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A propósito dos poderes presidenciais*

27 Dezembro, 2010

A avaliar pelo muito que se tem dito e escrito nesta campanha, pode afirmar-se que se espera que um futuro Presidente da República proceda a golpes de Estado ou que, numa versão benévola, se substitua ao primeiro-ministro. Na verdade, em Portugal o Presidente da República tem poucos poderes e muitos votos: neste momento, setecentos mil votos separam o Governo do Presidente da República. E o seu próprio partido vale menos um milhão de votos do que o seu antigo líder. Mas isso só poderá ser um problema para o próprio caso se tivesse candidato a pensar ser outra coisa que não Presidente da República, com estes poderes. O que não foi manifestamente o caso de Cavaco Silva.
Mas se o mínimo que se exige de quem se candidata à Presidência da República é que conheça os poderes desse cargo, há que reconhecer que é profundo o paradoxo entre o que se espera do Presidente da República e aquilo que de facto a Constituição lhe permite fazer. Nesta matéria nem sequer mudámos muito com a democracia. No Estado Novo colocaram-se as esperanças na eleição presidencial como forma de normalizar o regime, ou seja, como o meio de afastar Salazar. Hoje discutem-se os poderes presidenciais como se fosse da arquitectura desses poderes que viria a solução para os nossos problemas. Mas não é. E felizmente.
Hoje como ontem a nossa crise e os nossos bloqueios não resultam da orgânica dos poderes mas sim da incapacidade das nossas elites para deixarem de esperar que o tempo ou factores externos façam o que elas sabem que devem fazer mas não fazem para não ficarem mal na fotografia. Para não passarem por loucos como aconteceu a Medina Carreira. Para não perderem aquilo que em Portugal se entende por compostura e que na prática é apenas o estar com os enganos da situação. O mais que se espera é que outra situação se substitua à que existe. Enquanto tal não acontece sobrevive-se.
Não é por acaso que neste país durante anos e anos se arquitectaram golpes de Estado. Cada golpe, supunha-se, colocaria o contador a zeros e desse zero em diante seríamos felizes e prósperos para sempre. Revoluções propriamente ditas não tivemos, se por revolução se entender afrontar o poder, pois seja na sua versão de direita – a Revolução Nacional lançada por Salazar nos anos 30 – ou de esquerda – o PREC de 75 -, o que tivemos foram circunstâncias em que aqueles que procuravam reforçar-se no poder encenaram revoluções. Com grande proveito político, note-se. Quando o tempo dos golpes e das revoluções passou à História o pretexto para colocar o contador a zeros foi a Europa. Se os golpistas já não nos faziam mudar pela força das armas, passaríamos a mudar pela força das directivas. E agora que a Europa nos falha, os mercados, o FMI e o endividamento externo surgem como aquilo que nos obrigará a mudar. Porque mudar pela constatação dos erros que cometemos isso é que não.
Por exemplo, há quantos anos se sabe que a lei das rendas não resolve problema algum? Pelo menos desde meados do século XX que se tornou óbvio que essa lei, que impedia e impede a existência de um mercado de arrendamento, não só levava à ruína de milhares de edifícios cujos proprietários tiravam deles rendas ridículas como penalizava seriamente as novas gerações, obrigando-as a endividarem-se para comprar casa já que ninguém lhes alugava nenhuma ou lhes pediam rendas exorbitantes. Ao longo dos anos, nos mais diversos quadrantes, ninguém esteve para se queimar enquanto político dizendo claramente o que pensava sobre este assunto. Muitos desses políticos tinham vivido noutros países e sabiam bem como aí era fácil mudar de casa. Mas uma vez em Portugal optaram por esperar que quem viesse depois enfrentasse o problema. Agora a alteração à aberração legal que tem regulado o arrendamento em Portugal é-nos apresentada como necessária para satisfazer Bruxelas. O que quer dizer que por nós poderíamos continuar a conviver placidamente com tal estado de coisas.
Se em vez da lei das rendas pensarmos no horário dos supermercados e hipermercados constataremos a mesma estratégia de deixar os problemas da realidade para o político que se segue. O declínio das mercearias e mercados municipais, por contraponto à abertura de supermercados (com os seus horários alargados) discute-se em Portugal desde os anos 60 do século passado e com particular acuidade desde que nos anos 70 o Grupo Pão de Açúcar abriu os primeiros hipermercados e uma cadeia de supermercados. No ano de 2010 finalmente a questão foi encerrada. As mercearias não ganharam nem perderam clientes por causa disso mas sim porque o estilo de vida dos portugueses mudava. Quanto aos mercados municipais, agonizam até ao dia, daqui por muitos anos, em que outro factor externo leve os detentores de cargos políticos a dizer que obviamente a esmagadora maioria deles deve fechar as portas.
Exemplos não faltam. Ler jornais portugueses com alguns anos, como faço por razões profissionais, permite-me coleccionar casos e casos destes e sobretudo fazer um confronto com um país que desenvolveu uma espécie de fastio à realidade. Na verdade qualquer político que em Portugal pronuncie três frases sobre a orgânica do sistema – se deve ser mais ou menos parlamentar, mais ou menos presidencial – ganha foros de pensador e de respeitabilidade. Caso o mesmo político optasse por se pronunciar no sentido de mudar a lei das rendas seria no mínimo confrontado com uma rebelião dos seus correlegionários perante tal falta de jeito.
Daí que nos pareça muito mais tentador discutir os poderes presidenciais ou se os presidentes devem cumprir apenas um mandato do que enfrentar as razões da nossa crise.

