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Depois de Kiev, a Crimeia. Como era inevitável

27 Fevereiro, 2014
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Depois da Praça Tahir, a Praça Maidan. A alma insurreccional que habita nos activistas de todos os matizes entusiasmou-se com essa nova meca da revolução popular e basista. A ponto de confundir o que é justo e até urgente – afastar Yanukovych – com o que é perigoso – como nomear os ministros em assembleia “de praça”. Isso está muito longe de ser democracia, apesar do entusiasmo do Público:

Não deverá haver muitos governos na história da democracia cuja aprovação esteja dependente dos apupos ou palmas de uma multidão. Mas esse é pelo menos o método que os manifestantes da Praça da Independência quiseram utilizar para a formação do seu executivo, que terá tarefas gigantes pela frente. A primeira foi já nesta quarta-feira, perante a Maidan.

Quando se segue por este caminho o resultado mais provável é o desastre ou, na hipótese mais benévola, a desilusão. É que, como recordava Simon Jenkins no insuspeito Guardian:

Romantics sometimes refer to the “wisdom of crowds”, and why “we are smarter than me”. They ignore the capacity of totalitarians to manipulate the masses to their will. They forget the hysteria and cruelty of which programmed crowds are capable. Even a spontaneous gathering is unmediated and unstable, inherently dangerous, as much a gift to demagogues as to aspiring democrats. Crowds rarely display judgment.

Mas não foi só a Praça Maidan – já celebrada, como não podia deixar de ser, pelo suspeito do costume, o omnipresente Bernard-Henri Lévy, para quem “Nous sommes tous des Ukrainiens” –, foi também o parlamento, que decidiu anular a lei que concede à língua russa o estatuto de língua regional, uma decisão insensata num país onde toda a população fala russo e onde a minoria russa é muito importante (a propósito: é indispensável ler, por estes dias, o excelente blogue do José Milhazes Da Rússia). Medidas como esta, e outras semelhantes, são sinais claros de que entre os revolucionários há muita gente que só deseja substituir um ditador corrupto virado para Moscovo por um autocrata porventura igualmente venal mas virado para Ocidente.

A alegria que sentimos sempre que cai um ditador não pode cegar-nos. A heroicidade de muitos dos manifestantes da Praça Maidan não nos pode fazer esquecer que a legitimidade da rua pode ser revolucionária mas, no dia seguinte a qualquer revolução, não se torna em legitimidade democrática. A denúncia dos muitos abusos e ameaças de Putin também não nos deve levar a ignorar que, para além da Rússia sentir que tem interesses fundamentais em jogo, que há fronteiras mal traçadas e que há pedaços do que é hoje a Ucrânia que nunca foram ucranianos nem são habitados maioritariamente por ucranianos. Como sucede com a Crimeia.

A Crimeia só é ucraniana porque Khrushchev crescera na Ucrânia, pelo que uniu a península conquistada pelas tropas de Catarina II à república onde fora chefe comunista, algo que no tempo da URSS era mais ou menos indiferente, como recorda aqui a sua bisneta. A solução encontrada há 20 anos para manter essa península agarrada à Ucrânia sempre me pareceu artificial, pelo que não me surpreende que numa região onde a maioria da população é russa e onde está estacionada a frota russa do Mar Negro já se fale em referendo separatista.

O problema, naquela região, é muito mais complicado do que a leitura simplista do politicamente correcto que se limita a acusar a Europa de ter agido tarde demais e com pouca determinação. Nem todos os “amigos da Europa” de Kiev são amigos nos quais possamos confiar.

19 comentários leave one →
  1. 27 Fevereiro, 2014 20:30

    Corrija s,f,f, o link do blog do Milhazes

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  2. JDGF permalink
    27 Fevereiro, 2014 21:53

    O problema ucraniano que emerge desta insurreição só agora começou. A Europa não tem consistência política, nem militar, para ‘segurar’ os demónios libertados ao longo destes últimos 2 meses na praça Maidan.
    E a NATO (que na verdade só existiu na Europa enquanto os EUA tiveram interesse nisso) não está para aí virada.
    Resta a Rússia que tem uma das suas mais importantes bases navais em Sebastopol e não vai abdicar desta fulcral posição estratégica. Trata-se, na verdade, de um problema no seu próprio ‘quintal’.
    A procissão ainda vai no adro.

