in Jornal do Comércio, de 25-02-1868
Antevisões do «moto-contínuo» (ou bloguismo):
«Considerando no que é hoje, observando as suas tendências, pode conjecturar-se, aproximadamente, o que virá a ser. Um curioso aprofundou esta questão e lisonjeia-se de ter descoberto, com plausibilidade, as condições em que há-de achar-se o jornalismo no ano 2000.
Há fome e sede de notícias: todos querem saber tudo – o que pode e deve saber-se e o que não pode nem deve saber-se -, a máquina reproduz em minutos o pensamento, para ser transmitido a todos os pontos da terra, e já não é só a máquina para estampar o jornal, é também a máquina para compor; inventou-se o tipógrafo-máquina e deve esperar-se, portanto, que venha a idear-se o redactor-máquina.
O jornal é hoje diário e o mais é que chega a reproduzir a mesma folha em duas ou três edições, com alguns aditamentos ou notícias. Isto será atraso e fossilismo no ano 2000. Daqui a 50 anos, os jornais publicarão uma folha, inteiramente nova, de hora a hora, e, daqui a 100 anos, de minuto a minuto, de instante a instante. Será um moto-contínuo e ainda não satisfará a curiosidade pública. Cada cidadão fará um jornal: o artigo de fundo constará sempre das notícias da sua vida pública e íntima.
Como o jornalismo assume tais proporções, talvez se pense que faltará papel, porque é necessário advertir que de cada jornal se tirarão, de minuto a minuto, milhares de folhas; mas a isto há-de ocorrer-se com facilidade, porque, assim como o jornal é instantâneo, instantânea há-de ser a leitura; e o papel vai, minutos depois de lido, para a fábrica, a fim de se reproduzir […] apenas o superfino será reservado para os brindes aos assinantes, os quais, ao cabo da sua assinatura, já possuirão uma biblioteca de 525 000 volumes, pois tantos são os minutos que tem o ano; já se vê que a cada folha acompanhará um brinde.
O telégrafo eléctrico generalizar-se-á, cada cidadão terá o seu telégrafo em correspondência mútua, de maneira que em um minuto se saberá o que se passa nos pontos mais afastados e, em Lisboa, se poderá saber, de instante a instante, até à vida caseira do mais boçal esquimó; com o que os povos hão-de folgar, deleitar-se e instruir-se.
O jornal caseiro será alheio à política; para esta haverá jornais especialíssimos e os seus redactores nem serão amigos, nem distintos, quando não forem da mesma parcialidade;quando, porém, comungarem na mesma pia (também em 2000 se darão destas), então serão inteligências robustas, caracteres provados… no que forem.
Mas como é de crer que no ano 2000 já exista a paz universal e a união entre todos os homens, acabará a política, os governos governarão sempre conforme… à nossa vontade, portanto, serão inúteis os jornais políticos; não haverá, pois, nem turibulários, nem oposicionistas; todos serão amigos e distintíssimos cavalheiros, unidos no pensamento comum de amarem a sua pátria. Assim seja.»
E o futuro aqui tão longe como o passado aqui tão perto.
Que texto fantástico!!
PS: Faltou só identificar o autor do texto.
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Excelente!
Foi logo a primeira questão também para mim: quem foi o autor?
“O jornal caseiro será alheio à política; para esta haverá jornais especialíssimos e os seus redactores nem serão amigos, nem distintos, quando não forem da mesma parcialidade;quando, porém, comungarem na mesma pia (também em 2000 se darão destas), então serão inteligências robustas, caracteres provados… no que forem.
Mas como é de crer que no ano 2000 já exista a paz universal e a união entre todos os homens, acabará a política, os governos governarão sempre conforme… à nossa vontade, portanto, serão inúteis os jornais políticos; não haverá, pois, nem turibulários, nem oposicionistas; todos serão amigos e distintíssimos cavalheiros, unidos no pensamento comum de amarem a sua pátria. Assim seja.”
Hehehe…
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Um bom exemplo do optimismo fontista, Oliveira Martins também teve fervores semelhantes. Sobretudo depois de visitar a Inglaterra.
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“Mas como é de crer que no ano 2000 já exista a paz universal e a união entre todos os homens, acabará a política, os governos governarão sempre conforme… à nossa vontade, portanto, serão inúteis os jornais políticos; não haverá, pois, nem turibulários, nem oposicionistas; todos serão amigos e distintíssimos cavalheiros, unidos no pensamento comum de amarem a sua pátria. Assim seja.”
aqui estragou tudo… ou antevia um 2000 orwelliano…
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Nota: o texto não era assinado, prática habitual à época.
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É incrível como a tecnologia é mais previsível do que a humanidade.
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“aqui estragou tudo… ou antevia um 2000 orwelliano…”
Acho que antevia um 2000 utópico, ao jeito de de Thomas More.
Mas uma coisa previu com eficácia: a era da informação.
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É curiosa a referência às comunicações sem o suporte/papel, a que chama “telégrafo eléctrico”, pois em 1868 nem sequer havia telefone em Portugal, onde só apareceu em fins de 1877.
Prevê o noticiário em “moto-contínuo”, mas ainda no suporte/papel.
Quanto à paz universal em 2000, esqueceu-se da indústria de armamento.
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Falta referir que o telégrafo (Morse), chegou a Portugal em 1857.
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Excelente, gabriel.
Parabéns pela ideia. Como é que descobriu isto?
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Muito obrigado pela transcrição/divulgação. Uma pérola
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«Como é que descobriu isto?»
encontrei nas actas de um congresso qualquer, copiei o texto e guardei o ficheiro. Não tive foi o cuidado de ficar com a referência.
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Fabuloso. Obrigado. É pena, de facto, não estar assinado, o autor merecia destaque!!!
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Grande descoberta! Parabéns!
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“Excelente, gabriel.
Parabéns pela ideia. Como é que descobriu isto?”
Existe um livro publicado com esta e outras crónicas de época reunidas..
Agora não sei como se chama, mas encontra-se numa boa biblioteca no departamento da comunicação social..
A capa é azul..
Do autor e da editora não me lembro..
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