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Almoços grátis

16 Maio, 2011

Imagine o leitor que é um empresário da área da restauração. Um dia, encontrou na segunda série do Diário da República um concurso público para a concessão de um restaurante, a instalar num concelho não muito povoado do Minho, cujas condições eram as seguintes:

– O concessionário tinha de construir de raiz o edifício do restaurante, procedendo ao pagamento do valor do terreno, das obras de construção e de todo o equipamento para o restaurante funcionar. O Estado financiaria 10% do investimento total.

– O concessinário exploraria o restaurante durante 30 anos, obrigando-se a mantê-lo em funcionamento todos os dias, servindo refeições de qualidade, a preços fixados pelo Estado de acordo com uma fórmula pré-conhecida.

– O concessionário entregaria aos cofres do Estado os impostos devidos pela sua actividade (designadamente IVA e IRC).

– Caso a procura excedesse a capacidade do restaurante, o concessionário seria obrigado a realizar as obras de ampliação necessárias para acomodar a procura.

– No final do prazo da concessão, o restaurante (edifício e equipamentos) reverteria, sem outros custos, para o Estado, que lhe daria o destino que entendesse.

Imagine agora o leitor que concorreu e venceu o referido concurso, sendo por isso o concessionário, há cerca de 10 anos, do dito restaurante (ainda não fez obras de ampliação, porque, apesar de a comida não ser má, o restaurante fica longe das rotas turísticas, os preços – fixados pelo Estado – são elevados, a crise não ajuda, etc.). Um dia, um Secretário de Estado telefona-lhe com a seguinte proposta: Olha, pá [o secretário de estado trata-o com uma certa familiaridade, pois conhece-o desde o tempo em que eram ambos alunos do mesmo liceu], o meu chefe teve aqui uma ideia engraçada. Temos uma empresa pública que dá prejuízo contabilístico, porque não tem receitas próprias, e o meu chefe quer mudar isso. Diz-me lá o que é que achas disto: tu continuas a explorar o restaurante como até aqui, mas em vez de incluíres o preço das refeições que serves nos rendimentos da tua empresa, entregas tudo à tal empresa pública. Em troca, recebes uma “renda fixa” por “disponibilidade”. Fizemos umas contas e concluímos que recebes em média 25 euros por cada pessoa que vai almoçar ou jantar ao teu restaurante. Como tens lá 40 lugares, pagamos-te 50 euros por cadeira/dia, quer a cadeira seja ocupada ou não. O leitor nem quer acreditar no que está a ouvir, mas coça a cabeça e responde: Espera lá, pagas-me duas refeições por dia/cadeira, mas há dias [muito poucos dias, pensa – mas não diz – o leitor] em que sirvo duas rodadas de jantares, mais uma ao almoço.

O Secretário de Estado, que já tinha pensado nessa hipótese, descansa-o: não te preocupes, quando isso acontecer, pagamos-te 25% do que receberes de cada comensal a mais. E põe-se no contrato uma cláusula para ficares mais descansado: “A Empresa Pública é titular, nos termos regulados no contrato de concessão, do direito de cobrança dos almoços e jantares servidos no restaurante concessionado, assumindo integralmente a EP o risco da procura associado a esse direito“.

O leitor, ainda pensa em perguntar o que é que ganha o Estado com isso, mas, naturalmente, contém-se e nem pede tempo para pensar, com medo que o SdE comece a fazer contas [mesmo sabendo que as contas nunca foram o forte do SdE] e perceba o negócio ruinoso [para a EP do Estado] que lhe estão a propor: um restaurante em que recebe o equivalente a duas refeições por dia/cadeira, mesmo que não sirva nenhuma, mais 25%, na remota eventualidade de servir mais do que duas por cada cadeira, desde que tenha a porta aberta. Diz imediatamente que sim e já só pensa em ligar para a agência de publicidade, para cancelar os outdoors de publicidade ao restaurante, que mandara colocar junto à auto-estrada mais próxima e que lhe custam uma pequena fortuna, de que já não precisará. A caminho de casa, ainda escreve no calendário do smartphone “24 de Dezembro: oferecer  livro do João César das Neves ao SdE e ao chefe dele, com a dedicatória: é tudo uma questão de perspectiva“. Na TSF, ouve o Primeiro-Minstro anunciar que a crise acabou porque Portugal foi o país da União Europeia que mais cresceu no primeiro trimestre. Sente-se tentado a jogar no Euromilhões, mas a sua costela supersticiosa diz-lhe para não abusar da sorte.

