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Simplegis

23 Setembro, 2010

Nunca se legislou tão mal em Portugal como agora. Mesmo os 432 diplomas aprovados no tempo do PREC que o Governo se prepara para revogar eram mais compreensíveis.  Consciente, apesar de tudo, do problema, o Governo pretende agora que “os decretos sejam publicados com um resumo que explique o sentido das leis aos cidadãos.” Espantoso (só falta saber quem vai redigir os resumos e que valor lhes será atribuído por quem tem de aplicar a lei – recordo que a própria Assembleia da República, volta e meia, pede pareceres externos sobre o significado das leis que ela própria aprovou). Sobre a péssima técnica legislativa e as suas consequências nefastas para os cidadãos, veja-se este exemplo, publicado hoje no Diário da República.

O caso é o seguinte: há uma lei que prevê um crime chamado “abuso de confiança fiscal”, crime que consiste em não entregar ao Estado impostos retidos a terceiros (e.g. IVA ou IRS retido a trabalhadores). A lei foi alterada diversas vezes, sendo que, em resultado de cada alteração, se tornou menos exigente quanto aos pressupostos necessários para a verificação de tal crime. A mesma lei prevê outro crime, em tudo idêntico, denominado “abuso de confiança contra a segurança social” (basicamente, a não entrega à segurança social da parte retida aos trabalhadores). O artigo que regula o segundo tipo de crime tem várias remissões para o artigo que regula o primeiro.

Com a Lei do Orçamento de Estado para 2009, a lei foi alterada, passando a constituir crime de abuso de confiança fiscal apenas a não entrega de impostos de montante superior a 7500 euros e alterando-se alguns números do artigo que o regula. Não se alterou, porém, o artigo respeitante ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, do que resultou, entre outras consequências, a remissão para um número que deixou de existir…

Alguns tribunais entenderam que aquele limite mínimo se deveria aplicar também ao crime de abuso contra a segurança social, absolvendo os arguidos acusados pela prática de tal crime por valores inferiores aos 7500 euros. Outros, porém, continuaram a condenar arguidos acusados de abuso de confiança contra a segurança social, mesmo estando em causa valores inferiores àquele limiar.

A questão foi agora objecto de apreciação pelo STJ, que decidiu continuar a ser crime a não entrega de contribuições para a segurança social de valor inferior a 7500 euros.

Mas a decisão não foi pacífica: dos 18 Conselheiros que votaram o acórdão, 8 votaram contra (sustentando que não devia considerar-se crime).

Para além dos complexos raciocínios jurídicos invocados para sustentar uma e outra posição, a consequência prática é esta: há pessoas condenadas, por vezes a prisão efectiva, por um comportamento que alguns tribunais entendem ser crime. E há outras que, pelos mesmíssimos comportamentos, são absolvidos noutros tribunais. Ser ou não se preso não depende do que se fez, mas da sorte (ou do azar) de o processo ser distribuído a determinado juiz ou colectivo de juízes. Porém, a culpa não é (só ou sobretudo) dos tribunais: é de um legislador inepto.

17 comentários leave one →
  1. Licas's avatar
    23 Setembro, 2010 12:56

    A ser verdade , ESPANTOSO : : :

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  2. Ana C's avatar
    Ana C permalink
    23 Setembro, 2010 14:00

    Os assessores e, muitos dos juristas, que entram para os ministérios e comissões não têm o mínimo de experiência prática nas matérias sobre a qual estão a fazer alterações à lei, ou não se actualizam relativamente à experiência do dia-a-dia. A
    Ainda mais: muitas vezes não consultam sequer jurisprudência para ver como os tribunais superiores estão a decidir os casos concretos. A maior parte das vezes dão uma olhadela ao que se faz no estrangeiro e nem chegam a perceber os resultados práticos daquilo que estão a escrever para Portugal.
    Outras vezes a lei está carregada de TEORIA (aqui entram os Profs de Direito convidados para essas comissões) e pouco sentido prático.
    Daqui resulta que, passados alguns tempos depois da lei sair, se verifica que é inexequível em algumas partes.
    Vá de alterar.
    A INSTABILIDADE LEGISLATIVA que se verifica hoje em Portugal é muito mais do que a adaptação da lei à evolução dos tempos.
    É a INCOMPETÊNCIA TÉCNICA e FALTA DE EXPERIÊNCIA PRÁTICA de uma série de pessoas (amigas, amigas dos amigos e amigos) que é colocada nos ministérios e comissões pelo amigo.