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  3. 27 Fevereiro, 2014 22:26

    Não que eu pense (como poderia?!) que todos os “revolucionários” de Kiev são iguais. Posto isto… por que raio é que as hordas de neo-nazis que pululam entre esses “revolucionários” haveriam de estar minimamente interessadas em qualquer coisa que se pareça sequer com a legitimidade democrática? 🙂

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  4. Juromenha permalink
    28 Fevereiro, 2014 00:14

    Conviria olhar para um mapa e ler um manual de História sobre “aquelas partes” , aí a partir dos inícios do sec.XVIII ( aparece por lá um certo Pedro) .
    Depois devemos evitar cuidadosamente o bombardeamento propagandístico televisivo proporcionado pelas baratas tontas de Bruxelas.
    E , por fim, fazer figas e esperar que o eixo Berlim Moscovo funcione pragmática e realisticamente.
    É que “eles”, estando na mesma faixa etária, não necessitam de intérprete…

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  5. 28 Fevereiro, 2014 00:53

    O “suspeito do costume” é judeu e nunca reparei no jmf57 ter feito alguma crítica ao detalhe.

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  6. 28 Fevereiro, 2014 00:54

    Porque é sempre por esse detalhe que ele é omnipresente, claro.

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  7. JCA permalink
    28 Fevereiro, 2014 01:20

    .
    Ora e continuando um comentário há uns tempos atrás sobre o tema.
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    De rajada, a dimensão ultrapassa a Ucrânia que é uma peça do xadrez muito antigo. Já vem de muito longe e julgava-se hoje confinado aos alfarrábios de História, Sociologia, Economia, Finanças Antroplogia..
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    Mas a grande surpresa é no sec XXi ainda surgir emocionalmente este tão arrbatador tabuleiro e peça de xadrez. Ou não se progrediu nada apesar dos espetaculares avanços científicos da Humanidade a caminho do Universo ou então alguns lideres surgem parados no tempo especados a viver no Passado dum Mundo que já não existe.
    ,
    Analisando factualmente:
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    desde que os continentes começaram a interagir a Eurásia tem sido o centro do poder mundial desde pelo menos há uns quinhentos,
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    bem acima do ‘eterno bairrismo’ mortal germano-eslavo cujo ultimo afrontamento devastador foi a conhecida operação ‘Barbarrossa’ da II Guerra Mundial a pretexto propagandista da luta anticomunista pois por acaso estavam no poder os soviéticos comunistas.
    .
    Esta questão dos ‘Regionalismos bairristas’ cava nos tempos dos ditos ‘barbaros’ como lhes chamavam os Romanos, ‘barbaros’ nórdicos que invadiam mas não ocupavam, saqueavam as riquezas e fugiam para depois regressarem e sucessivamente até à queda final do mais durável Império do Ocidente e da Europa, o Romano, o dos povos Latinos hoje menosprezados como ‘os países do sul’
    .
    A Eurásia é todo o território desde o leste da Alemnaha e da Polónia através da Rússia e da China até ao Pacifico, inclui o Médio Oriente e praticamente todo o sub continente indiano com Paquistão.
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    Daí os conflitos para controlar as Republicas da Ásia Central que são a chave para controlar a Eurásia.
    .
    A Rússia e a China são os dois mais importantes Países – que parece quase mas ainda não super potencias – cujos interesses desafiam a Eurásia. Dos dois continua a ser dito que a Rússia é considerada o principal desafio. Ambos China e Rússia são fronteiras na Eurásia.
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    Um contexto mais focalizado descreve a Ucrânia, Azerbeijão, Irão e Kazaquistão como Republicas ‘menores’ da Eurásia que podem ser os ‘buffers’ ou contra poderes aos movimentos geopolíticos da Rússia e da China para controlarem o petróleo, gás e minerais das Republicas da Ásia Central: Turquemenistão, Tajiquistão e Kazaquistão etc.
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    Um dia alongaria este tema se esta ‘crise de cuba’ na Ucrânia, ora muito mais planetária nada tendo a ver com a dimensão caribenha da outra, não encontrar solução não nuclear ao contrário da outra
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    Ora convem ir explicando estas coisas aos Portugueses não vá esta coisa dar inesperadamente para o torto. Embora o lobo que tocava estridentemente os tambores da festa pareceu no dia de hoje estar ameter as as baquetas no bolso para saída de sendeiro.
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  8. 28 Fevereiro, 2014 09:47

