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Será que entrámos no Reich da austeridade para mil anos?

10 Agosto, 2012
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No Público de hoje, sobre como não é certo que a Europa regresse ao crescimento e à prosperidade por muito tempo: 

Os pais de Juan Moreno nasceram na Andaluzia e emigraram para a Alemanha. Hoje ele é jornalista da Der Spiegel e este Verão resolveu percorrer de novo as estradas que a sua família fazia quando ia de férias à aldeia natal. O resultado é uma reportagem arrepiante que diz mais sobre o actual estado da Europa do que a entrevista de Mario Monti à mesma revista alemã. Moreno encontrou de tudo, desde a melhor auto-estrada em que jamais circulou – mas com poucos carros – a um aeroporto que nunca chegou a funcionar. Cruzou-se com gente que nunca se endividou para além do razoável, e com gente que viverá com dívidas colossais o resto da vida. Encontrou-se com quem ocupara um pequeno apartamento em desespero e com trabalhadores rurais que nunca se deslumbraram com o boom económico. Tudo para no fim concluir, com bom senso, que não basta “introduzir uma moeda forte, construir dezenas de aeroportos, linhas férreas e campos de golfe, e ter um Audi A6 em cada garagem” para alcançar a prosperidade.

O que é interessante e diferente na reportagem de Juan Moreno para a Spiegel é que ele combina um imenso carinho pelo seu povo com a percepção de que a euforia dos anos do boom foi uma doença partilhada por todos – políticos, banqueiros e cidadãos. “A bolha imobiliária, o dinheiro barato e a euforia seduziram os espanhóis, não porque sejam maus ou preguiçosos, mas porque são simplesmente seres humanos”, escreveu a concluir. Seja lá como for, aprenderam que a prosperidade “à europeia” não está ao virar da esquina e não há outra forma de a alcançar senão com trabalho, persistência e paciência.

Para muitos cidadãos do Sul da Europa, não é fácil aceitar esta realidade depois de tantos anos de ilusão. Trocar o Audi ou o BMW por um utilitário, vender a casa de fim-de-semana, fazer férias mais económicas, desistir da assinatura de um canal Premium de televisão, tudo surge como uma intolerável austeridade. Um caminhar para trás. Em Portugal, como tem escrito repetidamente Vasco Pulido Valente, “o que nos rói é o “atraso”, a “distância” que aumenta e nos separa da “civilização””. Ou seja, da Europa rica do Norte. O mesmo que “rói” os andaluzes entrevistados por Moreno. É um mal antigo que mesmo políticos com vocação de prestidigitadores não fizeram desaparecer, antes agravaram.

 

O intervalo de Agosto é boa altura para ganharmos distância e abandonarmos as ilusões. O dinheiro barato que alimentou o nosso nível de vida nos últimos dez, quinze anos não desapareceu por causa da ganância dos banqueiros, da maldade dos alemães ou da fuga para offshores. Desapareceu porque a crise financeira de há cinco anos acabou com a ilusão do dinheiro eterno, do dinheiro que havia sempre, do dinheiro que se inventava através de esquemas audaciosos para alimentar bolhas imobiliárias (e não só) um pouco por toda a parte. E também para alimentar a voracidade de políticos empenhados em deixar obra e conseguir a reeleição.

Quando essa ilusão explodiu há exactamente cinco anos, com a declaração de crise num primeiro banco, o Northern Rock, o mundo percebeu que tinha mudado. Ou começou a perceber. E não tinha mudado apenas por causa da que viria a ser conhecida como a “crise do subprime”. Aquilo a que assistíamos era à mais colossal transferência de poder económico desde os processos de descolonização. Para quem já se tenha esquecido, basta recordar que há pouco mais de dez anos uma das bandeiras da esquerda mundial era a do perdão da dívida ao “Terceiro Mundo”, e hoje uma das suas reivindicações é que seja o “Primeiro Mundo” a não pagar as suas dívidas, boa parte delas a países que antes víamos como devedores crónicos. Há dez anos, ouvíamos críticas à globalização porque empobrecia os países do Sul; hoje ouvimos críticas à globalização porque está a abalar o estado de bem-estar dos países do Norte.