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  3. montenegro's avatar
    montenegro permalink
    23 Setembro, 2010 14:18

    Quer dizer com isso, passando os Dec Lei pelo crivo de assessoria do Presidente e por ele proprio. o que me diz, é que ele assina de cruz…realmente tenho um PR muito fraco, na opinião do apostador

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  4. montenegro's avatar
    montenegro permalink
    23 Setembro, 2010 14:22

    Dec Lei levam assinatura do PR – o que faz a sua assessoria?

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  5. Conde Venceslau Joaquim Fernandes's avatar
    Conde Venceslau Joaquim Fernandes permalink
    23 Setembro, 2010 14:25

    De que é que estavam à espera. Já viram bem os coladores de cartazes que ocupam os lugares de deputados da nação ? Muitos deles nem as novas oportunidades devem ter acabado, é que na hora de levantar o cu para seguir a disciplina partidária só é preciso usar a parte do cérebro responsável pelo controle muscular das pernas. O resto é escusado, e pode até dar maus resultados.

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  6. João's avatar
    João permalink
    23 Setembro, 2010 14:38

    O melhor será fazerem primeiro os resumos e depois os respectivos decretos.

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  7. Arnaldo Madureira's avatar
    Arnaldo Madureira permalink
    23 Setembro, 2010 14:44

    Pode avaliar a sua hipótese aqui http://www.parlamento.pt/DeputadoGP/Paginas/GruposParlamentaresI.aspx

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  8. Arnaldo Madureira's avatar
    Arnaldo Madureira permalink
    23 Setembro, 2010 14:56

    O sistema político foi feito assim. Os deputados obedecem ao partido. Se algum partido discordasse, teria esta oportunidade de revisão constitucional para propor uma reforma profunda.

    Mas Passos Coelho preferiu tapar as borbulhas com base em vez de curar as borbulhas. E vá de propor que se troque o tendencialmente gratuito pelo só paga quem pode. Os “liberais” ficam todos contentes e não percebem que é um aumento de impostos para reduzir o défice. E como há poucos ricos, que possam pagar, o défice público não se vai mexer para baixo.

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  9. lucklucky's avatar
    lucklucky permalink
    23 Setembro, 2010 16:29

    Todos (des)aprendem o mesmo no sistema de Ensino Público Único, qual a admiração.

    A qualidade das pessoas é baixa.

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  10. José's avatar
    José permalink
    23 Setembro, 2010 17:23

    A questão ainda é outra: quem faz verdadeiramente as leis, redigindo o seu articulado?

    Respondo para poupar tempo: certos escritórios de advogados, por encomenda.

    Quanto reservou este Governo no Orçamento deste ano para pareceres e coisa semelhante? Quase um bilião!

    Quem ganha com isso? Certos escritórios de advogados. Querem nomes?

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  11. José's avatar
    José permalink
    23 Setembro, 2010 17:24

    Isto é um grande, grande escândalo.

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  12. CL's avatar
    23 Setembro, 2010 17:32

    Um bilião?

    Onde é que viu isso José?

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  13. José's avatar
    José permalink
    23 Setembro, 2010 18:41

    CL:

    Veja no quadro V

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  14. José's avatar
    José permalink
    23 Setembro, 2010 18:46

    Há duzentos milhões de euros, no Orçamento de 2010 para aquisição de “outros serviços” a privados.

    O tribunal de Contas vai saber que “outros serviços” serão esses?

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  15. Licas's avatar
    23 Setembro, 2010 20:11

    Talvez, publicar os Códigos . . . em LIVROS DE BOLSO : . .
    (Ao bolso já eles nos andam a mexer há muitos anos)

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  16. José's avatar
    José permalink
    23 Setembro, 2010 21:21

    Aminha filha de 8 anos aprende a escrever resumos. As leis não são para advogados, são para todos. É gravíssimo aprovar-se leis codificadas.

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  17. JUSTIÇA DE FAFE's avatar
    JUSTIÇA DE FAFE permalink
    24 Setembro, 2010 00:37

    Bem, como os gajos do Governo+ A.R. não sabem fazer leis, contratam escritórios externos amigalhaços (aí está a explicação para o JMJúdice dizer a aberração de que o Ant Costa fora o melhor min da justiça!!!), pagos a milhões, que fazem leis intragáveis, inelegíveis, de péssima técnica legislativa, com remissões sobre remissões, pior do que puzzles…..
    Na verdade, a marca que esta escumalha socratina vai deixar é a todos os títulos bárbara….

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