A blasfémia

Agora, que já ninguém nos ouve, chegou a altura de explicar porque deixamos o blogue morrer. Não faz sentido nenhum blasfemar quando ficamos sozinhos na posição dos maluquinhos da feira. Blasfemar serve para abrir horizontes de pensamento, provocar curiosidade sobre o caminho menos percorrido, colocar dogmas em perspectiva e desafiar convenções. Nada disso tem interesse hoje em dia, desde que todos sucumbiram à comercialização do intelecto através da venda de popularidade em redes sociais dotadas de algoritmos inalcançáveis pela mente humana.

Alcançamos o ponto de inflexão do capitalismo. Agora há uns czares que controlam isto tudo — senhor Gates, senhor Bezos, senhor Musk, senhor Zuckerberg e outros menos fotografáveis — e uma miríade de mencheviques e bolcheviques a disputarem o acesso ao pão. Admito, ainda não é ao pão, para já é só a quem tem acesso a viajar, a fazer festas durante confinamentos, a impor confinamentos, a determinar comportamentos correctos… em suma, a regular o totalitarismo de vigilância em que já vivemos rumo à religião de estado. Lá chegaremos ao pão, mas admito não estar com pressa. Nunca nos terá passado pela cabeça, no etnocentrismo ocidental, que as armas nucleares americanas destroem tanto com as armas nucleares iranianas. Aos justos tudo é permitido, certo? Povo escolhido, etc, etc.

Não é possível blasfemar quando olhamos para os diferentes lados em conflito provocado pelos DDT e vemos que nenhum deles leva a lado algum. Tanto me faz viver num regime totalitário chinês ou canadiano. Tanto me faz idolatrar o Papa, o Dalai Lama ou a bandeira arco-íris. Tanto me faz que ensinem às crianças na escola que podemos mudar de sexo como Apartheid é bom se implementado por totalitarismo sionista. Tanto me faz que os meus filhos tenham menor mobilidade social que as gerações anteriores por subserviência ao eixo EUA-França-Alemanha ou terem nascido com cor de pele e sexo errados. Tanto me faz se o padre que viola criancinhas é casado ou usa cilício. Tanto me faz se a excisão genital feminina é feita por uma lâmina rombuda na tribo das palhotas ou num hospital de mármore por médicos humanistas.

Tanto me faz que os liberais sejam revanchistas, que os conservadores sejam só salazaristas, que os socialistas sejam oportunistas neo-colonialistas e que os comunistas sejam a burguesia intelectualizada por tempo livre. Tanto me faz se há aulas de religião e moral ou de cidadania. Tanto me faz se é proibido fumar ou se é proibido respirar sem máscara. Tanto me faz se o planeta aquece como se arrefece. Tanto me faz se a inteligência artificial domina ou se os humanos alinham na tese da sobrepopulação. Tanto me faz se vou ter carro em 2030 ou se vou viajar nos óculos de realidade aumentada sem ver a pobreza que o regime global impõe aos que começaram já desfavorecidos. Tanto me faz se vou comer alimentos processados com ou sem escaravelhos. Tanto me faz se Portugal existe ou não. Tanto me faz.

As ferramentas, as instituições, todo o universo contemplável está dentro da contradição humana. Foucault tinha razão. Tudo se resume a uma luta perpétua entre opressores e vítimas. Só falhou num ponto: o de não ter percebido que vítimas e opressores são sempre os mesmos: nós próprios sobre nós mesmos. E isto, sim, é a suprema blasfémia.