      “É proibido proibir !”
      Liberdade com limites equivale por exemplo a vc. foder uma tipa boazona vendo-a no calendário.

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      • Raghnar permalink
        28 Julho, 2017 08:27

        Não, liberdade sem limites é libertinagem, e a maioria das vezes viola a liberdade dos outros.

        Tudo tem limites, foda incluída…

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  5. Arlindo da Costa permalink
    27 Julho, 2017 17:51

    Très chique, este artigo.

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  6. 27 Julho, 2017 19:03

    Excelente, VCunha !

    E JCésar Monteiro, sempre !

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    • The Mole permalink
      28 Julho, 2017 16:32

      Sim “excelente”, ou talvez “muito bom”.. mas não foi o VCunha a escrever…

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