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Contentores, pessoas e unanimismos*

6 Novembro, 2008

As cidades têm mercados e cemitérios. Aeroportos e estações. Algumas, como Lisboa, também têm portos. Isto pode parecer óbvio mas não é demais repeti-lo quando vemos as questões de ordenamento do território restringidas a uma espécie de capítulo duma revista de decoração e consensualmente instituído que para evitar polémicas a cidade deveria ser uma espécie de continuum de cafetarias, com empregados de aventais pretos, espaços ditos culturais com muitas valências e articulações multidisciplinares, quiçá multiculturais, e prédios, de preferência baixinhos.

Vem isto naturalmente a propósito da ampliação do cais de contentores de Alcântara. Contudo, antes de lá chegarmos, convém lembrar que Lisboa é uma cidade suja e degradada, onde o poder gasta o dinheiro dos contribuintes em obras de utilidade questionável e manutenção rapidamente esquecida. (Apenas para não sairmos do domínio dos cais e estações basta entrar-se na estação intermodal do Campo Grande, inaugurada com pompa e circunstância nos anos 90, para perceber a distância que vai entre a realidade virtual do anúncio da grande obra e a realidade menos mediática com que se confrontam os utilizadores dessas mesmas obras. A quem não puder ou não quiser sujeitar-se ao cheiro pestilento e aos equívocos gerados pelos preservativos e colchões espalhados pelos cantos daquele que ia ser o grande pólo dos transportes na capital aconselha-se que veja isto e muito mais no Lisboa SOS 

Seja portanto pela profusão dos monos recentemente construídos ou pelo balanço do muito que se tem destruído temos sido levados a defender que, na dúvida, não se faça. Assim soltam-se ais desesperados por causa da construção dum prédio no Largo do Rato, na mesma cidade que assiste impávida à degradação do Jardim Botânico uns passos mais à frente, do cinema Europa mais acima, ou ao roubo dos azulejos das fachadas oitocentistas. Nesta perspectiva da cidade enquanto mesinha redonda duma salinha de tias – arruinadas e desmazeladas, mas tias! – aquilo que não se vê não interessa. Por exemplo, é praticamente impossível suscitar a mínima atenção em quem quer que seja para o Plano de Drenagem da cidade, sendo certo que as lacunas, os erros e os muitos preconceitos existentes nesta matéria nos entram pela porta dentro cada vez que chove.

Ao contrário de muitas outras pessoas, profundamente conhecedoras do universo das cargas e descargas, não faço a menor ideia se Lisboa precisa da ampliação deste cais. Mas gostaria de saber. Por exemplo, ao ouvir o primeiro-ministro dizer que toda esta obra servirá para desbloquear o problema económico que afecta o Porto de Lisboa, e por arrasto, todo o país, vem-me imediatamente à lembrança o conto da leiteira que ia enriquecer vendendo leite e comprando ovos que por sua vez davam patinhos que por sua vez davam mais ovos e que acabou estatelada no chão mais o leite e as fantasias. “Todo o país por arrasto”? Declarações destas teriam arruinado o sossego de vários chefes de governo em Portugal mas agora não só são banais como já ninguém espera uma posição que não seja de absoluta subserviência e encadernação verde do projecto por parte daquele senhor que faz de conta que é ministro do Ambiente e do Ordenamento.

De igual modo, gostaria de ser esclarecida sobre se o melhor local para esse cais será Alcântara, como defende o actual governo e o actual presidente da CML, ou Setúbal e Sines como diz o Movimento Lisboa é das Pessoas. Mais Contentores Não e propõe o anterior presidente da CML, Carmona Rodrigues.

Aproveitando o balanço da polémica também podemos ser esclarecidos sobre a efectiva utilização dos edifícios e terrenos da Docapesca, na zona de Algés, e toda aquela traquitana que se acumula entre o cais da Matinha e Santa Apolónia; se nos vamos continuar a dar ao luxo e à loucura de mantermos longe da cidade a estação da Rocha do Conde de Óbidos e já agora também não desgostaria de ser mais informada sobre a actuação dos piquetes de trabalhadores perante aqueles que consideram que põem em causa os seus postos de trabalho e se se justifica que se prolongue por mais 27 anos a concessão do cais à Liscont/Mota Engil.

