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A comunicação à Nação

1 Agosto, 2008

O Tribunal Constitucional divulgou na passada terça-feira o Acórdão que apreciou o pedido de fiscalização preventiva da consticionalidade do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, (EPA) requerido pelo Presidente da República, que se saldou numa vitória presidencial por 8-5 (oito as inconstitucionalidades detectadas, em 13 suscitadas). Não era difícil de prever que o comunicado à Nação, anunciado no dia seguinte, teria algo que ver com o assunto, já que não se imaginava Cavaco a dirigir-se aos portugueses por causa do escândalo Magalhães.
A forma, o tempo e o modo podem causar alguma estupefacção. O Presidente a falar ao país, por causa de um assunto que apenas diz respeito aos Açores? Na véspera do mês de férias por excelência? Anunciando com 24 horas de antecedência?

Ou o Presidente perdeu a noção do ridículo ou o assunto é mais importante do que parece e não apenas para os Açores. Perfilho a segunda tese.


Em 2004, a Assembleia da República aprovou a 6.ª Revisão Constitucional, através da Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de Julho. Uma das principais novidades introduzidas foi o reforço dos poderes legislativos das regiões autónomas, condicionado, porém, em grande medida, à alteração dos respectivos Estatutos Político-Administrativos, aos quais caberia definir com maior precisão as matérias em que as Assembleias Legislativas das regiões passariam a ter, pela primeira vez, competência legislativa própria.
Os Estatutos Político-Administrativos das Regiões são aprovados pela Assembleia da República. Mas a iniciativa legislativa (a apresentação da proposta de Lei) cabe às próprias Assembleias Legislativas das regiões. É isso que em parte explica que só quase quatro anos volvidos desde a revisão constitucional de 2004 tenha chegado ao parlamento a primeira proposta de alteração do EPA dos Açores.
A proposta era arrojada, sobretudo no que respeita às tais competências legislativas próprias, o que não espantará quem venha acompanhando a interpretação que a Assembleia Legislativa dos Açores vem fazendo das suas próprias competências legislativas nos últimos três anos.
Acresce a isso que a proposta que saiu do parlamento da Horta foi aprovada pelo PS, PSD e CDS.
Não espanta, também, que o parlamento português, apesar das palavras de Ferreira Leite, a tenha aprovado por unanimidade.
O novo Estatuto consagra uma visão do que são as autonomias regionais muito mais ampla do que vigorava quando o actual Estatuto foi aprovado. A revisão constitucional de 2004 legitima parte das alterações, mas não teve a amplitude que os deputados lhe quiseram dar com a proposta e que os parlamentares nacionais tacitamente aceitaram, ao aprovarem-na por unanimidade.
Das diversas dúvidas suscitadas pelo PR, todas as que respeitavam às competências legislativas da Região resultaram em decisão de inconstitucionalidade. Acredito que, se o Estatuto for (re)aprovado apenas com a eliminação das normas declaradas inconstitucionais, haverá no futuro novas inconstitucionalidades a declarar nesta matéria, já que o pedido de fiscalização pecou por defeito.
Mas o PR não se limitou a mandar analisar as competências legislativas. A sua discordância do novo paradigma do EPA é de tal ordem que até requereu a declaração de inconstitucionalidade de normas que vinham já do anterior estatuto (isto é, que não foram alteradas), aproveitando-se do facto de essas normas terem sido renumeradas…
Um dos artigos da proposta declara “juridicamente inexistentes” certos actos do próprio Presidente. Não foi declarado inconstitucional pelo TC. Esta deve ter sido a gota de água.
O Presidente percebeu que o novo Estatuto, mais do que consagrar as opções constitucionais, de 2004 dava um salto em frente, ameaçando tornar num facto consumado uma espécie de “aquis regional”. Uma nova competência reconhecida às regiões não mais poderia ser-lhe retirada, o mesmo sucedendo a competências análogas, sempre em crescendo, criando, de facto, um precedente perigoso, que poderia ser aproveitado, por exemplo, pela RA da Madeira, não sendo descabido falar-se na abertura de uma janela para a quebra efectiva, a médio prazo, da unidade nacional e da evolução das “autonomias”, aceites por todos, para algo diverso e mais controverso.
Se todas as questões suscitadas pelo presidente tivessem sido acolhidas pelo Tribunal Constitucional, não teria havido “comunicação ao país”.
Mas não foram. E era previsível (como hoje se confirmou) que o PS poderia preparar-se para aprovar o EPA limitando-se a expurgá-lo das normas declaradas inconstitucionais, mantendo tudo o resto, tanto mais que se aproximam eleições na Região. O Presidente percebeu ainda que uma mensagem ao Parlamento não seria suficiente para fazer o PS mudar de ideias e arrepiar caminho. Vai daí, apelou ao país. Não está à espera, obviamente, que o país se levante em armas para defender as ideias do Presidente contra as do Parlamento. Deu, porém, ao tema uma visibilidade que ele nunca teria sem a “comunicação”. Daqui em diante, independentemente do que o Parlamento decida fazer com o EPA, todos estarão atentos para verificar se os deputados terão coragem para afrontar o Presidente. A afronta passará a ser pública e não apenas conhecida de uns poucos, mais atentos ao que se faz no Parlamento para além dos inflamados debates quinzenais.
Resta saber se, ainda que por motivos legítimos (evitar uma quebra no frágil equilíbrio constitucional entre os poderes dos órgãos de soberania e os das regiões), o método usado pelo Presidente não será, ele próprio, uma forma ilegítima de pressão sobre o poder legislativo.

