Saltar para o conteúdo

Coisa tramada a memória*

1 Maio, 2010

Quando José Pedro Aguiar Branco afirmou na Assembleia da República “O moralismo ideológico cega-nos e faz-nos esquecer o óbvio” e perguntou porque não haveria de gostar de Zeca Afonso a parte que se senta à direita do hemiciclo estava a recuperar uma pergunta com 35 anos. De facto há 35 anos, mais precisamente em Abril e Maio de 1975, discutia-se se o PPD podia ou não cantar a Grândola. O autor da canção, Zeca Afonso, achava que não e escreveu-o claramente num texto que enviou para as redacções. Aí indignava-se com o que definia com o “abuso ou despudor” da canção “Grândola, Vila Morena” ter sido cantada num comício promovido a 11 de Maio desse ano pelo PPD, partido que diz ter como dirigentes “defensores da censura fascista e continuadores da ordem colonial”. Gera-se em seguida uma polémica em que esta apropriação da “Grândola, Vila Morena” por parte do PPD é definida a dado momento como uma situação ridícula à qual era urgente colocar um fim. O fim não se sabe como chegaria porque meses depois a Revolução acabou como começou: ou seja não se percebeu exactamente como nem quando.

O PCP assegurou tranquilamente por via constitucional e pelo controlo da administração pública o que nem sequer era certo que conseguisse por via revolucionária, a extrema-esquerda foi devidamente neutralizada e a “Grândola, Vila Morena” foi-se ouvindo cada vez menos. A não ser naqueles espectáculos-rituais em que os outrora jovens cantores da intervenção, agora cada vez mais velhos, dão os braços e se embalam, cantando-a, como quem regressa a um tempo que já não é o seu e que, embora nunca o afirmem, parecem aliviados por ter terminado.

Curiosamente a questão de quem pode cantar, em Portugal, “Grândola, Vila Morena” voltou a colocar-se nas últimas presidenciais mais precisamente quando ela foi cantada em Grândola pelos apoiantes do então candidato Cavaco Silva. As reacções não se fizeram esperar e como que nos devolviam a um PREC embora em versão verbalmente light: “O séquito de Cavaco Silva deve ter feito figas atrás das costas enquanto cantava o “Grândola, Vila Morena”, ontem numa sessão de propaganda eleitoral naquela cidade alentejana. Para muitos deles, a começar pelo candidato, deve ter sido a primeira vez na vida. Ainda os veremos a cantar a Internacional, no Barreiro. Não haverá limites para o oportunismo eleitoral?” – perguntava Vital Moreira no blog Causa Nossa. Parafraseando Aguiar Branco “O moralismo ideológico cega-nos e faz-nos esquecer o óbvio”. Mas para lá do óbvio mais imediato que passa por, como respondeu a Zeca Afonso uma leitora do “Diário Popular” em Maio de 1975, o povo ter o direito de cantar o que quer sem ter de pedir autorização quiçá por escrito a quem, por ironia, tanto falava em seu nome, resta-nos um outro óbvio ou, melhor dizendo, o tremendo equívoco em que baseia a nossa democracia. Equívoco esse que se quisermos puxar um pouco mais pela memória nos leva não ao PREC mas sim à I República e ao seu célebre: o País é para todos, mas o Estado é dos republicanos. Esta concepção do Estado enquanto coisa nossa por parte dos partidos torna o Portugal de 2010 muito mais próximo dos vícios I República do que dos abusos do PREC. A memória não nos faz melhores e nem sei se nos fará decidir melhor. Mas é de facto uma coisa tramada.

*PÚBLICO

24 comentários leave one →
  1. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 09:30

    tramada é a hipocrisia que tresanda dos seus textos, não há desorrorizante que disfarce esse odor colonial.

    Gostar

  2. 1 Maio, 2010 09:31

    Subscrevo.

    Muito bom!

    Gostar

  3. 1 Maio, 2010 09:33

    Note-se, (em cont. do com. antecedente): subscevo o excelente post de Helena Matos.

    O anónimo #1. é que parece, apesar de tudo, padecer, também não de moralismos ideaológicos, mas de reflexos pavlonianos: odor co,onial?!?!

    Gostar

  4. Fruta permalink
    1 Maio, 2010 09:41

    Agora aplaudem-se uns aos outros.