    jmf anda a ficar aflito! Não sabe para onde se virar. Os bons ucranianos vão escolher o melhor rumo político.
    Não tenha medo, seja, se possível, democrata!

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  9. 28 Fevereiro, 2014 10:05

    A questão da Crimeia deve ser resolvida com respeito pelo direito internacional. O facto de haver uma maioria russa e uma base militar também Russa não dá a este país o direito de decidir unilateralmente.
    Para perceber isso basta pensar em casos que nos dizem directamente respeito. Por exemplo, a base Americana nas Lajes não lhes dá o direito de reclamar para si a respectiva ilha dos Açores. O facto da população de algumas zonas do Luxemburgo e da Amadora ser mairitariamente Portuguesa e Cabo Verdiana não dá a esses países o direito a reclamar para si os respectivos territórios.
    O direito à autonomia tem os seus limites …

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    • O SÁTIRO permalink
      28 Fevereiro, 2014 10:45

      podemos ainda acrescentar a VIOLAÇÃO GROSSEIRA DO DIREITO INTERNACIONAL PELA ÍNDIA (bem sei k o pacifismo de GANDHI não pode ser questionado….) que INVADIU E ANEXOU GOA, DAMÃO E DIU.
      é que o dto internacional (ver ONU) determina que as colónias têm direito à INDEPENDÊNCIA…

      foi isso que aconteceu pelo mundo inteiro (apesar de muitas vezes ser só formal)
      ora sendo colónias portuguesas, GOA……..NÃO DEVIAM SER ANEXADAS PELA ÍNDIA
      MAS SIM TORNAR-SE INDEPENDENTES
      vide TIMOR….
      mas claro, nisto não se fala…só no “ditador” Salazar….
      os invasores/violadores do dto internacional… até são elogiados

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    • Tácio Viriato permalink
      28 Fevereiro, 2014 15:51

      Por acaso a Crimeia só faz parte da Ucrânia – tipo brinde – desde 1954

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  10. O SÁTIRO permalink
    28 Fevereiro, 2014 10:50

    por falar em ditadores
    http://www.publico.pt/mundo/noticia/morreu-o-unico-comandnate-da-revolucao-cubana-no-exilio-1626483

    duas vezes se chama ditador ao fulgêncio
    mas o fidel e o camilo e o “che”
    muito mais ditadores e assassinos do k o batista
    são “amnistiados” e escondidos e censurados dos seus imensos crimes
    não só os mais de CINQUENTA MIL FUZILADOS N´EL PAREDÓN
    mas tb os milhares que preferiram arriscar a vida no meio dos tubarões do mar da florida
    do que suportar um dos regimes mais cruéis, assassinos e tiranos do séc XX…..

