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Um caso de vida real

19 Outubro, 2014

Este artigo é inspirado no “Our transgender child”, publicado na Salon em Setembro de 2014.

Na Primavera de 2009 acolhemos um lindo menino, o Pedro, o nosso primeiro filho do sexo masculino. Ou assim achávamos, na altura. Em Fevereiro de 2010, o Pedro emitiu, depois das primeiras palavras soltas, a primeira expressão perfeitamente inteligível: “tartaruga ninja”.

Em Abril de 2011, quase a completar os dois anos de idade, Pedro disse-me, “mãe, quero ser uma tartaruga ninja”. Convém salientar que somos uma família que não acredita na diferença entre seres humanos e répteis, portanto, consideramos a discriminação como acção típica de grunhos pouco informados. Nesse Verão percebemos que o nosso querido filho, com dois aninhos, não era um menino e sim uma tartaruga ninja.

Não foi fácil, porém. E não foi por falta de tentativas para o incentivar a estereótipos humanos como a alimentação com talheres ou uso criterioso de papel higiénico. Talvez até por preconceitos que desconhecíamos possuir, teremos deixado sair uma ou outra crítica imponderada à ingestão de medusas em forma de goma ou à insistência de repouso no interior de uma carapaça com lençóis. Demos connosco várias vezes a comprar fatos de treino, um estereótipo cubano e masculino, em detrimento do transespécie shinobi shōzoku verdadeiramente adequado ao filho que temos.

No Natal de 2011, quando visitou os avós, o nosso ex-menino, já transformado em Bellini, a tartaruga ninja, causou alguma comoção aos idosos, habituados à consoada de bacalhau e nada preparados para um neto que, em dias de festa, só come pizza com pepperoni. O avô tentou falar com ele, mostrar-lhe como seria muito mais giro ser um mutante ou até um batráquio mas, após a frustração, ficou bem patente que ser uma tartaruga ninja não é uma opção, é o que o Pedro – agora Bellini – é.

Quando o meu marido Rodolfo teve que ir trabalhar, foi necessário encontrar um infantário para a nossa tartaruga ninja. Infantário. Que rico nome, com referência a infância, como se todas as espécies tivessem infâncias de duração semelhante. Os malvados dos católicos do colégio não se dignaram a simplificar a nossa vida e, principalmente, a do nosso cágado, discriminando abertamente que o colégio é apenas para humanos. Disse-lhe que há leis que nos protegem da discriminação mas a resposta foi curta e grossa: como a instituição é privada, as regras que se aplicam são as deles; aqui não entram répteis.

O Estado destruiu o nosso querido cágado. Não é culpa dele ser uma tartaruga ninja e não uma criança. Nós sabemos que ele é mesmo uma tartaruga ninja porque pertencemos à organização de apoio às tartarugas ninja na pré-puberdade – APTARTNINPREPUB – e porque nós, como pais, somos as pessoas mais capazes para diagnosticar a espécie do nosso filho. Nós e psicólogos que votem Livre. Mas o Estado não reconhece o direito das tartarugas ninja a serem tratadas como se fossem meninos apesar da designação formal de tartarugas ninja. Nem sequer há casas de banho adequadas para tartarugas ninja, por muito que esta – o Bellini – ainda tenha, por limitações da ciência, um inútil pénis.

Temos medo do futuro. Com o ensino obrigatório, o Estado quer obrigar uma tartaruga ninja a frequentar uma escola para crianças, provavelmente com miúdos e pais incapazes para compreenderem que o Bellini é mesmo assim, uma tartaruga ninja. Já imaginamos o gozo, a humilhação, o número de “os teus pais são malucos” e de “a culpa não é tua, é de quem os deixa tomar conta de crianças”. As crianças conseguem ser cruéis para tartarugas ninja.

Desafio qualquer um a afirmar que deixaria de amar o seu filho só porque, por incógnitas da natureza, acabou por nascer tartaruga ninja. Pois é. Então parem de discriminar as tartarugas ninja e comecem a providenciar todas as infraestruturas que elas precisam para serem felizes, a começar por uma pista de visgo em cada entrada e um tanque com água salgada na sala de aula.

Ludgero
(nome fictício, para não expor assim na praça pública a vida do nosso cágado inocente)

9 comentários leave one →
  1. Luis Marques permalink
    19 Outubro, 2014 20:14

    O azeite onde o vão fritar já ferve…

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  2. 19 Outubro, 2014 21:18

    Falácias… Falácias por todo lado…

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  3. 19 Outubro, 2014 21:32

    Cuidado, pode ser tomado como um plágio, e esse crime até já defenestrou um fulano qualquer do Ministério da Educação.
    É que o Kafka também encontrou um problema semelhante, só que o outro já não era menino e transformou-se num inseto horrível com um “dorso duro e inúmeras patas”. .
    Um despertar horrível, ainda pior do que o Dr. Portas quando viu que não tinham sido contempladas as suas ideias sobre o IRS.

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  4. 19 Outubro, 2014 23:12

    Normalmente os Napoleão Cleópatra tartarugas ninja e Anorécticos e tal mandam-se pró psi. Não há espelhos lá na casa do ninja? Que historieta mais forçada :).

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  5. 20 Outubro, 2014 13:43

    Quando li o seu post pensei: lá está ele. Depois fui ler o artigo da revista. Só a determinado momento percebemos que estamos a ler de uma criança de três anos e que até tem outro irmão, coisa que a mãe raramente refere. A criança ainda não tem oito anos. Aqueles pais pretendem começar um tratamento hormonal. Aqueles pais são perigosos!

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    • Euro2cent permalink
      20 Outubro, 2014 20:48

      > Depois fui ler o artigo da revista.

      Homem valente. Cliquei por engano no link irrelevante para a página principal da Salon, e aquilo parece um arraial de extra-terrestres.

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