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semipresidencialismo

12 Março, 2012

A parte mais inquietante do prefácio ao livro Roteiros VI, do Presidente da República é esta:

Durante o meu primeiro mandato recebi do Governo, para efeitos de promulgação, 1741 diplomas, dos quais 696, ou seja 40%, deram lugar a contactos entre a Presidência da República e o Governo, tendo em vista o esclarecimento do seu conteúdo. Daí resultaram alterações em 381, ou seja, em 22% do total dos diplomas submetidos a promulgação.

Em Portugal, o Governo tem amplo poder legislativo, como o demonstram os números citados. As leis aprovadas pelo Governo (Decretos-Lei) têm de ser promulgadas pelo Presidente. Confrontado com um destes diplomas, o Presidente tem três caminhos previstos na Constituição: promulgar, vetar ou requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade. O Presidente, porém, seguiu, num número muito considerável de diplomas, um quarto caminho: pedir ao Governo  que prestasse esclarecimentos ou que fizesse alterações, com a ameaça – explícita ou implícita – de veto.

Esta prática, sem previsão constitucional expressa é justificada pelo Presidente do seguinte modo:

Os contactos regulares com o Governo no sentido de obter esclarecimentos sobre os diplomas submetidos a promulgação e de introduzir-lhes aperfeiçoamentos, quer de caráter formal, quer de âmbito mais substancial, é uma prática que tem sido seguida por todos os Presidentes da República desde 1976.

Trata-se de uma prática que decorre do poder de veto que a Constituição concede ao Presidente da República, o qual, relativamente a diplomas do Governo, é absoluto, uma vez que é insuscetível de confirmação pelo executivo.

Mesmo admitindo que aquela prática decorre do poder de veto e que foi seguida por todos os anteriores presidentes, a mesma causa alguma perplexidade. O procedimento legislativo governamental é muito pouco transparente (quando comparado com o procedimento parlamentar). As mais das vezes, desconhece-se a autoria das propostas de Decreto-Lei, desconhece-se as diferentes versões pelas quais passou o texto antes da promulgação e desconhece-se ainda a causa ou a origem das alterações introduzidas, que apenas são conhecidas pelos membros do Governo. Quando o texto surge publicado em Diário da República, é contudo, lícito concluir que se trata de opções legislativas do Governo, opções pelas quais o Governo – e apenas o Governo – é responsável.

Ora, esta certeza é agora abalada pelas revelações do Presidente. Ficamos a saber que 22% dos Decretos-Lei aprovados pelos Governos de Sócrates não correspondem propriamente às opções do Governo, mas ao resultado destas opções corrigidas ou alteradas pelo Governo em função das observações do Presidente (presumivelmente sob ameaça de veto).

Como as opções originais do Governo não são públicas e como não são igualmente públicas as observações do Presidente (nem sequer é público quais os diplomas que foram alterados deste modo), ao olhar para um Decreto-Lei aprovado pelos Governos Sócrates ficará sempre a dúvida sobre se uma determinada norma corresponde à vontade daqueles Governos ou antes à vontade do Presidente. Não será, por isso, possível atribuir de forma segura a responsabilidade integral pelas normas (boas ou más) ao Governo, já que são desconhecidas a profundidade e a extensão das alterações impostas ao Governo pelo Presidente através deste método.

Mesmo que a prática presidencial tenha precedentes, mesmo que muitos constitucionalistas entendam que a mesma decorre do poder de veto, mesmo admitindo que as alterações por iniciativa presidencial foram todas no sentido de melhorar as normas e mesmo que esta prática tenha evitado uma permanente querela institucional (com dezenas ou centenas de vetos), como não há qualquer transparência no processo, as estatísticas agora reveladas pelo Presidente da República legitimam algumas conclusões incómodas: i) o Presidente participou de uma forma muito mais activa do que se imaginava no processo legislativo governamental; ii) algumas das críticas dirigidas a diplomas aprovados pelo Governo deveriam, eventualmente, ser imputadas ao Presidente (por resultarem de alterações por este propostas ou impostas); iii) O Presidente não é, afinal, uma rainha de Inglaterra com bombas nucleares (veto, dissolução do parlamento e demissão do governo), mas um interveniente directamente responsável ou responsabilizável por uma parcela muito relevante da governação.