13 comentários leave one →
  1. Teofilo M.'s avatar
    16 Maio, 2011 18:14

    Ah! Era um concurso que por acaso foi ganho pelo amigo do Secretário de Estado?!
    Interessante história de um restaurante que recebe 2.000 Euros por dia (exceto nos dias em que recebe mais comensais, imaginemos aos fins-de-semana) e fica assim:
    (2.000 x5 = 10.000) +(2.500 x2) = 15.000 € por semana
    15.000 x 4 semanas = 60.000 € por mês.
    Atendendo a que está fora das rotas turísticas, não enche, porque os preços são elevados e a crise é má, daí ainda não ter tido necessidade de ampliação, e para servir menos de 40 bicos, bastará um empregado (que pode ser o gerente) + uma cozineira e um ajudante, penso apenas que é uma grande mama.
    Já agora poderiam dizer-me onde fica o restaurante, pois estou interessado em ir lá com uma data de malta e pagar 25 € por cabeça comendo o que me apetecer e bebendo melhor.

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  2. isto há coisas's avatar
    16 Maio, 2011 18:21

    e depois aqui há 70 milhões em obras púbicas …umas tem 10 mil de subsídios comunitários em 150 mil
    outras 2 ou 3 milhões em 8 ou 13 do total
    pagando mais em extras luvas e trabalho supranumerário de mão de obra predominantemente estrangeira

    para que é que querem não perder os tais subsídios

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  3. confrade's avatar
    confrade permalink
    16 Maio, 2011 18:35

    ha que ler o DR, não se trata de restauração, mas o exemplo serve

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  4. JoséB's avatar
    JoséB permalink
    16 Maio, 2011 19:03

    «ganho pelo amigo do Secretário de Estado»
    Ou amigo do ministro, ou amigo do PM, ou Jorge Coelho,
    aliás um dos ‘jorges coelhos’ da Dinamarca lusitana.

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  5. Joao Branco's avatar
    Joao Branco permalink
    16 Maio, 2011 19:37

    E depois disto tudo, ainda vem um governo a seguir a obrigar os comensais a pagar mais por cada refeição (em parte porque os partidos da oposição acham que não podem existir almoços grátis) e o secretário de estado ainda faz uma adenda ao contrato a obrigar-se a pagar mais por ter renegociado o mesmo…

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  6. Joao Branco's avatar
    Joao Branco permalink
    16 Maio, 2011 19:39

    Claro que com os preços mais caros por cada refeição os comensais ainda diminuem, e o valor que os comensais pagam a mais não compensa nem de perto nem de longe o valor adicional que foi pago na renegociação…

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  7. Piscoiso's avatar
    16 Maio, 2011 19:45

    Como era a ementa?

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  8. licas's avatar
    licas permalink
    16 Maio, 2011 20:51

    Para ti ____________merda!

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  9. PedroS's avatar
    PedroS permalink
    16 Maio, 2011 22:56

    O contrato original não me parece nada vantajoso para o proprietário do restaurante: a troco de 10% do custo inicial, compromete-se a dar tudo ao Estado ao fim de 30 anos. Por que não prescindir dos 10% estatais e manter a propriedade do restaurante ad eternum?

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  10. confrade's avatar
    confrade permalink
    17 Maio, 2011 13:21

    @PedroS porque se assim não for não faz a obra, são as regras 🙂

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  11. Carlos Mendes's avatar
    Carlos Mendes permalink
    17 Maio, 2011 18:59

    Que Deus me perdoe, naquele tem disse Jesus aos seus discípulos: “vou falar por parábolas para que puderes entender melhor”.
    Isto foi naquele tempo. Agora é preciso chamar os nomes aos bois e repeti-los amiúde, para ver se o povo entende.
    Em conclusão, ponha lá os nomes todos, desde o Mendonça, passando pelo Campos, pelo Coelho e pelos outros todos, até acabar no Sócrates.
    Pela minha parte ficava-lhe muito agradecido…

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  12. CL's avatar
    17 Maio, 2011 22:53

    Caro Carlos Mendes,

    Tem razão quanto às parábolas. A história já foi contada aqui, sem metáforas e o resultado não foi muito diferente. Há uma espécie de anestesia (desta vez não é uma parábola) que nos vai afectando ou infectando a todos.

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