Uma peça jornalística verdadeira mesmo
Porque hoje é o meu aniversário, peço especial abébia pela eventual comiseração causada quer pelo teor, quer pela extensão do texto que de seguinda reproduzo. Muito obrigado.
Há uns anos, quando um grupo de jovens decidiu acampar no Rossio para acabar com a austeridade (e plantar rabanetes), decidi seguir o evento com grande atenção por o ter considerado tão interessante quanto a multiplicação de partidos com foices e martelos em 1975. Sabia que seria algo que duraria três ou quatro dias, independentemente dos resistentes (ou, mais propriamente, inconscientes) que ficariam perante a extinção da chama revolucionária. Eis o relato.
Dia 1 – Manhã
O ambiente é de festa. Montam-se tendas, partilham-se croissants, tofu e os primeiros charros. Toda a gente emana uma alegria contagiante, de quem sabe que vai mudar a história do país e, inclusivamente, do mundo com a resistência passiva de Gandhi nos seus tapetes de ioga da Primark. Os discursos sucedem-se, anarquicos: todas as vozes são necessárias e não há ninguém cuja contribuição seja dispensável. Alguém propõe homeschooling, o cluster estratégico da marijuana e o amor livre em festivais pop como forma de combate à austeridade. Outro, calçando umas sapatilhas Nike, sugere que festivais pop têm que ser gratuitos para os jovens e financiados compulsivamente pelo grande capital; terminou a intervenção com uma foto da assembleia com o seu iPhone. O discurso seguinte é de um pacifista que defende que a paz que todos desejam só pode ser obtida prendendo os fascistas. Toda a gente dá as mãos.
Dia 1 – Tarde
Dada a dificuldade em atribuir uma ordem justa para as intervenções políticas, é criada uma mesa para gerir as inscrições para discurso. Para que todos possam contribuir equitativamente, as intervenções são limitadas as dez minutos. Alguém usando blusão de couro comprado em 1983 na Roménia — e que não é bem couro mas uma napa muito resistente (apenas em teoria) — sugere efusivamente que os porcos capitalistas devem ser pendurados nos candeeiros da cidade. A intervenção é interrompida com o alegre convivência entre aplausos e apupos. O recém-eleito presidente da mesa recebe do auto-nomeado vogal o microfone para intervir, exigindo que os discursos sejam pautados pelo máximo respeito pelos valores humanistas de Marx, Lenine e, antes que dissesse Estaline, é interrompido pela assembleia que grita: “Trotsky”. Não é permitido ao jovem cinquentão de napa que termine a intervenção e são apagadas as fotos do seu inflamado discurso dos iPhones de registo oficial do comité organizador do evento espontâneo. Entretanto, chega uma delegação oficial de um partido com representação parlamentar e, antes que o mais proeminente membro dessa delegação suba ao palco para falar na vez de todos os previamente inscritos, tiram-se selfies. A RTP está lá, pronta para cumprir a sua função de assessoria ao partido.
Dia 2 – Manhã
Após a noite na calçada fria, os ânimos estão redobrados. Algumas activistas pedem para que os trabalhos comecem mais tarde de forma a poderem ir à farmácia comprar pílulas do dia seguinte para “quem precisar”. A mesa anuncia que foram criadas três comissões independentes: a comissão de planeamento de acção política, a comissão de intervenção no planeamento social e a comissão de gestão de intervenções livres de quem quiser intervir. São afixadas as regras de participação no debate, que cabem em apenas três cartolinas A3. Alguns activistas, impelidos pela necessidade de uma resposta mais musculada em relação à simples plantação de rabanetes, criam uma mesa independente, livre de censura, onde todas as pessoas que subscrevem os valores da revolução armada podem intervir. O acampamento divide-se em dois.
Dia 2 – Tarde
Após o almoço comunal de cada uma das nove facções criadas entre a última intervenção da mesa original, duas delas por criação espontânea de dois transeundes turistas oriundos da Finlândia num voo Ryanair, são criadas mais trinta e sete facções. A facção humanista entra em conflito com a facção bélica da facção pacifista da mesa rebelde criada após a primeira cisão com a mesa original (num desenho percebem-se melhor as relações). São atiradas pedras da calçada e é necessária a intervenção das forças dos que vestem de preto e não têm cabelo com chocas. Uma cabra da facção hindu é atingida e morre. O representante que ficou toda a noite do partido com representação parlamentar abandona o local, não por divergências e sim porque “já tinha trabalho parlamentar agendado para hoje”, confima a RTP.
