Saltar para o conteúdo

Será depressão, astenia, desgosto de amor, puro desinteresse, desnecessidade ou simples preguiça?

20 Abril, 2015

Fátima Bonifácio no PÚBLICO sobre os “desencorajados” e os departamentos de catequese em que se transformaram as faculdades de ciências sociais: Num recente artigo neste jornal, João Miguel Tavares exprimiu o seu espanto pelo facto de o Observatório sobre Crises e Alternativas, coordenado por Carvalho da Silva (C.S.), um organismo do CES da Universidade de Coimbra dirigido por B. Sousa Santos, ter produzido um trabalho em que se contabilizava 29% de desempregados em Portugal. Intrigado com este número bombástico, J.M.T. tratou de averiguar como se chegara àquela cifra, concluindo que se tratava de “desemprego em sentido lato”, que abarcava, entre outras, a categoria enigmática de “inactivo desencorajado”.

No mesmo jornal, C.S. explicou pacientemente a J.M.T. que este conceito foi oficializado pelo INE como significando “indivíduo com idade mínima de 15 anos que […] não tem trabalho remunerado nem qualquer outro, pretende trabalhar, está ou não disponível para trabalhar num trabalho remunerado ou não, mas que não fez diligências […] para encontrar trabalho”. C.S. esclarece (mal): “Para todos os efeitos, menos o estatístico, um ‘inactivo desencorajado’ é alguém que quer trabalhar e não tem trabalho, é um desempregado”. A contradição é descarnada: segundo a definição do INE, um tal sujeito pode, “ou não”, estar disponível para trabalhar, e pode, inclusive, “não fazer diligências para encontrar trabalho”. Nada, portanto, impede este pseudodesempregado de passar as tardes a tomar chá com a Kiki Espírito Santo.  

Porém, C.S. insiste: “Entre 2011 e 2014, o número de pessoas desencorajadas, indisponíveis ou que gostavam de trabalhar mais horas aumentou substancialmente”. Mas se um “desencorajado” pode a) não fazer diligências para se empregar; b) estar indisponível para trabalhar, com que fundamento deveriam estes indivíduos ser contabilizados nas estatísticas do desemprego propriamente dito? Como se saberá o que motiva a “indisponibilidade” e a recusa de “diligências” para se empregarem? Será depressão, astenia, desgosto de amor, puro desinteresse, desnecessidade ou simples preguiça? Para C.S., a omissão de números a respeito destes casos, que ainda incluem a categoria não menos opaca dos “desempregados ocupados”, configura perversas “distorções estatísticas” premeditadas para branquear uma parte substancialíssima do desemprego de modo a beneficiar o Governo… Infelizmente, as “pessoas menos conhecedoras” desta transcendente matéria, como eu ou J.M.T., ignoram estas subtilezas. De facto, para mim, relapsa e contumaz, o que não vem nas estatísticas não é o “desemprego oculto” com que o INE pretenderia minorar a crise. É, isso sim, o “falso desemprego”, ou o desemprego impossível de comprovar como tal, que C.S., no afã de agigantar a crise, insiste em tratar como efectivo desemprego tout court.  

C.S. acusa J.M.T., como mero jornalista desprovido da solene autoridade conferida por um doutoramento, de ter tido a “pretensão ignorante de julgar o que é, e não é, ciência.” Para C.S., esta distinção é trigo limpo. O que não deixa de ser espantoso, porque há já algumas décadas que a comunidade científica e académica vive envolvida numa discussão encarniçada, e inconclusiva, acerca, precisamente, de determinar o que é científico ou deixa de ser. Isto não levanta dúvidas de maior para as chamadas “ciências duras ou exactas”, cujo método experimental sustenta explicações nomológicas que permitem a previsibilidade. Nada disto acontece com as ciências sociais (e menos ainda com as humanas), cuja “cientificidade” é por inerência e definição sempre disputável (Isaiah Berlin, Against the Current, 1989). Nunca produziram uma teoria geral da sociedade e da mudança social validada pela realidade observável; nos anos 80, já François Furet se queixava de que as “ciências sociais” se tinham revelado incapazes de “elucidar o mundo” (L’Atelier de l’Histoire, 1982). 

A fatal indefinição do estatuto epistemológico das ciências sociais permitiu e incentivou a transformação da Universidade num local de catequização ideológica, de que primeira vítima foi o que classicamente se chamava uma “educação liberal” (Léo Strauss, Liberalism, Ancient & Modern, 1968). Não só: permitiu a livre propagação de todos os desconchavos, com a consequente desfiguração de um curriculum universitário sério e consistente. Hoje em dia, quando se fala apologeticamente de “ciência cidadã” (???); quando se multiplicaram os mandarins académicos que entronizaram o radicalismo, fomentaram a politização do ensino superior e esfacelaram os vestígios de um cânone académico clássico que limitava a arbitrariedade, definia critérios de pertinência e imparcialidade e demarcava excessos de subjectivismo; quando os “estudos culturais”, a “teoria queer”, o “afrocentrismo”, os “estudos de género” e outras extravagâncias sem estatuto disciplinar definido transformaram a Universidade num espaço de militância, subversão e destruição do ethos académico que comandava o ideal da objectividade, da imparcialidade, do rigor intelectual e do saber desinteressado, a própria noção de “ciência” (quanto mais de “verdade”!) acabou ridicularizada, em prol do relativismo cultural, da diversidade identitária e do politicamente correcto. Em 1987, já Allan Bloom escrevia que “as universidades se tinham tornado no campo de batalha de uma luta entre a democracia liberal, por um lado, e um radical — poderia dizer-se totalitário — igualitarismo” (The Closing of the American Mind). Mais recentemente, em Tenured Radicals (1998), Roger Kimball conclui que “a educação superior foi transformada numa espécie de doutrinação ideológica”.