Não tenho grandes ilusões sobre a possibilidade ver todas estas minhas questões esclarecidas mas do que tenho absoluta certeza é que não fosse a CML actualmente da responsabilidade do PS já inúmeras vozes da cultura e da cidadania socialista tinham rumado para as margens do Tejo onde, sob o alto patrocínio das Tágides, leriam poemas alusivos à partida do Gama, às grilhetas do fascismo, às mordaças do PREC e claro acabavam a performance denunciando as ligações da Mota Engil à administração Bush, responsável directa pela subida galopante, não das águas do mar porque entretanto o apocalipse climático foi substituído pelo apocalipse económico, mas sim da altura dos contentores. Recordo que, em 2004, era então a CML liderada por uma coligação PSD-PP, se é que se pode falar de liderança em relação a essa equipa, a construção dumas simples capelas mortuárias em Alvalade suscitou uma reacção tal nessas estremecidas vozes cívicas que, dum momento para o outro, era mais ou menos adquirido que só se podia morrer para lá dos limites da capital e até a simples passagem dos carros funerários ao longo da avenida de Roma parecia capaz de comprometer os resultados dos rankings escolares das crianças alfacinhas.

Mas como estamos em 2008, no terceiro ano da era Sócrates, não é suposto que o povo tenha dúvidas sobre o superior esclarecimento dos desígnios governamentais. Isso era coisa dos tempos passados. Por ironia, José Sócrates pode agora estar a experimentar nesta contestação à NovAlcântara as consequências do PS ter alinhado com o que de mais demagógico existiu na oposição às obras do cavaquismo. Eu que até gosto de portos, que detesto cidades assépticas e que sobre a NovAlcântara só tenho a certeza que o nome é uma pepineira espero bem que sobre esta obra exista a discussão que não se conseguiu fazer sobre Foz Côa.

*PÚBLICO, 4 DE Novembro

20 comentários leave one →
  1. zedeportugal's avatar
    6 Novembro, 2008 10:04

    Excelente, excelente. Voltarei mais tarde para comentar condignamente – agora não tenho tempo. Ainda há uns parvos (entre os quais me incluo) que trabalham para alimentar tantos parasitas. 😦

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  2. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    6 Novembro, 2008 10:06

    Yes we can!
    Tneha a certeza que o seu objectivo é melhorar Lisboa e não mudar os calimeros que a governam e não se calem
    Yes you can!

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  3. Desconhecida's avatar
    6 Novembro, 2008 10:29

    Lisboa, é suja como em todo lado. Em Cascais, nas redondezas, Alcabedeche, Abuxarda, etç é a mesma sujidade a mesma porcaria.

    Mas a Rocha de Conde Obidos, era um porto de desembarque e de embarque, mas tambem de reparação de navios que dava emprego a milhares de pessoas.

    Tenho saudades desse tempo, das 17H e das O8h.

    Hoje, esta uns barcos encostados á muralha.

    Foi lá que aprendi a nadar, na Rocha onde Obidos.

    Vir, um rapazola do Porto, “defender” para qual não foi feito – lazer e não trabalho,ou seja, um porto de carga e decarga, e pequenas reparações.

    Esse rapazola o que defende para porto de Matosinhos? que mande os contentores fora?

    É um espertalhaço

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  4. Desconhecida's avatar
    Anónimo permalink
    6 Novembro, 2008 10:38

    Os contentores são bem bonitos.
    Se não gostam podem pedir que sejam pintados às bolinhas ou às florinhas. Muitas cores garridas e cheias de bonequinhos.

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  5. monárquico's avatar
    monárquico permalink
    6 Novembro, 2008 10:44

    não digo nada para dar espaço aos assessores para virem questionarem mais um brilhante texto da dona helena.volta Santana estás perdoado.Mas quem é o presidente da câmara?

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  6. Desconhecida's avatar
    6 Novembro, 2008 10:45

    A arbitragem escandalosa de Guimarães

    Carlos Xitra de seu nome

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  7. Piscoiso's avatar
    6 Novembro, 2008 11:14

    As cidades têm mercados e cemitérios.

    Não consegui ler mais do post. Fiquei aqui a matutar em qual será a relação entre os mercados e os cemitérios.
    É um facto que nos mercados se vendem cadáveres de peixes e animais de pasto.
    Nos cemitérios é que nunca vi vender nada.
    Nem ossadas.

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  8. goodfeeling's avatar
    goodfeeling permalink
    6 Novembro, 2008 11:15

    Ideia de arquitecto (que não sou, e pergunto sempre para o que é que servem), e que é agora usualmente aplicada em todo lado:

    contentores transparentes. assim o impacto visual é quase nulo.

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  9. Desconhecida's avatar
    6 Novembro, 2008 11:25

    Muito bem!
    Se os portugueses lessem um artigo destes por dia, um só que fosse, e não estaríamos tão estupidificados.
    Afinal ainda há, pelo menos, uma jornalista.

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  10. Piscoiso's avatar
    6 Novembro, 2008 11:36

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  11. RMR's avatar
    RMR permalink
    6 Novembro, 2008 12:15

    Mais um óptimo artigo da HM. Quem possa duvidar do que é dito no post, vá espreitar o SOS Lisboa. Tanta mijoquice com umas coisas – e outras é vê-las votadas ao desprezo e aos ratos!