Dia 3 – Manhã
A Liga Feminista de Intervenção Social criada durante a noite decide banir do recinto todos os resquicios do heteropatriarcado. Sete senhoras participam num acção teatral que consiste na defecação irónica na fotografia de Angela Merkel. A forte presença de metano no recinto afasta a Facção Lenhadora Que Também Canta Céline Dion. A Comissão Para A Igualdade De Género Trans e Hipertrans, criada da cisão entre a Comissão Para a Passarinha e a Comissão para o Dildo de Silicone passa uma moção que considera sexo vaginal uma aberração opressora cuja finalidade única é a reprodução para um planeta judaico-cristão, um acto que consiste em destruir a liberdade de crianças ao serem sujeitas a nascer sem consentimento prévio para um mundo podre pelo capitalismo.
Dia 3 – Tarde
A ameaça de chuva e dos cabeças rapadas da Facção Hitlariana pela Liberdade Universal faz com que um número significativo de activistas abandone o recinto. Não levam as tendas porque estas foram ocupadas pela Facção Okupa – Uma Casa Para Todos. Na mesa do canto (penso que é a Mesa Verdadeira Da Revolução Verdadeira Versão 8.2) é aprovada uma moção de desmobilização.
Dia 4 – Manhã
A polícia retira os últimos drogados do local sem que estes se apercebam.
E assim termina o relato da Direita portuguesa. Podia ser pior: podia ser igual à esquerda.
apague esta tentativa falhada sff 🙂
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Caro Vitor Cunha, antes de mais, os meus parabéns e que conte muitos orçamentos de estado (s/ baby face e costa claro) .
E como a um aniversariante não se recusa um pedido (realizável), vou ser brando até porque só detectei uma pequena gafe de escrita.
Quanto à reportagem em si, só algumas notas para provar que li o seu texto :
1M
– Nike de Vila do Conde (produto nacional, tudo ok).
– iPhone RPC como os restantes.
– Fascistas de esquerda ou de direita ?
1T
– Porcos pendurados nos candeeiros do Medina ! O PAN não ia permitir.
– Falta as partes mais interessantes : 1N , 2N … Novela s/ sexo não presta !
2M
– Já dizia César : “dividir para conquistar” , mas referia-se a dividir o inimigo !!
Quanto ao resto está perfeito, foi mesmo pena não ter instalado por lá umas câmaras tipo big brother. O National Geographic ia ter muito material de estudo sobre a vida sexual destas novas sub-espécies derivadas do homo-sapiens (ou talvez não).
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🙂
Muitos parabéns!
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Muitos e merecidos parabéns!
E para quando a prenda que todos nós merecemos de o ver regularmente no Observador? (sim, eu sei, peço sempre o mesmo)
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Parabéns e força na… tecla!
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Dou-lhe os parabéns e presenteio-o com a transcrição de uma frase comemorativa que tão bem retrata esse país, e que acaba de ser expelida através da RTP às 14h18, pela boca do recém-empossado ministro da defesa nacional, encarregado pelo máximo chefe das forças armadas de encetar os procedimentos para o mais rapidamente possível se atingir a verdade sobre o caso de Tancos, que está no cargo porque o antecessor era um empecilho. Aqui vai, tendo como front-end um sorriso feliz, em plena inauguração do arquivo histórico militar, em resposta a uma jornalista:
“Daqui por algumas décadas tudo isto vai estar disponível aqui no arquivo histórico militar”
E colmatou: “Nessa altura tudo se saberá”
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Muitos parabéns Vitor Cunha
Aqueles artistas que descreve nem são os piores.
Pior é a geração que lhes proporciona a miséria em que vivem.
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Grade reportagem : isenta, objectiva e até…”sensorial”.
Quanto ao autor e à data , “muitas repetições felizes”.
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Caro Vitor Cunha,
Receba os meus mais sinceros parabéns pelo seu aniversário.
Ademais, um excelente artigo como é habitual da sua têmpera.
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Muitos parabéns! Que a verve nunca lhe murche…
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Brilhante forma de nos presentear no seu aniversário.
Parabéns e que venham muitos mais.
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O vitor merece os parabéns e muitos anos de vida com saúde e alegria.
Fiquei até a pensar sobre aquela da austeridade.
“Afinal o que aconteceu aos rabanetes”?
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Parabéns pelo aniversário e, claro, pelo formidável e bem-humorado texto.
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Em Brexite é mais chic
HAPPY NEW YAER.
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Comecei agora a ler este blog que não conhecia e já sou fã. Continuem sem medo.
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Ó jorge aqui não há medo. Espera lá!
Já agora, porque haveria de haver medo?
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Parabéns … excelente.
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Temo que Vítor Cunha peque por defeito … 😉
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