O mundo está, de certa forma, de pernas para o ar. Antes o Norte emprestava ao Sul para este lhe comprar bens de equipamento. Hoje o Sul empresta ao Norte para este lhe comprar bens de consumo. O “milagre económico” do Norte transferiu-se para o Sul. Só na última década (dados do Banco Mundial), a riqueza por habitante da China aumentou 138%, a da Índia 76% e a do Brasil 28%. Em Portugal, desceu um por cento. Na zona euro, tal como nos Estados Unidos, cresceu apenas seis por cento. Mas na Alemanha foi de 12% e na Suécia (país que não aderiu ao euro) o salto foi de 17%. Entretanto, se há dez anos a economia americana era sete vezes maior do que a chinesa, em 2011 já só era cerca de três vezes maior. Durante décadas, o estado de bem-estar europeu alimentou-se de crescimento económico e de uma demografia favorável. Hoje temos uma demografia desfavorável e o crescimento económico está como está – e está assim desde antes da austeridade, não nos iludamos. O desequilíbrio tornou-se inevitável e a única forma que os governos tiveram para lhe responder foi contraírem dívidas e mais dívidas. Foi esse ciclo de endividamento sem fim que terminou em Agosto de 2007. Hoje sabemos que não voltará a haver dinheiro fácil – resta saber se voltará a haver crescimento.

 

Na Europa, e não só em Portugal, as perspectivas não são animadoras. O nosso sistema educativo, sobretudo nos escalões de elite, está claramente a perder para os Estados Unidos. O mesmo se passa no domínio da investigação científica (basta ver como a indústria farmacêutica migrou do Velho para o Novo Continente). Não temos a mesma capacidade de inovação. Nem de empreendedorismo. Nem de integrar imigrantes.

Tudo isto já seria mau, mas há ainda outros factores que agravam a situação. Um deles é o medo da mudança e de tudo o que é novo. A Europa é um continente assustado onde impera o “princípio da precaução”. Os organismos geneticamente modificados estão a revolucionar a agricultura mundial, mas não a europeia. Os Estados Unidos estão a passar por uma revolução energética que lhes possibilitará a autonomia face às petromonarquias do Golfo através da exploração do gás que existe dissolvido em certas rochas (shale gas), mas na Europa o tema é quase tabu por razões legais e regulatórias. Recentemente, um alto responsável da União Europeia confessou-me mesmo que o melhor era não legislar já por receio de que as leis viessem a sair demasiado restritivas. A Europa passa também a vida a falar de inovação e a dificultar a vida a todos os produtos inovadores.

É por tudo isso que desconfio que a austeridade que tanto criticamos tenha vindo para ficar. Durante muitos milénios, quase não houve qualquer progresso nos níveis de vida das populações. Depois, de repente, deu-se a explosão propiciada pela revolução industrial. Nos 150 anos que terminaram na viragem do milénio, o rendimento per capita na Europa Ocidental foi multiplicado por dez. Desde essa altura estagnou. E estagnar, em tempos de envelhecimento da população, é sinónimo de diminuir.

O que hoje vemos passar-se na Europa, sobretudo na Europa do Sul, é uma retracção assustada que só agravará a decadência relativa. Faz lembrar a retracção da China no século XIV, quando resolveu proteger-se do exterior para preservar a sua riqueza e civilização, então as maiores do Mundo. Sabemos o que lhe aconteceu a seguir.

O que mudou no mundo e torna a vida difícil à Europa não tem nada a ver com a Alemanha (apesar de tudo, um dos países que melhor souberam reagir) ou com a falta de lideranças europeias. É maior, mais complexo e tem raízes mais antigas. E se esta decadência relativa nos condena a uma austeridade eterna, ela não é fruto de nenhum novo Reich milenar. Quem quiser continuar a ignorar tudo isto continuará a viver na mesma ilusão de que tudo se resolve com o dinheiro que há sempre, a mesma que atirou para o desespero actual alguns dos conterrâneos que Juan Moreno reencontrou no seu regresso à Andaluzia natal.

21 comentários leave one →
  1. javitudo's avatar
    javitudo permalink
    10 Agosto, 2012 21:24

    A UE tem recursos para ultrapassar a crise que também mete ladroagem-offshores e especulação.

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  2. JDGF's avatar
    JDGF permalink
    10 Agosto, 2012 21:49

    Depois desta leitura fica a sensação residual se o autor do post alguma vez entendeu o que foi a ascenção e a queda do Reicht…

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  3. BorNot2B's avatar
    10 Agosto, 2012 22:03

    Um dos males da “Europa” é que ela, enquanto entidade una, não existe! O contraponto da Europa são países. Grandes… Construímos a ilusão (muitas vezes eufórica), de falar nos EUA, China, Rússia, Europa… Mas qual Europa?! Pegar num rendilhado de fronteiras duramente construídas por uma História de conflitos, invejas e desconfiança secular, criar organizações supranacionais apartadas dos povos – ainda que “platinadas” de legitimidade democracia -, é pouco, muito pouco, para ter alguma coisa… A Europa democrática – se formos, cínicos -, é a vertente liberal e “moderna” do desejo de unificação imperial que sempre existiu desde a águia romana. Nenhum modelo funcionou e nenhum durou “mil anos”… Dificilmente algo que “não existe” pode fazer alguma coisa…

