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O Dia do Portugal Possível*

26 Novembro, 2008

São sem dúvida insondáveis os critérios que levam à escolha dos dias feriados. Mas se a importância histórica das datas fosse determinante na atribuição desse estatuto então 25 de Novembro seria feriado nacional pois a sociedade portuguesa é muito mais o resultado do 25 de Novembro de 1975 do que do 25 de Abril de 1974. Das bravatas castrenses de Spínola tal como das divagações de Vasco Gonçalves ou até do nacional porreirismo de Otelo pouco nos sobrou para lá dumas recordações tão pitorescas quanto anacrónicas. O que somos nasceu muito mais dos compromissos estabelecidos a 25 de Novembro de 1975 do que de qualquer outro processo, revolucionário ou não. Ou talvez o mais verdadeiro seja o facto de o 25 de Novembro de 1975 ser a mais portuguesa das datas da nossa História recente. Para o melhor e para o pior, lá estão o nosso horror ao conflito, os compromissos e as camaradagens entre vencedores e vencidos e sobretudo a necessidade de encontrarmos uma narrativa suficientemente reconfortante para todos. A 25 de Novembro de 1975, os protagonistas do poder assumiram oficialmente a necessidade de passarmos a viver habitualmente no país que era o possível. Para trás ficara aproximadamente um ano do qual, consoante as sensibilidades, ora se diz que o país esteve à beira duma ditadura comunista ou em processo revolucionário. Digamos que estas são as versões convenientes dos factos. Ou seja nada disto é necessariamente mentira mas corresponde apenas uma parte da verdade.
Os portugueses acreditaram (e acreditam) que não seria mau que o Estado tomasse conta das empresas pois um estado tutelar era algo a que estavam habituados mas sendo ferozmente individualistas jamais aceitariam que a colectivização passasse para o seu quotidiano. O diálogo sobre a posse da enxada que “é minha não é da cooperativa” no documentário “Torre Bela” ilustra esse povo sequioso por ter – não por dividir e muito menos por usufruir em comum o que quer que fosse.
Passados os primeiros entusiasmos com a liberdade, os portugueses pareciam mais interessados em usufruir o prazer de consumir novos electrodomésticos, fossem eles televisões ou panelas eléctricas, ir de férias, vestir-se descomprometidamente ou encomendar marisco – gestos banais mas até aí tidos como ‘coisa dos outros’ – do que em actividades de militância política. A sua libertação era a do quotidiano e a dos costumes, por isso esgotavam as sessões dos filmes que lhes parecessem pornográficos e mostravam-se arredios às películas que intelectuais, anteriormente da oposição e agora “ao serviço da cultura”, não só lhes traziam da Bulgária e da URSS, como asseveravam ser imprescindíveis à sua formação. Este desacerto entre o gosto das massas e os objectivos das suas auto-denominadas vanguardas intelectuais é uma fonte permanente de azedume para estas últimas porque, como infelizmente bem sabemos, dependem dos dinheiros públicos mas não conseguem ter público. É certo que em 1974 não se pensava sequer em questionar o supremo acerto do dirigismo estatal subjacente a este tipo de “política cultural”. Mas a disparidade entre aquilo que o povo queria ver e aquilo que os teóricos da revolução pretendiam que o povo visse gerou medidas fantásticas como a “ofensiva anti-sexy” do governo e das empresas cinematográficas que, logo em Novembro de 1974, escassos meses após a censura ter sido oficialmente abolida, determinaram que fitas que como “Amor entre mulheres” ou “Sofia e a educação sexual” eram “ideológica ou moralmente agressivas” e deveriam ser substituídas por filmes de “temática política” ou de “características diferentes”. Rapidamente o governo de então teve outras ofensivas com que se ocupar e, em Abril de 1975, até na Marinha Grande a ofensiva anti-sexy parecia perdida pelo menos a fazer fé nos comunicados emitidos pelo PCP a propósito dum espectáculo de strip-tease que o “reaccionário” Vasco Morgado pretendia levar à cena na terra do “soviete” português. Bem podia o PCP denunciar que se estava perante um espectáculo que reflectia “as mais degradantes concepções e vícios de um capitalismo moribundo e desesperado que recorre a todos os meios da depravação com vista, por um lado, à conquista do lucro fácil e, por outro, a estimular instintos inferiores” e avisar que o objectivo do dito show era “desviar a atenção das massas trabalhadoras dos seus reais problemas e interesses, pelos caminhos da alienação”. E por mais que o Sindicato dos Vidreiros assinasse também este comunicado a verdade é que a classe operária não se fazia rogada para encher as salas e os bolsos de Vasco Morgado ou ir ao Vox, Politeama e Pathé atraída pelas tais películas “ideológica ou moralmente agressivas”.
Com mais ou menos folclore, campanhas de dinamização e ocupações, não creio que o PCP tenha mantido muitas ilusões acerca da sua real capacidade para impor uma ditadura comunista em Portugal. Nem o tempo – estava-se nos anos 70 – nem o espaço – o país mais ocidental da Europa – permitiam acalentar esse tipo de desígnios. A via legalista revelou-se muito mais eficaz e ditadura alguma que o PCP tivesse instituído teria resistido ou sequer moldado a nossa vida tanto como a Constituição de 1976 e suas diversas declinações legais em que o PCP se especializou. Por outro lado convém que sejamos modestos nestas nossas ânsias de destinos singulares que tanto nos levam ao Quinto Império quanto ao imaginário da Cuba da Europa. Portugal, que sempre se achou tão importante que tem preferido pensar que foi uma tolice a decisão dos ministros de D. João VI de transferirem a capital do reino para o Brasil, também lhe custa muito aceitar que em 1974 provavelmente havia menos interessados, na cena internacional, em controlar Lisboa do que em controlar Luanda. Mas por mais mossa que isso nos faça no orgulho a verdade é que a nossa Revolução acabou 14 dias após a independência de Angola, pois não só o frenesim revolucionário já não fazia falta alguma, como se estava a tornar num verdadeiro embaraço e todos os protagonistas não só queriam viver habitualmente como, à excepção da extrema-esquerda, o podiam fazer sem perder a face: o PCP apostava na defesa legal das “conquistas de Abril”, garantia a sobrevivência e a dignidade institucional graças à sua omnipresença no aparelho de Estado e mantinha inabalável a superioridade moral que o leva a dividir os portugueses em particular e o mundo em geral em bons e maus, cultos e incultos, de esquerda ou de direita. Os militares vitoriosos do golpe eram os heróis possíveis por terem salvado o país do comunismo, sendo esta redenção tão mais retoricamente avantajada e celebrada quanto se subestimava o facto de os mesmos militares tão anti-comunistas em Portugal terem chamado libertação à implantação de regimes comunistas em Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé. O CDS e o PPD ganharam direito a existir sem terem de fazer profissão de fé anti-fascista diária. Mário Soares confirmava-se como o primeiro grande líder político do pós-25 de Abril. Melhor ou mais português era de facto impossível.
Em pouco mais de um ano tínhamos passado da exaltação da pátria pluri-continental com quinhentos anos à revolução socialista. E de repente, nesse dia 25 de Novembro de 1975, à semelhança de viajantes dum carrossel cuja música se extinguisse, tudo terminou e nós descobrimo-nos sozinhos no que até há pouco era um animado arraial. Nunca percebemos exactamente o que aconteceu a 25 de Novembro de 1975 mas foi a partir daí que nos começámos a render à evidência que não existiam mais golpes mágicos susceptíveis de nos mudar o destino. Nesse dia ficámos sem fantasmas da História nem promissores amanhãs das ideologias. Ficámos sós, subitamente sérios e adultos, no Portugal possível. 