*PÚBLICO (adaptado)

11 comentários leave one →
  1. 27 Dezembro, 2010 11:50

    e que tal a remoção do cargo de PR, já que não tem poderes nenhuns?

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  2. helenafmatos permalink
    27 Dezembro, 2010 11:52

    Não é verdade que não tem poderes. Não tem é os poderes que se julga que tem e que alguns candidatos, como Fernando Nobre, julgam que teriam caso fossem eleitos.

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  3. fonseca pereira permalink
    27 Dezembro, 2010 12:02

    Não sei se de facto a nossa memória colectiva e individual é curta.

    Mas muita gente tenta fazer-nos esquecer situações públicas, menos agradáveis ou até melindrosas da sua vida, sobretudo em tempo de eleições, sobretudo quando candidatos.

    Há dias no debate entre os candidatos Francisco Lopes e Cavaco Silva, Francisco lopes encavacou Cavaco Silva sobre o caso BPN e das suas ligações com os homens fortes que levaram à falência aquele banco pelos desvios efectuados e outras tramóias, designadamente Oliveira Costa e Dias Loureiro. Cavaco fugiu à questão incómoda.

    Cá fora, no entanto, respondeu que nunca tivera nada a ver com o BPN, que nunca comprara ou vendera nada ao BPN.

    Cavaco Silva sabe que com esta resposta foge à verdade.

    Cavaco Silva fez negócio com acções da SLN , a sociedade detentora do capital do BPN e sabe e a comunicação social referiu que Cavaco Silva obteve com as acções adquiridas em seu nome e da sua filha uma situação privilegiada pois vendeu-as com elevado lucro.

    Como a SLN não era cotada só graças a conhecimentos e compromissos muito fortes dentro do grupo grangeou essa situação de privilégio.

    Poderá dizer-se. 350 mil euros, sensivelmente o lucro da família Cavaco neste negócio, não é coisa de monta, comparados com os milhões de Dias Loureiro e Oliveira e Costa. É verdade.

    Mas Cavaco Silva nunca explicou essa situação. Andou sempre a fugir e agora vem tentar branquear o sucedido na sua qualidade de Candidato.

    Será que os portugueses informados se esqueceram já deste facto?

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  4. João permalink
    27 Dezembro, 2010 12:33

    Os grandes poderes do Presidente limitam-se a mandar mensagens.
    Qualquer pessoa poderia desempenhar o cargo em part-time, a partir de casa.
    Para as inaugurações, e comezainas de croquetes poderíamos contratar profissionais experimentados, como Lili Caneças, Cinha Jardim e bruxa Maia. Esta última teria a vantagem de fazer o discurso de Ano Novo com as respectivas previsões.

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  5. licas permalink
    27 Dezembro, 2010 12:55

    Mas , porque estamos com essa chatice de eleger um Presidente da República?
    Camarada fonseca pereira, na Coreia do Norte, país que *há dúvidas que não seja
    uma Democracia* (Bernardino Soares) o papá Presidente indica para um dos diversos
    filhos : aquele ali é que vai ser o meu sucessor. E toda a gente bate palmas. Ou então
    em Cuba (de que não existe dúvidas que seja um país democrático , Bernardino Soares) é
    o mano mais novo do Presidente que toma o cargo.

    ISTO É QUE É ______SIMPLEX!!!

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  6. jojoratazana permalink
    27 Dezembro, 2010 14:55

    Licas tapa sol com uma peneira.

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  7. licas permalink
    27 Dezembro, 2010 16:30

    Está enganado: não leio *O Sol* . . .
    E peneiras não as tenho .

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  8. Nuno permalink
    27 Dezembro, 2010 18:19

    A verdade é que, de facto, não precisamos de presidente nem de república de maneira nenhuma e isto pode, então, ser uma Democracia.

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  9. JLeme permalink
    27 Dezembro, 2010 18:58

    E que tal reimplantar a Monarquia e aclamar o nosso Rei? Sempre era mais limpo, menos poluente e ficava-nos muito mais barato.
    De certo não haveria crise.

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  10. António Barreto permalink
    29 Dezembro, 2010 19:38

    Apesar da superior legitimidade democrática do Presidente da República face aos titulares dos restantes órgãos de soberania, os poderes Presidenciais são quase residuais, porque a respetiva eleição, escapando constitucionalmente ao controle partidário representa uma ameaça potencial para os respetivos partidos . E este é, quanto a mim, um dos maiores absurdos da nossa democracia; os partidos democráticos não aceitam sujeitar-se a um órgão democrático, constitucionalmente, de nível hierárquico superior! Ou seja, Democracia sim, mas quem manda somos nós! Os que, com desprezo, chamavam corta-fitas ao Tomás, tudo têm feito, ou fizeram, para reduzir a Presidência desta terceira República, à insignificância! Para não atrapalhar. No entanto, quando estamos “com as calças na mão” “aqui’del Rei” que o Presidente nada fez!

    Afinal, talvez esteja a ser injusto; sempre temos a famigerada invenção democrática da “magistratura de influência”. Isto é; o PR pode dar a sua opinião e fazer as recomendações sempre que entender necessário, que ninguém, mas mesmo ninguém, lhes está vinculado. É assim uma espécie de Padre António Vieira com o seu exuberante sermão aos Peixes!

    Vendo bem as coisas, eu também gostava de ter uma democracia só para mim.

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