Saltar para o conteúdo

Alienações*

17 Novembro, 2010

Cada época tem as suas fixações. Problemas que há bem pouco tempo arrebatavam os ânimos caem depois no mais profundo esquecimento. Por exemplo, os nossos antepassados de 1910 veriam com espanto o alheamento com que temos vivido as últimas notícias sobre os doentes psiquiátricos.
Em 2005 soube-se que a “desinstitucionalização dos doentes psiquiátricos” era um dos objectivos do Governo e que o Ministério da Saúde, então liderado por Correia de Campos, equacionava o encerramento de um dos dois hospitais psiquiátricos em Lisboa. Três anos depois ditou-se o fim dos hospitais psiquiátricos do Lorvão e do Miguel Bombarda. Curiosamente a data então avançada para o encerramento do Miguel Bombarda era 2012, mas, caso único em Portugal, o prazo foi antecipado e o Miguel Bombarda encerrará em 2010. Digamos que do ponto de vista estritamente contabilístico é mesmo importante que feche, porque o Miguel Bombarda, tal como os hospitais de S. José, Capuchos e Santa Marta foram vendidos pelo Ministério da Saúde à Estamo, detida pela Parpública, numa operação que rendeu ao Estado-vendedor 142 milhões de euros, milhões esses que o Estado-comprador da Estamo-Parpública espera rentabilizar através de projectos imobiliários. E naturalmente se as instalações não estiverem disponíveis nas datas contratualizadas o Estado-vendedor terá de pagar renda ao Estado-comprador, ou uma indemnização, no caso de o incumprimento suceder no Miguel Bombarda.
Todos estes negócios em que os ministérios, no caso o Ministério da Saúde mas podia ser o da Educação ou da Defesa, alienam o seu património a empresas públicas que depois o transferem ou colocam noutras empresas públicas colocam uma questão de fundo: quem são, como são escolhidas e a quem prestam contas as pessoas que dirigem este conglomerado de empresas públicas?
Mas deixemos as perguntas sobre o Estado-vendedor e o Estado-comprador e voltemos ao Miguel Bombarda ou mais concretamente aos doentes mentais. Com os avanços dos tratamentos não faz felizmente sentido que se institucionalizem pessoas como acontecia precisamente nos tempos do dr. Miguel Bombarda, mas é duvidoso que os doentes institucionalizados há anos e anos consigam, como pretende o Ministério da Saúde, regressar às famílias que, a existirem, estarão pelo menos tão envelhecidas quanto eles. (São recorrentes as histórias do aumento da população de pessoas sem-abrigo nos países que resolveram abruptamente fechar instituições psiquiátricas.) Mas sobretudo há que ter em conta que a esta geração de doentes que agora se procura desinstitucionalizar – e quero acreditar que as anunciadas residências criadas para os acolher existem de facto – há que juntar aqueles que, mais novos, já não foram institucionalizados e que acabam frequentemente na prisão, quando o seu problema é de saúde: nas muitas histórias de violência doméstica encontramos com uma regularidade inquietante no papel do agressor alguém que, tendo problemas de saúde mental, interrompeu os tratamentos ou os recusou e acabou a agredir violentamente às vezes o único familiar ou vizinho que lhe restava. Tal como aliena edifícios, o Ministério da Saúde também aliena responsabilidades. No caso para o Ministério da Justiça, cuja Direcção-Geral dos Serviços Prisionais acaba a “institucionalizar” aqueles que os serviços de saúde não quiseram ou não puderam acompanhar.

3 comentários leave one →
  1. João Vasco permalink
    17 Novembro, 2010 09:45

    «Tal como aliena edifícios, o Ministério da Saúde também aliena responsabilidades. »

    Curioso…

    O que terão os diferentes colegas de blogue a escrever sobre esta crítica?

    Gostar

  2. 17 Novembro, 2010 12:20

    Não me parece uma boa medida,a não ser por motivos económicos,desinstitucionalizar esses doentes porque,nalguns casos,se tornam perigosos para a sociedade.Já lá vão alguns anos,assisti em Lisboa a uma cena do género:um desses indivíduos que por acaso se fazia acompanhar de uma daquelas lancheiras de madeira atirou com ela às ventas de um sujeito qualquer e partiu-lhe uma série de dentes.Suponhamos que a atirava à cara dum senhor ministro da altura.Em que ficávamos?

    Gostar

Indigne-se aqui.