*PÚBLICO, 25 de Novembro

20 comentários leave one →
  1. C. Medina Ribeiro's avatar
    26 Novembro, 2008 09:12

    Se considerarmos que a importância histórica das datas tem a ver com aquilo que se alterou na sociedade (e na simples vida das pessoas), não concordo.

    Goste-se ou não do facto, não tem qualquer comparação, nem qualitativa nem quantitativamente, a mudança operada em Portugal de 24 para 25 de Abril de 1974 com a que se deu de 24 para 25 de Novembro de 1975.

    Experimente-se convocar os portugueses para comemorar na rua (ou em simples comícios) a segunda data, e veja-se quanta gente aparece. Acho que cabiam todos no pátio aqui de casa…

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  2. Desconhecida's avatar
    António permalink
    26 Novembro, 2008 09:16

    pois…. e agora????????????????? até não fazia mal uma guerrazinha só para animar a malta;-)

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  3. Desconhecida's avatar
    helenafmatos permalink
    26 Novembro, 2008 09:16

    Uma coisa é o valor simbólico das datas. Outra o que delas resulta. Quantos ou quem comemorariam o 28 de Setembro? Contudo foi fundamental

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  4. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    26 Novembro, 2008 09:20

    Mas toda a gente não diz que a sociedade portuguesa é uma valente porcaria? Vai ser feriado o dia 25 Novembro o tal dia que criou a tal sociedade que não presta?