26 comentários leave one →
  1. Monti's avatar
    Monti permalink
    12 Março, 2012 13:05

    Portugal Híbrido:
    Que a Constituição tenha parido este sistema semi ou híbrido em 1976 e seguintes;
    Que após a década das legislaturas iniciais e agora ainda, se insista;
    Que quase ninguém atente na disfunção permanente entre PM/Gov e PR;
    Que assim vá continuar;
    Comprova o óbvio: O Rei vai nú e os partidos (a viver do sistema) são os seus profetas.
    Se Portugal ganhou com a casta partidária direito a uma bancarrota,
    que ganhou com os ‘governos sombra’ dos PR em Belém?

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  2. Piscoiso's avatar
    12 Março, 2012 13:12

    O que está em causa são os timings.
    Se o PR vetar, a proposta de lei volta à AR, onde presumivelmente será de novo aprovada.
    O veto presidencial não passará de uma manobra dilatória.
    Quando o PR é do partido da maioria na AR, essa jogada não é necessária.

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  3. Carlos Loureiro's avatar
    12 Março, 2012 13:22

    “Se o PR vetar, a proposta de lei volta à AR, onde presumivelmente será de novo aprovada.”

    Isso só é verdade quando as leis vêm da Assembleia da República. Quando são leis do Governo (Decretos-Lei), não há forma de superar o veto. É por isso que o Presidente “dialogou” com o Governo, para não ter de vetar (sem possibilidade de nova aprovação e consequente promulgação obrigatória) ou de promulgar diplomas que entendia poderem ser “melhorados”.

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  4. Piscoiso's avatar
    12 Março, 2012 13:31

    Assumo a minha ignorância sobre leis.
    Mas não pode o Governo levar o Decreto-Lei, que o PR vetar, à AR para votação?

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  5. oraporra's avatar
    12 Março, 2012 13:42

    “opções pelas quais o Governo – e apenas o Governo – é responsável”.
    “Apenas?” Essa agora… Então e a promulgação não envolve qualquer tipo de responsabilidade política?
    Eis como uma teoria aparentemente lógica perde de imediato todo o sentido, porque assente em base falsa.

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  6. ora porra's avatar
    12 Março, 2012 13:43

    “opções pelas quais o Governo – e apenas o Governo – é responsável”.
    “Apenas?” Essa agora… Então e a promulgação não envolve qualquer tipo de responsabilidade política?
    Eis como uma teoria aparentemente lógica perde de imediato todo o sentido, porque assente em base falsa.

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  7. Carlos Loureiro's avatar
    12 Março, 2012 14:21

    “Então e a promulgação não envolve qualquer tipo de responsabilidade política?”

    Como o próprio Presidente salienta no texto, “a promulgação de um diploma não traduz a adesão do Presidente da República a todas as normas e soluções nele contidas”. O veto, ainda que constitua um poder discricionário, só será, em princípio, utilizado em casos de manifesta oposição do Presidente às soluções encontradas pelo Governo. Entre a total oposição (que justifica o veto) e a concordância há um espaço muito grande.
    Pelo contrário, a promulgação não significa a adesão, mas, quando muito, o entendimento de que as soluções não são totalmente inaceitáveis (ainda que houvesse outras melhores do ponto de vista do Presidente) e, como tal, são da responsabilidade do seu autor (o Governo).

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  8. Joaquim Amado Lopes's avatar
    Joaquim Amado Lopes permalink
    12 Março, 2012 14:26

    O Carlos Loureiro acha que o Presidente da República não deve poder vetar Decretos-Lei do Governo ou que o Presidente da República não deve dialogar com o Governo sobre os Decretos-Lei que este lhe envie para promulgação, limitando-se a aprová-los ou a vetá-los?
    .
    Pela minha parte, acho que, uma vez que o Governo tem o poder de legislar sob autorização da Assembleia da República e sem que os Decretos-Lei tenham que passar por esta, o Presidente deve poder vetá-los.
    E acho também que, tendo dúvidas que o levem a não querer promulgar um determinado Decreto-Lei, é preferível o Presidente da República falar com o Governo e este fazer os acertos necessários a o Decreto-Lei ser vetado liminarmente (tendo depois o Governo que propôr um novo Decreto-Lei que satisfaça ambas as partes) ou o Governo recusar-se a fazer um Decreto-Lei com que não concorde e devolver à Assembleia da República o poder de legislar sobre essa matéria em concreto.
    Só os politiqueiros e os comentadeiros ganham com uma má relação entre o Presidente da República e o Governo.
    .
    Se o Carlos quer saber qual foi a vontade do Governo, leia as propostas de Decretos-Lei que este assinou. Não era exactamente o que o Governo queria? Quase nunca é porque legislar é um exercício de equilibrio entre o que se quer e o que se pode. A menos que o Carlos queira que o legislador não responda perante ninguém. Se é o caso, só concorda consigo quem a cada momento tiver o poder de legislar e apenas enquanto mantiver esse poder.