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  4. Rui Silva's avatar
    Rui Silva permalink
    10 Agosto, 2012 22:26

    Ao contrário de JMF, recuso-me a responsabilizar a classe média por esta situação. Enquanto familiar de emigrante na Alemanha, país em que os créditos sempre foram rigorosos, tendo ele várias vezes tentando, em bancos diferenes, empréstimos para adquirir casa ou mudar de carro, e só em duas circunstâncias, bem escrutinadas, lhe concederam crédito… o caso português, e por inerência o espanhol, foram sempre diferentes. No meu caso, e no sentido de favorecer a aprovação do crédito à habitação, era habitual na altura (finais dos anos 90) os bancos pedirem declarações escritas de rendimentos “por fora”, ou seja, rendimentos que não faziam parte da declaração do IRS, para autorizarem empréstimos à habitação de 20 ou 25 anos.
    O problrma é de mentalidade, e acima de tudo, da mentalidade de iniciativa. Da iniciativa que prefere o lucro rápido à estabilidade… e nisso nós somos dos melhores da Europa.

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  5. Portela Menos 1's avatar
    Portela Menos 1 permalink
    10 Agosto, 2012 23:10

    almoço Portas – Seguro:

    Click to access CAPA_EXP110812.pdf

    aproxima-se mais uma “abstenção violenta” no OE2013 por parte do ps.

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  6. Portela Menos 1's avatar
    Portela Menos 1 permalink
    10 Agosto, 2012 23:14

    (…) Trocar o Audi ou o BMW por um utilitário, vender a casa de fim-de-semana, fazer férias mais económicas, desistir da assinatura de um canal Premium de televisão, tudo surge como uma intolerável austeridade (…)
    .
    sobre que país escreve JMF ?

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  7. piscoiso's avatar
    piscoiso permalink
    11 Agosto, 2012 00:33

    …mas há ainda outros factores que agravam a situação. Um deles é o medo da mudança e de tudo o que é novo.
    eheheh
    Que disparate.
    Como se os jovens não existissem.

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  8. tric's avatar
    tric permalink
    11 Agosto, 2012 01:40

    o Governo Britanico é mesmo Judeu ( é como o português…)…o governo e a oposição…em pleno Jogos Olimpicos a decorrer em Londres apoia a decisão “Olimpica” de destruir o Regime Alaoita-Cristão…declarar o opoio incondicional à destruição do regime Alaoita-Cristão…os Jogos Olimpicos já não são um simbolo da Paz Mundial! ou então, o Reino Unido não esteve a altura da Mensagem…ainda para mais, quando se sabe que a destruição do Reino de Assad, é uma condição necessária e suficiente para a Guerra Semita (+ as suas judearias ocidentias: França, Inglaterra, Estados Unidos, portugal ) -Sunita contra os Xiitas…aliás, o contexto em que a Síria está a viver, já Portugal o viveu, mas com outras potências excepto um e que acabou no maior GENOCIDIO de Cristãos na História de Portugal…Cristãos de Portugal !!! Reino Unido ( Irão) —Portugal (Siria ) — “França Napoleonica” ( ISRAEL e suas Judearias no Ocidente ) …é uma das hipoteses para a explicação da ida do Rei de Portugal e à Siria … qual é a posição deste Governo e Regime perante o Grande Rei Assad ?? … exila-Lo !!??…em nome da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” !!??…
    .

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  9. Unreal's avatar
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    11 Agosto, 2012 04:42

    E os que não se deixaram seduzir? Que continuaram a arrendar casa, que fizeram férias em casa ou pagas a pronto para as quais pouparam nos anos que não tiveram ferias ou as passaram em casa, que evitaram o uso do crédito e que tiveram, por mais pequena que fosse, a ideia de que isto era impossível de sustentar ou simplesmente pensaram ser melhor não ficar condenados a 20 ou mais anos de servidão a bancos, esses são o quê? Ursos?

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  10. pedro's avatar
    pedro permalink
    11 Agosto, 2012 08:40

    parabens jmf ,excelente post. No entanto , sugiro duas achegas : a 1ª é que os países continuam a fazer dinheiro nas rotativas e após esta crise, daqui a 50 ou 100 anos outra virá,isto só se resolve quando a possibilidade de fazer dinheiro for retirada aos políticos e regressarmos ao padrão ouro; a 2ª é que o crescimento pós-revolução industrial só foi possível porque a europa tinha colónias e lutava-se por elas ,pois assim havia mercado ,matérias primas ,etc, à conta das ditas. Esse tempo acabou e ontem o BCE teve o descaramento de sugerir ou” ordenar”que os países intervencionados descessem os salários ,incluindo o salário mínimo , e nesta terra ninguém tem vergonha na cara e o manda pró car……….Estamos numa decadência preocupante.

