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do falso descentralismo como roubo centralista

11 Fevereiro, 2019

Através do tweetter, o Pedro Bragança @pfbraganca desenvolveu uma thread (série de tweets) sobre a chamada «descentralização», analisando dois casos emblemáticos: o Iapmei e a AICEP.

Série de 31 tweets muito esclarecedores.

Aqui se publica, com a devida autorização do autor a quem agradecemos.

Título do post da minha responsabilidade.

 


1. O menu teórico da descentralização consiste na transferência dos centros de decisão e do capital, de modo a distribuir os benefícios gerados pela presença do Estado no território e a mitigar os efeitos adversos da concentração em Lisboa.

2. É uma espécie de regionalização domesticada, já que consiste numa concessão de poderes e distribuição geográfica das organizações, mas não admite a criação de um nível administrativo intermédio, autónomo e legitimado pelo voto popular.

3. De um ponto de vista estritamente teórico, é difícil contestar um programa político tão aparentemente bem intencionado. Mas proponho avançarmos um pouco mais, de modo a conhecermos em proximidade o modelo de “descentralização” concebido por Lisboa.

4. Apresento o caso da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) e do Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e à Inovação (IAPMEI), duas organizações (EPE e IP) “descentralizadas”.

5. AICEP e IAPMEI têm as suas sedes descentralizadas no Norte. A opção parece fazer todo o sentido: são instituições de apoio às empresas e à internacionalização e é no Norte que se encontra a maior densidade de PME e, particularmente, de PME com potencial exportador.

6. As duas fontes de financiamento destes organismos são, essencialmente: (1) o Orçamento do Estado, em comissões de gestão definidas em Portaria pelo Conselho de Ministros e (2) fundos comunitários.

7. Dentro dos fundos comunitários, temos duas proveniências principais: (1) Compete – Programa Operacional Factores de Competitividade, que financia projetos geridos pela AICEP e pelo IAPMEI, e (2) Programas Operacionais Regionais (POR), que financiam custos operacionais.

8. AICEP e IAPMEI são organismos técnicos intermédios que gerem a execução de programas e têm custos de funcionamento relacionados com a análise de candidaturas e com o apoio a empresas. São estes custos de “Assistência Técnica” (nomenclatura comunitária) que os POR financiam.

9. Dos programas Operacionais Regionais (POR), o Norte é o que o mais contribui, como é possível verificar na tabela. Entre 2015 e 2017, por exemplo, o Norte 2020 aprovou 853 884,86 € de “Assistência Técnica” para a AICEP, enquanto o Lisboa 2020 aprovou 374 214,49 €.

10. Já em relação ao IAPMEI, o Norte 2020 contribuiu com 3 193 265,06 €, mais do que qualquer outra região. Lisboa 2020 contribuiu com 918 205,61 €.

11. Parece aceitável. Não só dadas as diferenças entre programas, mas, também, considerando que as sedes se encontram no Porto, logo, os benefícios económicos da sua presença (e.g. criação de emprego) centrar-se-ão também no Porto. Certo? Veremos.

12. Segundo a Direção-geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), a AICEP tem 464 trabalhadores e o IAPMEI tem 340. Sendo uma EPE, a AICEP está sujeita a regras de transparência e abertura de informação ao público, o que nos permite conhecê-la melhor por dentro.

13. Os 464 trabalhadores da AICEP estão geograficamente distribuídos assim, segundo o balanço social. Ou seja, este organismo “descentralizado”, pago maioritariamente por fundos comunitários destinados à região mais pobre do país, acaba a gerar mais emprego em… Lisboa.

14. É ainda preciso ter em conta que os 233 postos de trabalho gerados em Lisboa são tendencialmente mais qualificados e mais bem pagos do que os 55 do Porto.

15. E na soma global de custos com pessoal, prestadores de serviços e fornecimento de serviços externos, como é que se distribui geograficamente a presença da AICEP? Qual é a região que mais beneficia com este organismo “descentralizado”?

16. Tendo em conta o relatório contabilístico da empresa, em 2017, a sede nacional, no Porto, soma 7 086 299,85 €, enquanto a “delegação regional”, em Lisboa, soma 30 020 143 €.

17. E onde é que este organismo “descentralizado” vai às compras? Consultando a base de dados de contratos públicos, as conclusões são evidentes: a AICEP prefere Lisboa, onde contrata 60 vezes mais do que no Porto.