    Gostar

  5. João Santos permalink
    1 Maio, 2010 09:56

    Grande texto. Na verdade a esquerda sempre cantou “todos iguais” mas lá no fundo ela quer ser mais igual que os outros. George Orwell explicou isto na perfeitção no seu livro “O Triunfo dos Porcos”…..que fiquem com as ruas só para eles e continuem a chafurdar nos preconceitos bacocos dos tempos do prec….hoje, felizmente é possivel perceber qual a “democracia” que eles queriam….

    Gostar

  6. Carlos Silva permalink
    1 Maio, 2010 10:00

    Tretas.
    O bom texto foi o do Aguiar Branco.
    Esta posta apenas se aproveita dele.

    Gostar

  7. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 10:17

    oh três! o muralismo ideológico caiu com o muro e a disputa do entulho é muita. aqui a campaínha do prec ainda é baita mobilizadora dos espoliados do ultramar.

    Gostar

  8. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 10:30

    os ultramarinos nucleares foram periscopar para o meco, envergando a bela chemisette la coste caparique.

    Gostar

  9. José permalink
    1 Maio, 2010 10:36

    Bolas! linkei o texto quase todo. Desculpas, mas ouvir o Traz Outro amigo também no dia de hoje sabe bem. Aproveitem.

    Gostar

  10. José permalink
    1 Maio, 2010 10:37

    E o disco era…

    Traz outro amigo também

    Gostar

  11. balde de cal permalink
    1 Maio, 2010 10:59

    fui mil e tante nº 29 do ppd (ml) de emídio guerreiro.
    alguns obreiros do grande oriente não conseguiram criar um partido por isso fomos destacados para vários dos existentes.
    é uma história de pulhice dum ps que está por contar e deixarei no meu espólio da BNP

    Gostar

  12. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 11:21

    #9 – “Por causa da música, As letras são apenas um pano de fundo…”

    cá me parecia que o branco tinha ido dar música ao parlamento. as letras são para protestar e o que rende juro são partituras a prazo.

    Gostar

  13. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 11:23

    e eu que pensava que o ppd (ml) era a facção manela leite guronzada pelo pacheco.

    Gostar

  14. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 11:37

    pois é, oh caga! quando o valor é reconhecido, retiramos-lhe a letra e acrescentamo-lhe a nossa palavra. na justiça basta a música, porque a letra compõe-se ao momento.

    Gostar

  15. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 11:42

    “É óbvio que o Zeca Afonso, se hoje fosse vivo, outras canções criaria, sabe-se lá com que letras!”

    oh coisas de loiça! se fosse vivo, ainda não tinha morrido e o resto é adivinhação que faz mitos como aquele que teria sido o grande estadista do século passado, um tal sá carneiro.

    Gostar

  16. Euro2cent permalink
    1 Maio, 2010 12:45

    > “[…] Não haverá limites para o oportunismo eleitoral?” – perguntava Vital Moreira

    Tirando a palavra ‘eleitoral’, parece que não senhor, não há limites para o oportunismo.

    Aliás, a mim, Vital Moreira e compinchas só me fazem lembrar outra canção do Zeca Afonso, que ouvi pela primeira vez hà muitos anos, numa cópia em cassete fanhosa passada de mão em mão às escondidas:

    “pela noite, pela calada, vêm os vampiros … eles comem tudo, eles comem tudo, e não deixam nada”

    Hoje andam à luz do dia, e falam que se fartam, sem vergonha nenhuma. Continuam a odiar crucifixos.

    Gostar

  17. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 14:04

    “A não ser naqueles espectáculos-rituais em que os outrora jovens cantores da intervenção, agora cada vez mais velhos, dão os braços e se embalam, cantando-a, como quem regressa a um tempo que já não é o seu e que, embora nunca o afirmem, parecem aliviados por ter terminado.”

    Você não sabe o que diz. Não espera que a levem a sério…

    Gostar

  18. 1 Maio, 2010 15:54

    Cruzei-me com José Afonso quando entrei para o então Ciclo Preparatório. Ele era professor de história. Foi forçado a sair ainda no 1º período por razões por todos conhecidas.