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  5. henrique cimento's avatar
    henrique cimento permalink
    26 Novembro, 2008 09:20

    a 3ª república deste “manicómio em auto-gestão”
    tem sido uma viagem ao país dos malucos
    como na nave dos loucos de sebastian brant que inspirou bosch
    são mais de 100 personagens, cada uma das quais encarna um vício humano
    preguiça, inveja, incompetência
    não sei de que se ri um zézinho palerma que anda por aí

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  6. Desconhecida's avatar
    26 Novembro, 2008 10:26

    Compreendo a posição da HM, quanto às datas históricas a comemorar. No entanto, penso que não existe termo de comparação possível entre a importância histórica do 25 de Abril (74) e a do 25 de Novembro (75).
    Nunca uma ditadura comunista teria sucesso no nosso país, aliás, pelas razões que evoca no seu próprio texto, tendo para isso também contribuído a mentalidade socialista então vigente, protagonizada pelo Dr. Mário Soares.
    Nesse período de um ano aprox., cometeram-se muitos excessos, como não podia deixar de ser num país que sobreviveu a uma ditadura tão vincada, como o nosso. Se se pensar o modo sui generis como a revolução foi levada a cabo, uma revolução em tudo insólita mas que conseguiu deitar abaixo o regime (duvido que isso fosse possível com Salazar vivo), o pós encontra justificação, podendo nós dar-nos por muito contentes pelo facto de não ter havido mortes e não se ter instalado um clima de guerrilha capaz de subsistir até aos nossos dias.

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  7. Desconhecida's avatar
    26 Novembro, 2008 10:30

    Como alguem diz – O 25 de Abril é marcante da nossa historia – o 25 de Novembro é uma passagem – eu que defendi a minha liberdade, não considero.

    Por outro lado, a democracia escolheu os caminhos errados o que nos custou a independencia de Portugal.

    Ate nisto o 25 de Abril foi marcante, descobriu-se, que finalmente, Portugal é Europeu, nós, que descobrimos o Mundo e demos a conhecer o outro mundo.

    Eu compreendo o que a Lena quer dizer, mas não concordo, ate porque, Portugal, finalmente integra a Europa, ironia minha, nós que somos o Povo, com cultura prória, lingua própria, mais antigos da Europa e cuja Capital, Lisboa, é aceite desde 1367 por D. Afonso III.

    Só agora, em 1975, descobrimos a Europa?=

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  8. salamon's avatar
    salamon permalink
    26 Novembro, 2008 10:33

    Nem por sombras, 25 de Novembro não passa de um sucedâneo do 25 de Abril, como outros que não haveria possíveis ao tempo de Salazar ou Caetano. E, logo, de Portugal será 25 de Abril o dia, sem mais espinhas.

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  9. Desconhecida's avatar
    helenafmatos permalink
    26 Novembro, 2008 10:39

    6- a aposta o europeia foi a opção inevitável após termos saído de África. Ev lamento informar mas essa saída não estava incluída no programa apresentado aos portugueses a 25 de Abril de 1974

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  10. Desconhecida's avatar
    26 Novembro, 2008 11:52

    Quanto a essa questão dos feriados, mais relevante é o 5 de Outubro. O actual feriado deve-se ao fim da monarquia e à implantação da república. Mas a 5 de Outubro, não de 1910 mas de 1143, foi assinado o Tratado de Zamora, que fundou Portugal enquanto nação independente. Sei lá, assim de repente parece-me mais importante do que deixarmos de ter reis para passarmos a ter um presidente da república.

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  11. Desconhecida's avatar
    José permalink
    26 Novembro, 2008 12:32

    O 25 de Novembro é tão importante como o 28 de Setembro de 74 ou o 11 de Março de 1975.

    Em 28 de Setembro de 1974, deu-se o último estertor das forças políticas que pretendiam um regresso a 24 de Abril de 74, sem Caetano, mas com o Spínola que não soube impor isso mesmo, logo na primeira semana a seguir ao 25 de Abril.

    A chegada triunfal de Soares e de Cunhal, exilados, e a junção dos dois no 1º de Maio no estádio do regime, capou qualquer esperança de normalidade democrática, e transição pacífica da ditadura para a democracia como a Espanha apesar de tudo ( Tejero Molina) teve.