18. E em relação ao IAPMEI, o outro organismo “descentralizado”, serão as coisas muito diferentes? Não são. No mesmo período que a delegação regional de Lisboa contratou 20.240.785€, a sede, no Porto, contratou 1.298.749€, 16 vezes menos.

19. A análise aos centros de decisão da AICEP (CA, SG, direções e departamentos) aponta no mesmo sentido. Seria de supor que a sede servisse para concentrar funções, mas, neste caso, o Porto não tem mais do que uma secretaria de atendimento ao público. Já na “delegação”…

20. Conselho de Administração, Secretaria-geral e todas as direções da AICEP estão sediadas na “delegação regional” de Lisboa. No Porto, onde oficialmente está a sede, nada. É uma espécie de descentralização da descentralização. Inception!

21. É, por isso, fácil de compreender as exigências logísticas da delegação regional de Lisboa, para a qual um edifício inteiro na Av. 5 de Outubro já não era suficiente.

22. Mudou-se recentemente para a Torre B Entrecampos 28, onde ocupa mais de metade da área. São instalações amplas e luxuosas, que incluem o último piso.

23. Esta torre foi recentemente comercializada pela Savills e pela Worx e está anunciada com um custo mensal/m2 entre €16 e €18. Assim, os mais de 3000m2 ocupados pela “delegação regional” de Lisboa da AICEP podem custar entre 576 e 624 mil euros / ano.

24. No Porto, a “sede” da AICEP apresenta-se mais modesta. Um par de apartamentos no decrépito Parque Itália, mesmo ali entre o Beautiful & Happy Day Spa, o MindGrow Hipnose Clínica e Life Coaching e a Taróloga Bruna – Orientação Espiritual.

25. O IAPMEI, dizia eu, sendo IP, tem dados mais fechados. Mas, ainda assim, há indicadores paradigmáticos. Dos 62 anúncios colocados na Bolsa de Emprego Público, 61 dizem respeito à “delegação regional” de Lisboa e apenas 1 à “sede”, no Porto.

26. Estes são apenas dois exemplos. Poderíamos estar a falar da Portugal Ventures, da PME Investimentos, ou de tantas outras instituições públicas supostamente descentralizadas, cuja sede é pouco mais do que um apartado.

27. As sedes no Porto são fachadas com objetivos claros: primeiro, captar fundos comunitários destinados à região mais pobre de Portugal; segundo, desviá-los para Lisboa. Digamos que são uma espécie de offshores de fundos comunitários.

28. Tal como há empresas que mudam a sede para beneficiarem de apoios, tal como há aldrabões que montam esquemas para beneficiarem do apoio às vítimas dos incêndios, tal como há deputados que dão moradas fictícias para ganharem mais subsídios…

29. Neste caso, tudo ganha contornos particularmente nojentos. Os fundos do Norte2020 são apoios destinados à região mais pobre do país, com um PIB per capita de 64% da média da UE, e estão a ser desviados para a única região portuguesa mais rica do que a média da UE.

30. É, no fundo, uma chico-espertice tuga: engana-se a UE, como aconteceu no passado, com o famoso mecanismo spill-over, que valeu a condenação do Estado Português no Tribunal de Justiça da União Europeia…

31. …cria-se a ilusão de que há um processo efectivo de descentralização em marcha; manipula-se as estatísticas; alimenta-se o discurso político. Mais do que uma ficção, é uma fraude com a assinatura da Sagrada Igreja do Centralismo.

14 comentários leave one →
  1. Luis permalink
    11 Fevereiro, 2019 14:22

    A ideia base da descentralização proposta pelas «elites» é esta: os agentes do desenvolvimento são os autarcas e um possível exército de burocratas e políticos regionais. Dizem que tirando poder a Lisboa o interior desenvolver-se-á. Ora nada mais falso e pernicioso. Os agentes do desenvolvimento são os empresários e os seus trabalhadores, os trabalhadores independentes, e as instituições da sociedade civil, em comunhão com boas instituições públicas. O que a regionalização esconde de perverso é a criação de uma miríade de novos cargos políticos e novas empresas regionais, a par com novas empresas de prestação de «serviços» ao novo poder regional. Quer queiram quer não, isto é um aumento encapatodo da despesa pública e do endividamento público. Para se ter noção onde nos vamos meter, nada como olhar para Espanha. A Andaluzia, que tem quase as dimensões de Portugal e mais de 7 milhões de habitantes, é um Estado dentro do Estado, com mais de 500 mil funcionários públicos regionais! Na Catalunha, o Governo Regional «comprou» o funcionalismo, onde se incluem os professores, com regalias e criou uma teia de dependências onde se incluem associações «culturais» e empresas prestadores de serviços. A dívida catalã é considerada «lixo» pelas agências de rating e rondará os 76 mil milhões de euros, o equivalente ao resgate da troika a Portugal. A esta dívida regional deve-se acrescentar a quota parte da dívida do Estado espanhol, que anda a caminhar para 100% do PIB, muito acima daquilo que é recomendado. Os espanhóis lá vão aguentando por serem um país com uma economia muito mais produtiva, mecanizada, e com mais escala, em suma, são muito mais ricos que nós. Mas por cá não há sequer dinheiro para esta aventura, será que não percebem? A regionalização tem de ser travada. Daqui a dez anos, quando vier a factura, não se queixem.