    Uns anos mais tarde, fui “iniciado” à sua discografia no gira-discos do meu primo, dois anos mais velho que eu. Ouvíamos, às escondidas da família, os “Cantares de Andarilho”, “Traz outro amigo também”, “Cantigas de Maio” (o meu disco preferido), “Eu vou ser como a toupeira”, assim como “Os Sobreviventes” do Sérgio Godinho e, do José Mário Branco, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” e também “Margem de certa maneira”. De Espanha, por processos rocambolescos, chegavam-nos os discos dos Aguaviva.

    Já depois do 25 de Abril, em pleno Verão quente, certa noite, encontrei-me frente a frente com o Zeca Afonso, militante político que percorria Setúbal num automóvel (actividade que vim a saber depois ser frequente), em conjunto com outras “personalidades” que não vou citar porque só o menorizam, com o intuito de prevenir a ocorrência de eventuais actos contra-revolucionários. Recordo-me de ter sido submetido, em conjunto com os meus “camaradas de pichagem”, a um interrogatório cerrado visando esclarecer o verdadeiro significado semântico da palavra de ordem “Contra o fascismo e o social-fascismo, independência nacional”. Na 1ª ronda, ficaram satisfeitos com a nossa explicação. À segunda ronda do automóvel, nessa mesma noite, talvez porque entretanto se tenham ido informar melhor sobre o grupúsculo a que pertencíamos, o resultado foram umas bofetadas e pontapés e umas camisas rasgadas. Enfim, nada que o espírito revolucionário não aguentasse.

    Tentar circunscrever a admiração pela música de José Afonso apenas ao “povo de esquerda” é tão idiota e fascista quanto pretender que só os nazis podem admirar Wagner e os colabos Céline.

    Um bom 1º de Maio para a comunidade do Blasfémias!

    “Venham mais cinco”, José Afonso, 1973

    Venham mais cinco, duma assentada que eu pago já
    Do branco ou tinto, se o velho estica eu fico por cá
    Se tem má pinta, dá-lhe um apito e põe-lhe a andar
    De espada cinta, já crê que rei aquém de além-mar

    No me obriguem a vir para a rua
    Gritar
    Que é já tempo d’ embalar a trouxa
    E zarpar

    Tiriririri buririririri, Tiriririri paraburibaie, 2X

    A gente ajuda, havemos de ser mais eu bem sei
    Mas há quem queira, deitar abaixo o que eu levantei
    A bucha dura, mais dura a razão que a sustém
    só nesta rusga não há lugar prós filhos da mãe

    No me obriguem a vir para a rua
    Gritar
    Que já tempo d’ embalar a trouxa
    E zarpar

    Bem me diziam, bem me avisavam como era a lei
    Na minha terra, quem trepa no coqueiro o rei
    A bucha dura, mais dura a razão que a sustém
    só nesta rusga não há lugar prós filhos da mãe

    No me obriguem a vir para a rua
    Gritar
    Que já tempo d’ embalar a trouxa
    E zarpar

    Gostar

  19. Anónimo permalink
    1 Maio, 2010 16:39

    oh peluche! à falta de passado cultural de direita, adoptas o de esquerda. o caga ia mais longe, alterava-lhe as letras e aproveitava a música.

    Gostar

  20. Eleutério Viegas permalink
    1 Maio, 2010 17:25

    Estou-me nas tintas para a bimbisse da música do zeca (o afonso) e cia. São todas horrorosas. Aliás, cresci na época em que só se ouviam esses horrores pimba da “gaivota” e da “muralha d’aço”, o que levou a juventude a refugiar-se na música anglo-saxónica, que ao menos era agradável e permitia dançar.

    Felizmente, tudo isso é passado. Agora temos um problema muito mais grave porque não há uma ideia tão generalizada de que isto é nocivo. Refiro-me ao “governo” bandalho que tarda em ser corrido.

    Gostar

  21. Leandro Seabra permalink
    1 Maio, 2010 22:05

    Gostar

  22. Miguel permalink
    16 Agosto, 2012 08:18

    O Zeca escreveu músicas comunistas para comunistas.

    Porque haviam a malta de direita de usar as músicas dele? Não faz qualquer sentido, é incoerente, uma tentativa de corrupção do sentido original das músicas

    Gostar

Trackbacks

  1. A democracia também vive de paradoxos « BLASFÉMIAS

Indigne-se aqui.