    Em 11 de Março de 1975, dá-se o assalto ao palácio de Inverno, com um Conselhod e Revolução e a colectivização dos principais meios de produção, com o rombo económico que isso significou e que foi relamente o aspecto mais importante, a seguir ao 25 de Abril e que a Constituição consagrou.

    Todo o tecido económico, foi afectado e nunca mais se recompôs de igual modo.

    Os escândalos bancários que aí estão ( CGD, BCP e BPN) ainda são tributários dessas medidas revolucionárias do colectivismo do PCP e da Esquerda em geral ( incluindo o PS).

    Por isso, o 25 de Novembro, para mim, foi mais um marco de definição de rumo, com opção do PCP pelo mal menor.
    O PCP sabia que a colectivização e a esquerdização geral do país lhe assegurava por muitos e bons anos entre 6 a 12 por cento de resultados eleitorais. E isso lhe chegava, porque a URSS nem precisava de tanto. Portugal, nunca sairia da órbita da NATO, sem guerra.

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  12. Desconhecida's avatar
    José permalink
    26 Novembro, 2008 12:55

    Esqueci de dizer uma coisa:

    Leio melhor estes textos aqui, do que no jornal. Porque será? No jornal, é leitura transversal. Aqui, quando começo, acabo.

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  13. JJ Pereira's avatar
    26 Novembro, 2008 13:05

    “Nunca uma ditadura comunista teria sucesso no nosso país”.
    Verdade das verdades : a Divisão Brunete nunca o permitiria – e talvez o velho agravo daquilo que,aqui ao lado, continua a ser considerado um esbulho,ficasse resolvido (uma Olivença alargada…)

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  14. Ar.'s avatar
    Ar. permalink
    26 Novembro, 2008 13:23

    7. 1367? Afonso III? Nesse ano iniciava Fernando I funções governativas… por outro lado, a capitalidade de Lisboa foi um processo lento, não instituido por decreto… a corte medieval, o centro de poder, foi absolutamente transumante… ainda na década de 30 do século xvi se mudou para Évora…

    10. a data de 1143, tão evocada como o início da independência de Portugal, foi apenas um acordo de senhores feudais, nada mais; a data a considerar, efectivamente, como a da autonomia política plena de Portugal, deve ser 1179, quando finalmente o papa reconhece Afonso I como rei e o território por ele dirigido como reino independente, na conhecida bula Manifestis probatum est…

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  15. Gabriel Silva's avatar
    Gabriel Silva permalink*
    26 Novembro, 2008 13:25

    Ar. (14)

    ou bastante mais cedo, quando os papas (e os reis de Leão) reconhecem D. Teresa como «Regina portucalensis»

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  16. PKS's avatar
    PKS permalink
    26 Novembro, 2008 13:46

    Seria bem melhor que a “H”espanha se tivesse unificado. Nesse sentido o 25 de novembro de 1975 é quase tão nocivo como o 1 de dezembro de 1640.

    11: “Os escândalos bancários que aí estão (CGD, BCP e BPN) ainda são tributários dessas medidas revolucionárias do colectivismo do PCP”

    Isto é tão razoável como escrever que os Judeus são coletivamente responsáveis pela morte de Cristo…

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  17. Desconhecida's avatar
    26 Novembro, 2008 14:15

    Concordo completamente. É a diferença entre a pura ideologia (25/4) e a prática (25/11). Das purgas e da conquista da pureza revolucionária (mesmo entre os próprios revolucionários) chega-se á conclusão óbvia que não se podia continuar dessa forma e que o ser humano não consegue viver em estado de contínua revolução.

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  18. Joca's avatar
    Joca permalink
    26 Novembro, 2008 21:55

    Mas… sem 25 de Abril não haveria 25 de Novembro.
    Fim de pápo.

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  19. Desconhecida's avatar
    stevens permalink
    26 Novembro, 2008 22:26

    Fora com a Fácista!!!

    Viva o 25 de Abril!!

    Viva el comandante!

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  20. Pedro Sá's avatar
    27 Novembro, 2008 20:39

    1. As bravatas castrenses de Spínola têm alguma coisa a ver com o 25 de Abril, o movimento dos capitães e a festa popular ? Não.

    2. E as divagações de Vasco Gonçalves ? Não. Aliás, no dia 25 de Abril de 1974 poucos o conheceriam.

    3. Havia compromissos bem mais importantes reconhecidos como sendo da vontade da maioria bem antes disso. A começar por 25 de Abril de 1975, dia das eleições da Assembleia Constituinte.

    Mais uma vez a direita e os seus pretextos para querer escapar-se a defender a comemoração do 25 de Abril.

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