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  2. Luis permalink
    11 Fevereiro, 2019 14:32

    Se soubessem um pouco de História e Geografia do país não diziam as barbaridades que dizem. O problema do Interior e do Sul vem do tempo dos Descobrimento e da expulsão dos judeus e dos cristãos-novos. Portugal, ao contrário do Reino de Aragão, não tinha muitas elites burguesas cristãs. Quem dominava a nível local algumas actividades (artesanato, manufacturas) e profissões (boticário, cirurgião, cobrador de impostos, almocreve) eram judeus, conversos e descendentes de mouriscos (daí a expressão trabalhar como um mouro). O Império também provocou um despovoamento enorme. Mais tarde, as guerras da Restauração, a expulsão dos jesuítas, as Invasões francesas ou a Guerra Civil agravaram esta problema antigo. Como são socialistas, tanto os do PSD como os do PS, não percebem que a solução do interior passa pela fixação e criação de verdadeiras elites burguesas, de gente com algum capital que produza, empregue e exporte! Neste momento dois terços do país são terra queimada e a população vive à custa do Estado, pois os maiores empregadores são a autarquia, o Estado Central (escolas, centro de saúde) e as IPSSs (que vivem parcialmente à custa do Orçamento), e além disso temos ainda a grande massa de pensionistas, cuja pensão vem… do Orçamento de Estado! Ora agora expliquem-me, como a Regionalização vai resolver isto? Não vai! Isto só se resolve criando mecanismos de atracção para o interior (impostos mais baixos, por exemplo) e formando trabalhadores e empresários que saibam explorar a «terra» (gente que perceba de Agricultura, Indústria, Floresta e Turismo). E para fazer isto, não é necessária nenhuma Regionalização.

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  3. Velho do Restelo permalink
    11 Fevereiro, 2019 15:29

    Enfim, Portugal é Lisboa, o resto é paisagem e pagantes … muitos pagantes!
    Por mim, na próxima “banca rota” (muito próxima mesmo), vendemos Lisboa !

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    • Luis permalink
      11 Fevereiro, 2019 15:36

      Lisboa já está à venda há muito tempo! É ver os palacetes e casas a cair nas mãos de franceses, americanos, chineses, russos ou fundos imobiliários estrangeiros. Os herdeiros não têm capital para restaurar, outros querem pegar no dinheiro para «boa vida» (têm esse direito, mas não deixa de ser prejudicial para o país como um todo esta erosão de certos valores relacionados com a propriedade privada). Então e a venda maciça de ouro das famílias? E os leilões em Espanha dos recheios das casas?

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  4. Luis Lavoura permalink
    11 Fevereiro, 2019 16:50

    Estes dois exemplos não são exemplares da descentralização que o governo atualmente tem em marcha – concessão de novos poderes às Câmaras Municipais. São antes exemplares de uma coisa diferente – colocar as sedes de organismos estatais na província. O facto de esta última coisa poder ser, como nos casos estudados, apenas poeira atirada para os olhos, não implica que toda e qualquer descentralização o vá ser também.

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  5. LTR permalink
    11 Fevereiro, 2019 18:05

    “As sedes no Porto são fachadas com objetivos claros: primeiro, captar fundos comunitários destinados à região mais pobre de Portugal; segundo, desviá-los para Lisboa. Digamos que são uma espécie de offshores de fundos comunitários.”

    Alô manada de jornalistas!
    Está aí alguém?!

    Quem era o imperador de Lisboa quando o governo sacou 1500 milhões do QREN ao norte?
    Para onde foi essa massa toda? Deve haver obra para mostrar e contabilidade organizada, não?