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  9. Piscoiso's avatar
    12 Março, 2012 14:44

    No caso de o Governo e o PR serem do mesmo Partido…
    o Governo responde perante o Partido!

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  10. esmeralda's avatar
    esmeralda permalink
    12 Março, 2012 16:12

    Sem dúvida:Cavaco foi um óptimo aliado de Sócrates! E quis ver se ele se aguentava. Foi cúmplice na barbaridade de o manter no poder, com toda a falta de responsabilidade ou irresponsabilidade que isso acarretou para todos nós. Agora está a querer fazer exactamente o contrário: oposição ao Governo que levou com tudo em cima e que tem de dar rumo aos anteriores desvarios!

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  11. Carlos Loureiro's avatar
    12 Março, 2012 16:30

    “Se o Carlos quer saber qual foi a vontade do Governo, leia as propostas de Decretos-Lei que este assinou. Não era exactamente o que o Governo queria?”

    Caro Joaquim,

    O Governo tem poder legislativo próprio (sem precisar de autorização da AR) em muitas matérias.
    Como refiro no texto, há vários argumentos a favor do diálogo entre o PR e o Governo, de modo a evitar vetos e querelas constantes ou frequentes. Não é esse o ponto.
    O que destaco no texto é que esse diálogo não tem qualquer transparência. Ao contrário do que refere no seu último parágrafo, as “propostas de Decreto-Lei” não são públicas. O Governo limita-se a anunciar a aprovação do diploma x ou y nos comunicados das reuniões do Conselho de Ministros, sem divulgar o conteúdo integral. São muito raros os casos em que há um Projecto ou Ante-projecto conhecido publicamente. Mesmo quando os há, não é raro que a versão aprovada em Conselho de Ministros seja diferente (por vezes muito diferente) do texto do aprovado, mesmo antes das observações presidenciais. Estas circunstâncias tornam impossível saber, em concreto, que normas resultam da iniciativa (autónoma) do Governo das que resultaram das observações ou imposições do Governo. Considerando o número de diplomas que foram alterados por iniciativa do Presidente (381 em menos de 5 anos, cerca de 1,5 Decretos-Lei por semana).

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  12. pedro's avatar
    pedro permalink
    12 Março, 2012 16:43

    Claro que o presidente andou com o socrates ao colo. Quem se deita com cão com pulgas acorda com pulgas!Espero que, apesar disso , se o sr passos começar a imitar o sócrates , o presidente não se iniba de o mandar borda fora. Não aguentamos mais vigaristas e gangues no poder . Chega!

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  13. Monti's avatar
    Monti permalink
    12 Março, 2012 16:55

    No sentido do que disse de início:
    Que país, que sociedade e governo,
    carente de um Presidente fiscalizador?
    Prova de incapacidade congénita de funcionar na AR e no Governo?
    A precisar de uma espécie de paizinho em Belém?
    Quantos países podemos ver assim?

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  14. Costa Cabral's avatar
    Costa Cabral permalink
    12 Março, 2012 17:01

    Cavaco manda os portugueses irem ao «site».
    Tá lá tudo diz ele!
    E se ele fosse gozar com o Badaró?

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  15. O SÁTIRO's avatar
    12 Março, 2012 17:35

    Fez muito bem o PR em esclarecer esses aspectos.
    para calar definitivamente aqueles que o acusam(avam) de não fazer nada.
    é o símbolo da magistrautura de influência.
    e demonstra que cavaco sabia dos temas dos diplomas.
    coisa que não se imagina em sampaio….e muito menos no caixeiro viajante á custa do povo MSoares.

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  16. O SÁTIRO's avatar
    12 Março, 2012 17:36

    Além de terem enfiado a carapuça até aos tornozelos……
    os PSs não querem que se saiba A VERDADE HISTÓRICA…sobre a pré- bancarrota conduzida pelo governo sókas-xuxa-maçónico-gay………..
    http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=562797
    este não entende, coitado
    não tem Q.I para mais…….