20 comentários leave one →
  1. maria permalink
    1 Agosto, 2008 05:05

    E que tal acabar com a tradição de reeleger o Presidente da República para um segundo mandato??

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  2. Anónimo permalink
    1 Agosto, 2008 05:50

    quando a gnr entrava nas feiras do alentejo o meu compadre cigano, pacifico troca-burros, dizia “hay mierda”
    Joaquim Aguiar diz que tocou a sineta para avisar os atletas que começou a última volta da corrida de 5 mil metros

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  3. 1 Agosto, 2008 08:12

    Independentemente da justeza (ou nao) do dito cujo, os deputados leriam o Estatuto antes de o votarem? http://psicanalises.blogspot.com

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  4. 1 Agosto, 2008 08:13

    Independentemente da bondade do dito cujo, os deputados leriam o estatuto antes de o terem aprovado? http://psicanalises.blogspot.com

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  5. Anónimo permalink
    1 Agosto, 2008 08:34

    Que melodrama o de ontem! Jogadas palacianas. Creio que em vez de se discitir o problema se vai discutir a jogada. Os ciganos que aprendam com o presidente… lol

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  6. Anónimo permalink
    1 Agosto, 2008 08:37

    O Mário Soares afinal trinha razao. Acho que foi ele que disse , que com Cavaco ele nao dormia descansado. Ontem foi a prova disso.

    Quem soube do assunto no dia anterior, dormia mal a pensar no que iria acontecer no dia seguinte. O presidente colocou o país inteiro a dormir mal na expectativa do dia seguinte..lol

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  7. Justiniano permalink
    1 Agosto, 2008 08:55

    Caro Carlos Loureiro! Não podia discordar mais!!
    Creio que também se não apercebe da relevancia das autonomias e do equilíbrio necessário para a unidade da República!! Estou em crer que dá muito pouca relevancia aos territórios do Atlantico!!
    Mas lá está o Senhor Presidente a reavivar a consciencia dos mais distraídos para a importancia que o assunto merece e especialmente à Ass. Rep. para não andar a brincar às autonomias!!
    Não podemos criar problemas onde estes não existem!!!

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  8. Luís Lavoura permalink
    1 Agosto, 2008 09:44

    Concordo com este post. A mensagem do presidente foi muito importante e justificada. Foi um ralhete que ele deu aos deputados e aos partidos nacionais por estes terem aprovado de cruz um estatuto claramente inconstitucional que lhes foi entregue pela assembleia açoriana, estatuto esse que, em certos aspetos, é claramente disparatado. Convem que, de vez, os partidos nacionais se dessolidarizem dos disparates que os autarcas e governantes regionais por aí fazem.

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  9. Justiniano permalink
    1 Agosto, 2008 10:14

    Caro Carlos Loureiro!!
    As minhas sinceras desculpas mas fiquei aturdido com o início do seu post onde me parecia embarcar na mesma desestremunhada sonolencia que tenho ouvido de alguns analistas!!
    Óbvio que após reler o seu post com a devida atenção penitencio-me pelo improprério do meu primeniro comentário!!