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  11. O SÁTIRO permalink
    28 Fevereiro, 2014 10:51

    vivam os HERÓIS DA DEMOCRACIA CUBANA:

    http://payolibre.com/index.php

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  12. tony permalink
    28 Fevereiro, 2014 15:00

    foi sempre através deste tipo de ações que as democracias apareceram e se desenvolveram demorem 500, 200 ou menos anos mas irão lá o pior é os interesses de outros países que poderão fazer descambar mas a historia está repleta de exemplos os EUA são um bom exemplo e a Ucrânia ainda é uma colonia de cáfilas russos. nós mandamos o Conde andeiro pela Janela também estávamos tomados pelos interesses

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  13. Tácio Viriato permalink
    28 Fevereiro, 2014 15:56

    O entusiasmo do jornal “Público” não é mais que um recado para os indígenas que tudo é possível

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  14. Fernando S permalink
    28 Fevereiro, 2014 17:53

    Eu até simpatizo com os sentimentos e as aspirações pro-ocidentais de muitos dos ucranianos que se congratularam com a queda do Presidente Viktor Ianukovich….
    Mas eu sei que de revoluções de rua e assaltos aos palacios do poder não vem normalmente nada de bom.
    Tudo aponta para que a Ucrania esteja no inicio de um longo periodo de instabilidade, de crise economica, inclusivé com sérios riscos de guerra civil e fragmentação do pais.
    A que se pode adicionar a inevitavel deterioração das relações internacionais, entre o Ocidente e a Russia de Putin.
    Nada disto é bom para os ucranianos e para o mundo.
    No fim de contas, o presidente deposto, por mais corrupto e autoritario que fosse, foi eleito regularmente (na altura os observadores ocidentais não encontraram razões suficientes para por em causa a validade dos resultados) e o regime existente, mesmo com os seus tiques autoritarios e neopoticos, não era propriamente uma ditadura politica ou um totalitarismo de tipo neo-soviético (mais perto desta situação esta, por exemplo, a vizinha Bielorussia) .
    Não nos esqueçamos que a Ucrania ja teve ha anos uma primeira revolução, a “revolução laranja”, por sinal mais popular e mais justificavel face a um poder instalado bem mais autoritario e ilegitimo. E que as enormes expectativas positivas então criadas se vieram depois a transformar numa grande desilusão. A posterior vitoria eleitoral de Ianukovich foi possivel precisamente em resultado do falhanço da “revolução laranja”.
    Do meu ponto de vista, os paises ocidentais deviam ter tido um posicionamento mais prudente e nunca deviam ter avalizado e aceite uma tomada do poder pela força por parte dum conjunto de insurretos que, para além de uma forte determinação, não representavam nem representam legitimamente a vontade do conjunto da população da Ucrania.
    Abriu-se a caixa de Pandora e os problemas são agora maiores do que eram antes !

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  15. JCA permalink
    1 Março, 2014 00:03

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    A questão da Ucrânia está tão longe e tão perto de nós. Uma analise mais lá local, nos Balcãs etc,
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    depois do desfile da corrupção infamante de Viktor Ianukovich a outra parte, Yulia Tymoshenko da ‘revolução laranja’ ora acomodada pela Alemanha, também não são anjos.
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    Internamente os ucranianos estão entalados por eles próprios. Quem conseguir vender bem a ‘luta contra a corrupção’ aparentemente ganhará o coração e a esperança dos ucranianos, porque é esse o chiste do comum dos mortais ucranianos. Talvez seja a bandeira que esvazie o muito grave conflito geopolitico em curso. Encurralar ursos não se recomenda ….. É uma situação extraordinariamente melindrosa, muito dificil embora simples e nada complexa ….
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    Yulia Tymoshenko: She’s No Angel
    http://www.thedailybeast.com/articles/2014/02/23/yulia-tymoshenko-she-s-no-angel.html
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    É obvio que as tropas russas estão a avançar pelo menos na Crimeia. Essa coisa duns gajos que andavam por lá armados até aos dentes e q a Comunicação Social diziam que ninguém sabe quem são …… não havia nexexidade …
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    No mesmo tema, registei o agradecimento inesperado em Londres de Merkal perante as duas Camaras “agradeço o PERDÃO DA DIVIDA da guerra que autorizou o desenvolvimento da Alemanha para ser o que é hoje”. As ilações deixo-as aos nossos politogos e comentadores. Pessoalmente acho o povo alemão muito simpático e humano.
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