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  11. balde-de-cal's avatar
    balde-de-cal permalink
    11 Agosto, 2012 09:43

    afinal o jornalista concluiu que o socialismo, qualquer que seja a sua etiqueta, é uma merda.
    as obras públicas são uma tara. por falta de tecnologia.

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  12. trill's avatar
    trill permalink
    11 Agosto, 2012 18:36

    ei pá…. sempre atrasadinhos… essa peça já foi posta online há uma semana no Spiegel…

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  13. Zebedeu Flautista's avatar
    Zebedeu Flautista permalink
    12 Agosto, 2012 02:16

    Pah e os pintelhos do Catroga? É para rapar na guilhotina ou queimar na fogueira? Ando sempre com um isqueiro no bolso e tenho um bom afia laminas a bem da Nação.

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  14. trill's avatar
    trill permalink
    12 Agosto, 2012 09:27

    aliás quem leu no Spiegel sabe que o jornalista foi a Castellon para ver o aeroporto que nunca teve tráfego, que afinal foram “pinhões”, pq o de Ciudad Real custou um bilião e agora é usado por pequenos aviões privados… ou seja, Máfia de Estado, tal como em Portugal: obras desnecessárias para enriquecer as “empresas amigas”

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  15. Trinta e três's avatar
    Trinta e três permalink
    12 Agosto, 2012 22:35

    A única coisa que surpreende na crónica do JMF é a surpresa do autor. Tudo o que aqui refere, foi denunciado há muito e (reconheça-se por honestidade intelectual) por diversos quadrantes políticos. De quem nada se ouviu, foi dos apoiantes do “centrão” que nos continua a governar. Que conclusão tiramos disso?

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  16. _neves's avatar
    _neves permalink
    13 Agosto, 2012 04:10

    Uma crónica fundamentalista… Uma visão univoca do Mundo.
    Processa dados estatisticos verdadeiros, para chegar ás conclusões
    da casa de partida. Algumas falhas: os alimentos GM, ainda não
    têm uma demonstração de inoquidade para o pool genetico humano
    no longo prazo! Sendo eu da classe média economica, quando fui a
    um banco pedir emprestimo para a casa propria (2004), foram-me
    oferecidas acções (com $ desse emprestimo) a fim de “baixar o spread”.
    Noutro nem a declaração de IRS quiseram ler, “nós aqui baseamo-nos
    numa relação de confiança e familiariedade com o cliente”. Uhau!
    Agora o JMF acha que “Trocar o Audi ou o BMW por um utilitário,
    vender a casa de fim-de-semana, fazer férias mais económicas, desistir
    da assinatura de um canal Premium de televisão”
    são conceitos que se me aplicam !! SOu um esbanjador (e a restante
    classe média) por isso me tiraram o 13º e 14º mês, Bem Feito !
    Sobre a origem do dinheiro barato da decada passada aconselhava
    a ler o Greenspan, ele explica muito bem, explica os prós e os contras,
    e sabe do que está a falar !

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  17. neotonto's avatar
    neotonto permalink
    13 Agosto, 2012 06:58

    Este JMF se é jornalista como ele cree ser deveria haver terminado o post algo como assim:
    Depois o Juan Moreno jornalista germano-andaluz que se preçe foi lá perguntar aos paicitos dele para averiguar como era esa especial Andaluzia antes de ir para lá os seus pais apremiados pela fome. Mais isso sao segredos dos antecedentes e passados oscuros dos jornalistas que nao costumam divulgar. Tacanhos.

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  18. joshua's avatar
    palavrossavrvs permalink
    16 Agosto, 2012 14:52

    Espero que todos os Pais do Amaral que há por aí, todos os Catroga, todos os Soares, todos os pançudos, todos os Proença, todos os Júdice, todos esses que engordaram pessoalmente, graças a uma amizade de décadas com o Poder Político, me coloquem pão na mesa: não é preciso muito. Bastam uns trocos e poderei trincar alguma coisa. Têm a obrigação moral de me ajudar a comer. Tenho duas filhas para criar. Tenho trabalhado para aquecer. Não vejo qualquer luz no final do túnel.

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  19. joshua's avatar
    palavrossavrvs permalink
    16 Agosto, 2012 14:53

    Espero.

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