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O que eles queriam que se soubesse*

3 Abril, 2010

Instituiu-se em Portugal a religião de que na morte somos todos iguais. Esta fé é partilhada por autarcas dos mais diversos partidos. Os regulamentos municipais sobre cemitérios estão a tornar-se numa espécie de bíblias da igualdade: proíbe-se o que se define como ornamentações excessivas das campas, epitáfios que “exaltem ideias políticas ou religiosas que possam ferir a susceptibilidade publica – o que a ser levado à letra geraria os maiores imbróglios como se percebe pelo próprio epitáfio de Sara de Matos a celebrar a expulsão dos jesuítas –  e por fim mas não por último  manifestam um acendrado amor pela relva enquanto cobertura das campas, concebidas agora como como umas ante-câmaras da igualdade. (No caso de Lisboa pode dizer-se que ficámos em vida todos igualmente mais endividados porque a opção pela relva igualitária em detrimento do desigual e excessivo mármore no cemitério de Carnide gerou e gera despesas inesperadas de milhões de euros.)
Contudo ao passear-se pelos cemitérios  – e o dos Prazeres é um exemplo disso – deparamos com uma espécie de necessidade de afirmação da individualidade. Às vezes através de declarações que o tempo tornou pueris: “AQUI JAZ ANTONIO MONTEIRO DA SILVA MESTRE DE MUZICA REFORMADO” ou “AQUI JAZ CARLOS SILVA PROFESSOR DE CALLYGRAPHIA”.
Noutros casos o orgulho que muitos destes homens tiveram nas suas actividades profissionais leva a que as suas famílias entrem em detalhes de curriculum vitae: “AQUI JAZ O EX-COMMANDANTE DOS VAPORES DA EMPREZA INSOLANA DE NAVEGAÇÃO, FRANCISCO SODRE DE MEDEIROS E SUA COMPANHEIRA”, do qual ainda ficamos a saber que, tal como o irmão, era natural de Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel.
Às vezes  pressentem-se dramas, segredos e desencontros que nem  a vida nem a morte resolveram.  O que  pretenderia, por exemplo, a família de Miguel Ignacio de Oliveira ao inscrever na base do jazigo que aquele era filho legítimo, fora criado pelos avós de cuja casa saíra “NA TENRA IDADE DE ONZE ANOS E TRES MEZES, VIVEU SEMPRE INCÓGNITO DE SEUS PARENTES, VIVEU SEMPRE EM BOA ARMONIA COM SEUS SIMILHANTES, NÃO SÓ EM PORTUGAL, COMO NO BRAZIL COMO NAS AMÉRICAS HESPANHOLAS ONDE RESIDIO POR ALGUM TEMPO,  NUNCA ASSIGNOU PAPEL ALGUM PARA PERSEGUR SEU SIMILHANTE, CUMPRINDO SEMPRE COM A MAIOR PROMPTIDÃO TODOS OS SEUS PAGAMENTOS EM QUANTO NEGOCIOU”?
Até que os regulamentos não os calem de vez estes mortos individualistas são uma fonte de ensinamentos.

*PÚBLICO

6 comentários leave one →
  1. Euro2cent permalink
    3 Abril, 2010 12:54

    Algures pelas internetes, há um (ou mais) sítios em inglês com fotos e transcrições de lápides de campas antigas.

    Hoje em dia, até um simples blog gratuito dá para coleccionar as que for encontrando e quiser publicar.

    Só uma ideia. Obrigado por estas.

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  2. lucklucky permalink
    3 Abril, 2010 14:28

    Muito bem, e importante. Mais um sinal que a tirania se aproxima.

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  3. 3 Abril, 2010 16:56

    No meu blog colectivo de fotografias publiquei algumas das melhores (para mim)imagens dos Prazeres.
    Logo à entrada do lado direito está um pequeno túmulo (chamemos-lhes assim)do Capitão Henrique Galvão.
    Modesto.

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  4. 3 Abril, 2010 17:23

    Fui bucar mais uma.
    Está aqui.

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  5. aix permalink
    3 Abril, 2010 23:07

    No tratamento dos temas a HM não é grande coisa, mas na sua escolha é perita de 1ª.Que melhor ocasião do que a recordação da morte de Jesus para falar de mortos?

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  6. Claudia permalink
    4 Abril, 2010 16:48

    Uma tirania sem tamanho!

    visite o meu nanossamira.blogspot.com

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