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Crónica do reino designado Onde o Que Não Pode Ser Já É*

18 Maio, 2009

Os portugueses em 1509 chegaram a Sumatra. 500 anos depois, aportámos ao Reino Onde o Que Não Pode Ser Já É

Saiba Vossa Majestade que a terra é formosa mas habitada por uma gente muito bizarra. Para eles, nada é como parece ser. A palavra alegado, que repetem a todo o momento, tem para este povo as funções que, noutros reinos, cumpre o Deus me perdoe. Assim, se um homem é roubado, dizem que se trata da alegada vítima de um alegado roubo que eles preferem chamar explosão de insatisfação social. Os criminosos são alegados suspeitos, alegados investigados ou uma mui misteriosa cousa que dá pelo nome de arguido. E de alegado em alegado se enredam até que as vítimas passam a alegados culpados, os alegados culpados parecem tornar-se alegadas vítimas e assim sucessivamente prosseguem até nada se perceber e o povo ficar completamente confundido como se tivesse caído numa nova Babilónia. Se Deus Nosso Senhor fizer a bendita mercê de me levar de novo à Vossa presença, desta particular matéria dos alegados Vos darei conta narrando o espantoso caso aqui sucedido numa casa a que sem grande fundamento chamam Pia. Mas por ora e até porque a tal Casa Pia é cousa que assim escrita não se acredita, continuarei a dar-Vos novas do país e suas gentes tal como me incumbistes.
Do muito que neste reino tenho perguntado posso afirmar que o seu viver nunca foi de muito acerto pois há séculos que se obstinam em acreditar que doutras partes do mundo lhes virão as riquezas que aqui não produzem mas gastam. Daí dividirem os tempos passados em arcas. Tiveram as arcas da Índia, do Brasil e da Europa. Tudo isso acabou. O pior é que ao pouco tino desta gente se soma agora uma espécie de desmoralização, pois, tal como os moços que vão servir em casa de ladrões e acabam eles mesmos na quadrilha, esta gentinha enfiou-se por um caminho onde todos os dias aceita como bem aquilo que na véspera amaldiçoava. Dos cartórios desaparecem documentos de escrituras e ninguém diz nada. Os mestres passam diplomas ao Domingo, dia de Nosso Senhor, e o mais que acontece é ouvirem-se anedotas até porque se poucos acreditam na palavra dos alunos menos ainda são os que acreditam na seriedade dos professores. E até nomes como Cova da Beira, Vale da Rosa ou Estuário do Tejo, apesar da vocação milagreira do país, não indicam quaisquer rotas de aparições divinas mas sim a aparição de humanas obras que ninguém consegue entender como podem ter sido autorizadas daquela maneira.
O povo ora vive para enganar ora para sustentar o seu Estado que cada ano gasta mais do que no anterior. Engana-se Vossa Majestade se pensar que quem engana o Estado são os de pior condição. Neste reino, quem mais e melhor engana o Estado é quem o governa, mas aqui não se deve falar de enganos porque nesta terra ter poder é sinónimo de fazer leis cuja interpretação é sempre dúbia. Assim aqueles a que aqui chamam deputados mas não passam de peões bem mandados, ao mesmo tempo que aprovaram leis para vasculhar os dinheiros de cada cidadão, decidiram também que os partidos podiam receber mais malas com dinheiro sem explicar donde lhes vem tal fortuna. A não ser que nesta terra desatinada mas onde se come bem todos resolvam acreditar que se ganham milhares vendendo carne grelhada em arraiais de Verão, tal lei é mais uma estultícia de quem sabe que Deus põe, o legislador dispõe e o povo cumpre, paga e cala.
Não sei como explicar a Vossa Majestade este paradoxo mas ponha Vossa Majestade na Sua ideia o seguinte: há quem governe impondo uma coisa que se aplica inexoravelmente a todos os outros menos a si mesmo. Assim o governo deste reino presume dos licenciamentos. Para tudo tem de existir um licenciamento. Creio que só para respirar ainda não têm licenciamento mas ainda lá chegarão pois se a falta de dinheiro do Estado é muita, o engenho destes governantes para inventar taxas ainda é maior. Pois acredite Vossa Majestade que todos os dias se sabe que os mesmos que impõem os tais licenciamentos concedem a uns quantos o privilégio de não os cumprir. No início, tal cousa ainda causava perguntas, agora já não e creio que o desígnio de cada um dos habitantes deste reino não é pôr fim a este estado de cousas mas sim conseguir também para si esse tal artifício que permite a alguns ganhar a vida fazendo leis que depois não têm de cumprir. Que Vossa Majestade me perdoe que fale tão desassombradamente mas um poder sem vergonha faz perder a vergonha a gente que se dizia honrada. Contudo o que causa mais espanto entre os recém-chegados a este reino já não é tanto o que sucede – e que a cada dia é mais pasmoso – mas sim a desfaçatez dos envolvidos. Para quem, como eu, vive no meio deles não há lugar para espanto pois descobri que os povos tudo suportam quando quem os governa faz deles seus cúmplices.
Eu não tenho ilusões e bem sei que vozes invejosas as há infelizmente em todo o lado e também nesse nosso bendito reino e não faltará quem insista junto de Vossa Majestade dizendo que só à minha falta de persistência ou perda de tino se podem assacar as informações que abaixo envio sobre aquilo a que aqui se chama justiça e investigação. É certo que já gastei largos cabedais desse nosso reino tentando perceber o que se designa nesta terra por casos mas até agora apenas posso dizer a Vossa Majestade que um caso é um crime em que os criminosos têm meios para contratar advogados e efectuar pressões para que o crime passe a caso e em seguida seja esquecido. Ou se de todo em todo se chegar a julgamento que apenas se julgue quem baste para que tudo fique na mesma. Creio até que o melhor será embarcarmos alguns indígenas destas terras e levá-los para o nosso reino onde não só se civilizariam como poderiam relatar a Vossa Majestade muitas das estranhezas que por aqui acontecem. E certamente dariam conta dos muitos trabalhos que aqui tenho padecido e muito contribuiriam para que Deus Nosso Senhor iluminasse Vossa Majestade, fazendo-o desistir de mandar mais gente desse nosso reino a estas terras pois para sofrimentos já bastam os meus. Todos os dias aguardo pela Vossa carta que me fará de novo regressar a casa donde jamais sairei e levarei, se Vossa Majestade assim o entender, o resto dos meus dias contando às crianças, pois os adultos não me acreditarão, histórias do Reino Onde o Que Não Pode Ser Já É.
*PÚBLICO

