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O ditador conveniente*

31 Janeiro, 2008

Suharto, claro. Foi-o para vários estados. Como os EUA que viam nele um aliado da realpolitik. Para o Vaticano que não ignorava ser a Indonésia o mais populoso país muçulmano do mundo e, que no meio da crescente radicalização do Islão, se mostrava comparativamente tolerante para com os católicos. Foi-o também para Portugal onde a brutalidade das  tropas indonésias nos poupou a maiores explicações sobre o nosso papel naquela tragédia. E para os próprios timorenses cujo calvário às mãos dos indonésios lhes ofuscou as suas próprias responsabilidades nos acontecimentos de 1975 pois quando as tropas indonésias entraram em Timor já a violência e a brutalidade estavam instaladas.

Os portugueses descolonizaram como colonizaram: atabalhoadamente e com verdadeiro espírito colonial. Em 1975,  donos que tínhamos achado das colónias, declarámo-nos interessados em trespassá-las a quem apresentasse um projecto ideológico, devidamente sancionado como progressista pelas autoridades que então mandavam ou julgavam que mandavam na Metrópole. Mas por Timor, definido em Agosto de 1974 por Almeida Santos como «um grande transatlântico imóvel que nos custa muito dinheiro», nem os satélites da URSS nem dos EUA pareciam dispostos a mover-se. A própria Indonésia, para desconcerto de Lisboa, não parecia interessada em Timor. Em Lisboa fala-se claramente do «desinteresse» da Indonésia por Timor. Porque  se algo resulta claro das declarações dos descolonizadores é a convicção inicial de que a melhor solução para Timor seria a integração na Indonésia: «Eu, francamente, não gostaria de que o saldo do nosso império colonial viesse a ser apenas uma permanência na Indonésia, ocupando metade da ilha de Timor.» – conclui em Agosto de 1974 Almeida Santos, numa entrevista ao Expresso. Pouco depois de fazer estas declarações o ministro viajou para Timor onde a ele tal como aos outros que lhe repetem o périplo libertador, por Díli, Luanda ou Lourenço Marques, se vai tornando evidente que a realidade não se compadecia com a meia dúzia de boas intenções que traziam alinhadas sobre a descolonização e o nascimento radioso de novas pátrias. Desgraçadamente a falta de preparação da geração dos descolonizadores era ainda maior que a dos colonizadores, com a agravante para os descolonizadores que não só não dispunham dum servil aparelho de Estado como se confrontavam com um calendário político a que a cada dia que passava parecia que mãos febris arrancavam páginas.

Menos de um ano após as declarações de Almeida Santos a situação alterara-se radicalmente. Timor já não era «um grande transatlântico imóvel» mas sim um território onde os diversos movimentos combatiam ferozmente entre si. Donde partiam as famílias dos pouquíssimos militares e funcionários portugueses que se encontravam destacados no território. E donde um governador à beira do desespero enviava apelos para Lisboa onde nem sequer sabia se alguém os lia ou ouvia: «Isto é um SOS: Estou cansado de ver pessoas a morrer» – avisa a 24 de Agosto o governador Lemos Pires.  Fala de mulheres e crianças assassinadas. De refugiados bombardeados pela FRETILIN no porto de Díli. E diz também que aguarda a chegada duma delegação de Lisboa com plenos poderes. No dia seguinte Lemos Pires lança um ultimato: «Só poderei aguentar-me até amanhã.»

Em Belém, a Comissão de Descolonização reúne de emergência quem sabe olhando desconcertada para os velhos mapas do império e não percebendo tal como outros, naquele mesmo local, não tinham percebido antes deles, que brincar aos países tem custos inimagináveis. Por esta altura, Agosto de 1975, em Belém já se sabia que a Indonésia se mostrava interessada. E que de Lisboa podiam sair delegações mas os plenos poderes esses já não existiam.

Em Dezembro desse mesmo ano o interesse da Indonésia manifestava-se sobre a forma de ocupação. Portugal encontrara finalmente o seu ditador conveniente: Suharto. O homem a quem finalmente, numa espécie de frenesi e alívio patrióticos, todos os portugueses podiam odiar e condenar.

*PÚBLICO, 29 de Janeiro

11 comentários leave one →
  1. 31 Janeiro, 2008 10:34

    Parece daquelas estórias que se contam às criancinhas para adormecerem.

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  2. Mialgia de Esforço permalink
    31 Janeiro, 2008 11:04

    Cara Helena,

    Na mouche. Na linha do resto da descolonização.

    Os assessores do Pê Ésse devem estar a aparecer por aqui para a contestação do costume.

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  3. Anónimo permalink
    31 Janeiro, 2008 11:07

    O candidato ao Nobel é Durao Barroso

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  4. António Lemos Soares permalink
    31 Janeiro, 2008 12:26

    Helena;

    Artigo excelente.
    O fim de um Império ou de outra coisa qualquer, tem sempre, na verdade, o seu quê de patético e de trágico. Algo há de absurdo, de triste.

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  5. 31 Janeiro, 2008 13:00

    “O 1º de Abril ainda vem longe!
    «Durão Barroso nomeado para Nobel da Paz».
    Deve ser por causa da cimeira dos Açores!…” Vital Moreira

    Precisamente o primeiro pensamento que me veio à ideia.

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  6. 31 Janeiro, 2008 15:15

    “Deus não pode alterar o passado, mas o historiador pode” – Samuel Butler, poeta inglês.

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  7. lololinhazinha permalink
    31 Janeiro, 2008 15:43

    Olha, olha, o Mr. Hyde andou escondido!

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  8. JoseMonti permalink
    31 Janeiro, 2008 19:09

    Timôr/Indonésia.
    Portugal:«uma crónica alergia à responsabilidade», ouvido quarta no palácio da Independência (Rossio),na apresentação do livro “Dossier Regicídio” pelo dr Rui Rangel.
    1975 – Timôr:duas razões para a não resolução de problema, duas não decisões:
    a)Falta de qq directiva de Lisboa: nem abandonar (a quem?) nem impor a ordem (para quê).
    b)Falta de coragem no local para decidir impor a ordem: só que o governador não esteve para arriscar repor a ordem à força. A pequena força de pára-quedistas, estou convencido, era perfeitamente capaz de o fazer. Claro que com as armas e alguns tiros. E eventualmente com algumas baixas nos movimentos.
    O que o governador não foi capaz, foi de arriscar uma iniciativa da sua responsabilidade.
    Podia não agradar aos seus ‘superiores’ hierárquicos em Lisboa. E lá se ia a sua disciplina e futuro militar.

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  9. justiça de fafe permalink
    31 Janeiro, 2008 20:52

    A tragédia de Timor é, em grande parte, da responsabilidade de Portugal.
    Com a febre de descolonizar tudo-mesmo com custos gravíssimos para os “colonizados”-, o 25 de Abril empurrou os timorenses para a tragédia.
    Timor nunca teve movimentos de “descolonização”. aliás, Almeida Santos, na viagem a Timor referida, chegou a afirmar que nunca tinha visto tanto amor à bandeira portuguesa.A epidemia de independências alastrou a Timor e provocou a guerra civil: assim, hipocritamente, respiraram de alívio com ainvasão da Indonésia e passaram a acusar Suharto.
    Creio que a Helena descreve muito bem esta tragédia.

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  10. justiça de fafe permalink
    31 Janeiro, 2008 20:54

    Começa um desporto típico lusitano: dôr de c..otovelo, por causa do Mr Barroso.

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  11. 31 Janeiro, 2008 22:42

    O Lemos Pires foi um herói na fuga.

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