Para que C.S. adquira uma vaga noção da complexidade do problema epistemológico que levantou, deixo-o com a citação de uma feminista americana especialista em nada menos do que Crítica do Direito (C. MacKinnon, 1997): “feminism’s critique […] is a critique of science as a specifically male approach to knowledge. […] we reject male criteria for verification.” O que será e não será científico? Talvez a sapiência doutorada de C.S. lhe permita responder. Tanto mais que, em matéria de emprego, já sabe que conceitos são ou não apropriados para fabricar os resultados que politicamente lhe convêm e que ele acha, portanto, “científicos”.

13 comentários leave one →
  1. 20 Abril, 2015 10:06

    Nada sei de sociologia, nada sei de estatística… mas sei um pouco da “vida”. Que sentido faz considerar no numero de desempregados “crianças” de 15 anos? Com essa idade a maior parte ainda estuda ..e se não estuda também não tem nem idade nem vontade para trabalhar!

    Gostar

  2. insider permalink
    20 Abril, 2015 10:25

    o ppc também não gostou dos números do desemprego fornecidos pelo ine…
    um inactivo desencorajado é alguém que deixou de procurar emprego – ou que se recusa a andar pelas ruas de papelinho na mão a pedir carimbos – porque sabe que não o vai encontrar…

    Gostar

  3. AnaKat permalink
    20 Abril, 2015 10:37

    Bastava citar um Tavares qualquer bem como um Máventura SS para se perceber como um jornal manipula os acontecimentos.
    Só próprio de jornaleiros e que estes me desculpem a comparação

    Gostar

  4. Juromenha permalink
    20 Abril, 2015 10:39

    O esplendor da Vigarice “diplomada”, encorajada, oficializada…e largamente subsidiada…
    O parasitismo pseudo-intelectual como forma de (boa) vida.

    Gostar

  5. licas permalink
    20 Abril, 2015 11:46

    Mas que coisa bela, mas que tarantela.

    Gostar

  6. Joaquim Amado Lopes permalink
    20 Abril, 2015 14:03

    O problema da Fátima Bonifácio é ter uma visão “conservadora” do que é ou não ciência, em oposição à visão “progressista” de Carvalho da Silva. Tenho que admitir que a visão de Carvalho da Silva é mais objectiva.

    Carvalho da Silva alinha por uma verdade absoluta e inquestionável: a culpa de tudo o que está mal é do neoultraliberalismo desenfreado/selvagem, cujo fim último é a opressão das classes proletárias.
    Com isto estabelecido, quaisquer números que o desmintam estão necessariamente errados e devem ser alterados. Nem que para isso seja necessário dizer que adolescentes dos 15 a 18 anos, segundo a Lei ainda a frequentar o ensino obrigatório, são “desempregados”.
    Este “método científico” é simples (dispensa pesquisa ou confirmação) e evita confusões (só existe uma “verdade” portanto não há lugar para “interpretações divisionistas”).

    Gostar

  7. 20 Abril, 2015 15:44

    Vexa e o JMT têm textos soberbos de fina ironia. E mais que isso não vivem acobardados nem pactuam com a mediocridade piedosa e chamam os boys pelo nome.

    Gostar

  8. Alexandre Carvalho da Silveira permalink
    20 Abril, 2015 17:03

    Será que CS também contabilizou os milhares e milhares de desempregados que ele provocou com a sua acção de funcionário do PCP travestido de sindicalista? Quantas empresas fecharam pela sua acção criminosa?

    Gostar

  9. Euro2cent permalink
    20 Abril, 2015 20:05

    Sem querer encorajar sociólogos, o homem pode ter razão.

    Não é que não seja possível tirar os números:
    – População maior de 18 e não reformada
    – Não inscrita em cursos
    – Não empregada a descontar TSU
    – Não dados como inválidos por razoes de saude

    Pronto, aí estão os desempregados (e mesmo aí estão alguns clandestinos, mas adiante).

    Tudo números que o Estado tem. Gosta mais é de fazer contas pelos inscritos no IEFP.

    “Naquele engano de alma, ledo e cego”, blah, blah, wiskas, eleições.

    Gostar

    • André permalink
      20 Abril, 2015 20:54

      “Não inscrita em cursos”? E se forem cursos compulsivos do IEFP, não remunerados ou quase?

      Gostar

    • Joaquim Amado Lopes permalink
      20 Abril, 2015 23:32

      Os que vivem de rendimentos são desempregados?
      E os sindicalistas da Função Pública e os sociólogos da treta que ocupam espaço e usam recursos de Universidades para fazerem política partidária são empregados?

      Gostar

  10. lucklucky permalink
    20 Abril, 2015 22:07

    O Carvalho da Silva esqueceu-se dos desencorajados de trabalhar por causa dos Carvalhos da Silva deste país.

    Pois trabalhar neste país significa pagar ao Carvalho da Silva.

    Quem se recusar a pagar ao Carvalho da Silva sofre violência do Estado. Pois o Carvalho da Silva só tem ordenado obrigando se necessário com violência quem não concorda com ele a pagar.

    Gostar

Indigne-se aqui.