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  17. O SÁTIRO's avatar
    12 Março, 2012 17:45

    Mesmo com a explicação do CL, a esmeralda não sabe absolutamente nada das competências constitucionais do governo e do PR.
    ó mulher (suponho) leia bem a constituição da república……e o post do CL.
    q se saiba, CL critica a falta de transparência……..naquele “diálogo”
    mas ensina mto bem a diferença de competências entre governo, AR e PR:

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  18. Colin Marques's avatar
    Colin Marques permalink
    12 Março, 2012 18:14

    O Presidente pretendeu governar o país através de Belém. Sócrates não lhe facilitou a aspiração. Daqui resulta o permanente mau estar entre Presidência e Governo. E agora esta estocada do Presidente no antigo Primeiro-ministro revela um indisfarçável desejo de vingança. Mas Cavaco tentou cumprir a sua promessa eleitoral de (notem) “cooperação estratégica”… Sócrates, por sua vez, sugeriu-lhe uma “cooperação institucional”, mais de acordo com a Constituição e com a sua vontade de mando. Cavaco nunca lhe perdoou. Afinal, soubemos agora que houve um pouco de ambas.

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  19. O SÁTIRO's avatar
    12 Março, 2012 18:22

    Colin Marques.
    vc é vesgo..
    vê tudo ao contrário
    veja lá quem fez as leis e os decretos.lei…
    quem fez os orçamentos…
    quem fez as PPPs……
    quem fez as negociatas do parque escolar
    etc…
    etc….
    etc….
    não foi o governo sókas-xuxa-maçónico-gay?

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  20. ora porra's avatar
    12 Março, 2012 18:32

    Ó CL, V.é mesmo patusco.
    Porventura acha que a sua “resposta” tem algo a ver com o que escrevi?
    Se acha, o caso é mais grave do que eu imaginava.
    Olhe, trate-se! Ou, então, procure quem lhe interprete o que lê, já que V. não é capaz disso.

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  21. Portela Menos 1's avatar
    Portela Menos 1 permalink
    12 Março, 2012 19:13

    a respeito de PPP lembro-me sempre de uma das primeiras vampiras Laranjas: a LUSOPONTE.

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  22. Costa Cabral's avatar
    Costa Cabral permalink
    12 Março, 2012 23:35

    Quem vem aqui defender o Cavaco, como é o caso do Sátiro, só pode ser um comuna ressabiado.
    Aquele homem é do tempo do gonçalvismo e da maria cachucha e foi reeleito com a menor percentagem de sempre e com uma abstenção avassaladora.
    De facto, os portugueses ainda vão ter mais 4 anos de tortura psicológica!

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  23. Joaquim Amado Lopes's avatar
    Joaquim Amado Lopes permalink
    13 Março, 2012 01:03

    Caro Carlos Loureiro,
    “O que destaco no texto é que esse diálogo (entre o PR e o Governo) não tem qualquer transparência.”
    Nem deve ter.
    Imagine que as conversas entre PR e Governo se tornavam públicas. Com a comunicação social que temos, a quantidade de imbecis com a sua própria agenda de interesses a fingirem de “comentadores” e “analistas” e os grupos de interesse (partidos, sindicatos, associações, …) a competirem por quem grita mais alto e diz o disparate mais inconcebível, o diálogo acabava logo e muito mal.
    .
    “Ao contrário do que refere no seu último parágrafo, as “propostas de Decreto-Lei” não são públicas.”
    Eu queria dizer “Decretos-Lei”. Os textos dos Decretos-Lei são tornados públicos e como é o Governo que os propõe, o que lá está é o que o Governo queria, mesmo que não seja tudo o que queria ou não exactamente da forma que queria.
    .
    Fui confirmar e tem razão. Não sei se serão muitas mas o Governo tem realmente o poder de legislar nas matérias não reservadas à Assembleia da República.

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  24. joão viegas's avatar
    joão viegas permalink
    13 Março, 2012 10:47

    Post muito interessante. Cabe no entanto referir que, tanto quanto me lembro, a competência relativa da AR alarga-se às bases de quase todos os dominios da actividade governativa, de modo que o problema parece circunscrever-se às matérias de indole organizacional e burocratica (ou pelo menos tacitamente burocratizadas com o consentimento dos principais partidos).

    Não deixa de ser uma reflexão muito interessante, até porque este aspecto da acção presidencial é praticamente ocultado quando ocorrem eleições.

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  25. aremandus's avatar
    aremandus permalink
    13 Março, 2012 10:55

    penso que a actividade legiferante do poder executivo estará inflacionada. de todo o modo a CRP é clara na divisão de poderes.
    Quanto ao PR deveremos caminhar de legfe ferenda no sentido do impeachment ou outro modo de exonerar um PR.Afinal estamos numa república,não se nasce e morre PR.

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