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  10. Justiniano permalink
    1 Agosto, 2008 10:22

    E muito bem ressalva o CL, que não tenho ouvido por aí onde se quer reduzir isto a uma questão menor e que não há problema;” faz-se já aqui ao lado e entra às três pancadas para bem de todos e que lá fiquem os Açores”
    Creio que não se aperceberam que o Sr. Presidente da Republica não quer esta Autonomia progressiva com a equiparação simbólica entre os òrgãos da Região e os órgãos da Republica…já só faltava lançar impostos e fazer lei Penal!!

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  11. Justiniano permalink
    1 Agosto, 2008 10:26

    Absolutamente de acordo com o Luís Lavoura!!

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  12. Ideiafixa permalink
    1 Agosto, 2008 10:31

    A Madeira e os Açores deviam ter adquirido a sua independência ao mesmo tempo que Cabo Verde.
    Só alguns líricos portugueses é que pensam que os madeirenses e os açorianos estão na chamada pátria portuguesa por algo mais que não seja pelo dinheiro.
    Isso mesmo foi dito, mais uma vez, pelo negociante de retretes, Jaime Ramos, no comício do PSD Madeira, mesmo na cara do AJJ.
    Palpita-me que neste momento a percentagem de 25% dos portugueses que há dez anos gostariam de ver a Madeira e os Açores independentes já aumentou para valores de mais de 50%.
    O próprio PR já fez muito por isso quando na última visita que fez à Madeira ajudou a desprestigiar ainda mais a Assembleia Regional, que agora tanto o preocupa, respondendo com piadas estúpidas quando lhe perguntavam se achava se os deputados regionais eram atrasados mentais ( epiteto da autoria do AJJ).
    Ou quando visitou a ilha e não apareceu na dita assembleia.
    Ou quando recebeu os deputados da oposição no hall do hotel.

    De facto parece que não há nada de grave a passar-se neste país.
    Os membros das administrações das EP vão enriquecendo à custa dos contribuintes, o desemprego diminui porque aumenta a emigração, eu continuo a pagar o IMI para não dormir na rua e os ciganos não pagam renda, água e luz, o Jorge Neto das 12 assessorias não tem tempo para fazer leis para os portugueses na AR porque está demasiado ocupado a inventar leis para os seus clientes, como o Tavares Moreira, os crimes económicos como a operação furacão vão dar em nada, apesar dos avisos do PGR, as desigualdades e a corrupção vão continuar a aumentar … e a auto estima e confiança dos portugueses estão no patamar mais baixo dos últimos 22 anos.
    Sobre isto este PR, e primeiro ministro do antigamente, disse nada.

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  13. Anónimo permalink
    1 Agosto, 2008 10:53

    A questao pode ser de elevada importancia, pode colocar em causa a coesao nacional, pode ser o que quiser. Mas isso nao justificava que o presidente nao dissesse que ia falar sobre essa questao às 20 h do dia tal. Mas nao! Foram dizer da casa da presidencia que ele ia interromper as férias para falar ao país, numa coisa inédita e o sigilo absoluto sobre o tema. De especulaçao em especulaçao quase que matavam o presidente com doença terminal. Era preciso tratar assim os portugueses? Que gozo. Nao há pachorra, mesmo para isto.

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  14. J. Conceição permalink
    1 Agosto, 2008 11:03

    Observação interessantíssima, Ideiafix. O disparate é da Assembleia açoreana, ratificada pela Assembleia do Continente.
    De quem é a culpa? De Alberto João Jardim, evidentemente…

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  15. F. Teixeira permalink
    1 Agosto, 2008 11:04

    O presidente da República deveria ser eleito para um só mandato, por exemplo, de sete anos. Tal solução acabaria com os estados de alma e com o agarrem-me senão…

    Era bom para todos. Para eles e para nós.

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  16. Pi-Erre permalink
    1 Agosto, 2008 11:51

    Depois disto ainda há quem defenda a regionalização do país?
    Safa! Safa! Safa!…

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  17. 1 Agosto, 2008 12:33

    A morte anunciada do engenheiro.
    O PSD iniciou a oposição.

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  18. Anónimo permalink
    1 Agosto, 2008 12:50

    “O PSD iniciou a oposição.”

    a si próprio. Temos o psd a fazer oposiçao ao psd. É cá um show!

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  19. lucklucky permalink
    2 Agosto, 2008 01:02

    O que resalta disto tudo é a vulnerabilidade do equilíbrio de poderes existente.

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