26 comentários leave one →
  1. Kolchak permalink
    18 Maio, 2009 00:26

    É isso mesmo!

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  2. Diogo permalink
    18 Maio, 2009 00:39

    grande artigo! Parabéns!

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  3. 18 Maio, 2009 01:00

    Excelente artigo Helena! 🙂

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  4. Diogo permalink
    18 Maio, 2009 01:02

    Governa-nos a imagem e a imagem é nada porque a substância é o contrário da imagem. Governa-nos nada

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  5. 18 Maio, 2009 02:44

    excelente crítica irónica, corrosiva e mediática. Fantástico!

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  6. 18 Maio, 2009 02:49

    Muito bem, Miss Helena Matos !

    Um muito feliz momento de ‘inspiração’. De ‘inspiração’ fundamentada.

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  7. Kafka permalink
    18 Maio, 2009 02:51

    Excelente.

    Mas será que os Anónimos do costume terão massa cinzenta suficiente para atingir o Verbo, neste caso a Escrita?

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  8. olen permalink
    18 Maio, 2009 03:09

    Muito bem dito e bem escrito.Parabéns Helena.

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  9. Anti-Liberal permalink
    18 Maio, 2009 04:10

    Ora aqui está um tema de interesse e muito bem escrito. Estou surpreendido…

    Nuno

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  10. Matemático permalink
    18 Maio, 2009 08:47

    Muito bom Helena.

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  11. lucklucky permalink
    18 Maio, 2009 09:06

    Hehehe. Dúvido no entanto que alguns indígenas saídos da escola consigam ler tal prosa.

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  12. Al Dra-Bilhas permalink
    18 Maio, 2009 09:44

    Excelente artigo, mas ainda falta chegarem as ratazanas do largo dos ratos para o botabaixismo, como diz o dono deles.

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  13. JJ Pereira permalink
    18 Maio, 2009 10:16

    Inteligência + Ironia + “Basezinhas” queirosianas + Elegância de estilo =
    Escrita que seduz – na forma e na substância.

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  14. Anónimo permalink
    18 Maio, 2009 12:11

    muita parra e pouca susbtância, a autora aspira a guionista da telenovela guedes e recentra a história no período manelinha. caso a peça tenha sido paga à linha, o fernandes largou bué de maravedis, largamente compensados pelos aplausos dos apaniguados, como acima se constata.

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  15. 18 Maio, 2009 12:53

    Tenho que vir depois ler isto com mais atenção, pois parece valer a pena.
    Ainda há crónicas e cronistas?
    Uma vez fiz um texto (parte de um documento académico) usando semelhante forma e linguajar. Na apresentação ninguém ficou indiferente: houve quem gostasse muito e houve quem criticasse furiosamente.
    A verdade custa sempre muito a ouvir a quem faz da mentira a sua empresa. Eh, eh, eh…

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  16. Anónimo permalink
    18 Maio, 2009 13:03

    #15 – “A verdade custa sempre muito a ouvir a quem faz da mentira a sua empresa.”
    aqui é um bocado ao contrário, ganha-se a vida à custa da mentira e aplausos dos que gostavam que fosse verdade. há mercado para tudo.

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  17. Kafka permalink
    18 Maio, 2009 13:35

    Olha o #16
    Cá está o gajo!
    Já faltava, mas pela hora deve estar a Recibo Verde

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  18. Anónimo permalink
    18 Maio, 2009 13:44

    #17 – atenção ao ketchup que está a escorrer para o teclado.