    Como é possível estes gajos andarem com a descentralização na boca há anos e vocês calarem-se?

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    • 11 Fevereiro, 2019 18:46

      Isso !

      Sou “do” Sul, mas não tenho quaisquer problemas em reconhecer que a zona Norte (não me refiro somente à Área Metropolitana do Porto) tem sido seriamente prejudicada.

      Regionalização com a “categoria” deste maralhal de políticos com defeitos, incompetências e patifarias endémicas e sem cura, nunca !

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  6. Leunam permalink
    11 Fevereiro, 2019 19:40

    Pois eu acho que devíamos ter a Regionalização e quanto antes.

    Assim teríamos fábricas em todos os Distritos e em todos os Concelhos empregando imensa mão-de obra.

    Indústria principal (para não dizer única):

    Fábricas de TACHOS e mais TACHOS.

    A tecnologia já existe e grandes especialistas não faltam.

    De que é que estão à espera?

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  7. JgMenos permalink
    11 Fevereiro, 2019 19:45

    A classe política de Lisboa quer familiares e amigos empregados por perto…

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  8. Vitor permalink
    12 Fevereiro, 2019 01:01

    comparem o orçamento da câmara de Lisboa com o dos restantes municípios do país e vêm o que é centralização a sério…

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  9. MJRB permalink
    12 Fevereiro, 2019 03:03

    ..

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  10. Vasco Silveira permalink
    12 Fevereiro, 2019 12:43

    Muitos parabéns pelo excelente estudo: está tudo dito, e qualquer explicação adicional não acrescenta nada.é o “case study” da descentalização/regionalização em Portugal.
    Por muito que se chamem “delegações regionais” às instalações de Lisboa, e a sede seja noutra região do país, qualquer organismo terá sempre em Lisboa o grosso da sua actividade interna( empregos, instalações e gastos de funcionamento), mesmo quando o objecto dessa actividade se encontra, como se verifica nestes dois casos, noutra região do país, com uma duplicação de despesas para manter a aparência de “descentralização”.

    Vasco Silveira

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  11. Maria da Luz Moutinho permalink
    12 Fevereiro, 2019 15:11

    A regionalização e o regionalismo, com parte cultural já que alguns escritores o nomeiam nas suas obras literárias, como: Aquilino ribeiro, Camilo, Araújo Correia, Vitorino Nemésio entre outros…
    Lisboa é o centro do furacão …o TNT, as autarquias é um ver se te avias!!

    Mas é um tema sempre pertinente a Regionalização … Um assunto que já tem “barbas de metros” e foi tratado sempre pelos políticos de forma sucessivamente adiada … e farseada…muita parra e pouca uva!!
    Só sei que as assimetrias profundas deste país cada vez mais notórias … De um Litoral densamente populoso e onde as oportunidades de educação, saúde, emprego etc… são mais favoráveis e contemplam um mercado mais abrangente, enquanto vemos um interior mais pobre numa agricultura de subsistência, bem como o encerramento de escolas, centros de saúde, a taxa de desemprego elevada e outras condicionantes na evolução equitativa deste País…
    Sei que a regionalização traz o compadrio … o aproveitamento … mas se repararmos ele já existe … e de que maneira!!

    Com esta, vêm os referendos… mas como todos os referendos … se não existe informação … conhecimento … são meramente para desperdiçar dinheiro … venham para o interior … muitas pessoas votam nos partidos e candidatos por indicação de outrem …

    Sei que a descentralização é importante porque os políticos do poder Central estão alheios e muitas vezes aquém das realidades das populações…

    Sei que há uns tempos atrás seria a favor … agora tenho as minhas dúvidas não … porque não iríamos votar para as regiões … mas sim em partidos e não sairíamos da “cepa” torta …não iria beneficiar certamente em nada … no entanto, penso que a ordem social, política e cultural que visam valorizar e promover todos os aspectos inerentes, recursos das regiões comunidades de base, deviam ter maior predominância para o seu desenvolvimento …

    Se a descentralização e Regionalização fosse feita há, séria, alguns anos atrás …Estaríamos hoje mais desenvolvidos e o bem comum da Nação estaria a funcionar? …uma incógnita que permanecerá mais uns anos…

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  12. 14 Fevereiro, 2019 11:16

    Viva a transparência.
    Venha a próxima bancarrota.
    Já estou a fazer nós nuns laços para o pescoço, para depois distribuir por esta malta. eheheh

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