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  19. 18 Maio, 2009 13:45

    Kafkianamente, aparece no #17. um avatar com um recibo verde.

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  20. 18 Maio, 2009 14:55

    OUTSOURCING: Serviços externos custam 956 milhões
    Despesa – Estudos, consultadoria, seminários, exposições

    Aqui se mostra à evidência a promiscuidade entre o Estado e as empresas privadas dos «amigos» dos detentores dos cargos públicos.

    Tudo se paga: se não é com dinheiro é com géneros, com favores, com tráfico de influências…
    O Governo orçamentou para este ano 956 milhões de euros para despesas com a aquisição de serviços a entidades privadas.
    A verba, destinada a gastos com estudos, consultadoria, seminários, pareceres, limpeza de instalações, publicidade e comunicações, regista um aumento de 19 por cento, correspondente a 153,2 milhões de euros.
    Só o Ministério do Ambiente, de Nunes Correia, tem uma subida orçamental de 137%.
    Sócras aumentou o escândalo em 115 milhões de euros/ano, desde que tomou posse.
    De 842,8 milhões de euros, em 2005, a 956 milhões de euros, em 2007.

    Os maiores aumentos ocorrem em rubricas como ‘outros trabalhos especializados’ e ‘outros serviços’, onde o acréscimo total é de 88 milhões de euros.
    Com uma despesa pública desta grandeza, o Estado é o mais importante gerador de negócios para empresas de áreas como estudos, consultadoria e escritórios de advogados.

    Os ministérios do Ambiente e da Justiça têm as maiores subidas orçamentais: 137% e 85%, passando, respectivamente, para 66,9 milhões de euros e 139,1 milhões de euros.

    Os serviços contratados a empresas privadas têm sido, com alguma frequência, objecto de polémica. O caso mais recente envolveu o secretário de Estado das obras Públicas, Paulo Campos, por causa de um estudo de 155 mil euros encomendado à F9 Consulting, empresa conhecida por ter ligações ao seu adjunto Vasco Gueifão.

    AS MAIORES SUBIDAS

    O orçamento da rubrica ‘outros trabalhos especializados’ tem um aumento de 62 milhões de euros, ascendendo o total a 169 milhões de euros no conjunto do Governo. Com esta verba, pagam-se serviços técnicos como informática e tipografia.
    A rubrica ‘outros serviços’ conta, por sua vez, com um acréscimo de 26 milhões de euros, atingindo 121 milhões de euros no total.

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  21. Anónimo permalink
    18 Maio, 2009 16:02

    Até o Piscoiso perdeu o pio!

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  22. g.fm permalink
    18 Maio, 2009 17:09

    “nomes como Cova da Beira, Vale da Rosa ou Estuário do Tejo”

    A missiva já ia longa, e terá sido por alegado esquecimento que não referiu nomes como BPP ou BPN. Ou talvez por achar que não valia a pena incomodar Sua Majestade com tais minudências.

    E, já agora

    “decidiram também que os partidos podiam receber mais malas com dinheiro sem explicar donde lhes vem tal fortuna.”

    “Neste reino, quem mais e melhor engana o Estado é quem o governa”

    Sua Majestade é bem capaz de ficar confuso com estas duas frases. Alegadamente, pela segunda frase fica-se convencido que quem melhor engana o Estado é quem o governa, mas pela primeira fica a saber-se que quem o quer governar também não lhe fica nada atrás. Abençoadas distracções.

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  23. Anónimo permalink
    18 Maio, 2009 18:36

    #23 – tá-lhes na massa do sangue, as malas são do preto.

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  24. helenafmatos permalink
    18 Maio, 2009 18:59

    22 – Talvez lhe faça confusão mas sabe que existem pessoas que criticam quem acham que devem criticar. À excepção de António José Seguro, de quem discordo quase sempre e admirei neste assunto, os deputados portaram-se vergonhosamente. E mais vergonhosamente ainda quando no dia seguinte, como aconteceu com a líder do PSD, vêm manifestar disponibilidade para mudar o que tinham aprovado na véspera. Uma atitude muito semelhante àquela que foi tomada no estatuto dos Açores

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  25. g.fm permalink
    18 Maio, 2009 20:09

    #24 Helenafmatos

    Não me faz confusão nenhuma, aliás quando faço um comentário é também esse o meu objectivo: criticar as pessoas e as situações com as quais não concordo. Foi, mais uma vez, o que aqui tentei fazer. A lei de financiamento dos partidos diz-nos muito acerca dos políticos, dos que estão no poder e, sobretudo, dos que estão na oposição. Quanto aos casos BPP e BPN, na minha opinião, não se perdia nada se tivessem sido mencionados no seu artigo, mantenho.

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  26. Anti-Liberal permalink
    19 Maio, 2009 03:25

    Quem eliminou comentários meus e porquê?

    Nuno

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