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  12. Nuspirit's avatar
    Nuspirit permalink
    6 Novembro, 2008 12:18

    “Ao contrário de muitas outras pessoas, profundamente conhecedoras do universo das cargas e descargas, não faço a menor ideia se Lisboa precisa da ampliação deste cais. Mas gostaria de saber.”

    O transporte marítimo é cerca de vinte vezes mais barato do que o rodoviário, e dez vezes mais económico do que o ferroviário. Ambientalmente, é o modo de transporte menos agressivo, emitindo menos de metade das emissões de CO2 que qualquer um dos referidos modos de transporte, por ton x km transportada.
    Ou seja é fundamental que o transporte marítimo de bens de consumo se encontre o mais próximo possível das grandes cidades e das indústrias exportadoras, permitindo que as mercadorias sejam transaccionadas a preços mais competitivos e acessíveis e contribuindo para a melhoria ambiental das cidades.

    É por isso que todas as grandes cidades ribeirinhas têm o seu porto.

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  13. Nuspirit's avatar
    Nuspirit permalink
    6 Novembro, 2008 12:23

    Não admira, por isso, que o tráfego marítimo contentorizado tenha vindo a crescer exponencialmente. O terminal de Alcântara – o único com condições de receber o crescente tráfego deep sea – já não tem hoje capacidade para dar vazão ás encomendas. Perde todos os dias para a concorrência, nomeadamente Valência e Barcelona. O que está agora em causa é uma ampliação do aumento da capacidade de parqueamento no terminal, por via do reordenamento do espaço já envolvido na actual actividade portuária. E aproveita-se esta oportunidade para gerar uma mais valia urbanística, traduzida na eliminação dos armazéns devolutos do cais de Alcântara, cuja altura excede a cota máxima permitida no terminal para o empilhamento de contentores.

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  14. Desconhecida's avatar
    honni soit qui mal y pense permalink
    6 Novembro, 2008 12:24

    é . nunca compreendi quando os reporteres precisam de fazer entrevista ao povão porque vão para esta estação .

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  15. Desconhecida's avatar
    honni soit qui mal y pense permalink
    6 Novembro, 2008 12:27

    aqui precisa-se de trabalho … a sério … não empregos no Tôrismo … esplanadas e merdas de terceiro mundo de papo para o ar

    o que chateia é porque é sem concurso , á malta do coelho e merdas do genero … e tb outsourcizava os estivadores … isso é que era … má educação não se admite naqueles termos

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  16. goodfeeling's avatar
    goodfeeling permalink
    6 Novembro, 2008 12:50

    Concordo plenamente com a helena matos.Alias os contentores não deveriam existir somente em alcantara, mas estenterem-se pela frente ribeirinha toda.Poupava-se a visão aos turistas das tristezas que o S.O.S.LISBOA denuncia.

    “As cidades têm mercados e cemitérios. Aeroportos e estações. Algumas, como Lisboa, também têm portos.” Certamente, mas não em cima uns dos outros e a atropelarem-se uns aos outros. Ou o porto de contentores dos outras cidades estão situados em zonas de lazer?
    Diria mais ainda, totas as cidades têm habitantes, trabalhadores e visitantes.acho este será de todos o facto mais importante

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  17. fado alexandrino's avatar
    6 Novembro, 2008 15:01

    Já tinha lido no Público e sobre este assunto tenho muitas dúvidas e portanto nãp devo dar opinião nenhuma.
    Agora sobre a estação de Entrecampos, e não Campo Grande como é mencionada, posso dar uma opinião.
    Qualquer pessoa que lá chegue pela primeira vez, perde-se.
    Foi cuidadosamente preparada para incomodar todos os que por lá passam diáriamente.
    Na chegada dos combóios em hora de ponta é ver a luta para conseguir um lugar nas escadinhas que levam à rua.
    Muitos parabéns aos artistas que a fizeram.
    Pode vê-la aqui
    Clique na imagem.

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  18. zedeportugal's avatar
    6 Novembro, 2008 19:55

    O aspecto mais dramático e inaceitável destas opções de socretino brilhantismo pseudo-estratégico, e que reproduzem modelos de “desenvolvimento” já experimentados por outros e já postos de parte por causa dos problemas que causaram. Estes tipos estão a cometer exactamente os mesmos erros que já foram cometidos no estuário do rio Severn há 50 anos atrás, e não descansam enquanto Lisboa não se assemelhar a Cardiff ou Bristol dos anos 50/60 do século passado.

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  19. zedeportugal's avatar
    6 Novembro, 2008 20:03

    12. Ou seja é fundamental que o transporte marítimo de bens de consumo se encontre o mais próximo possível das grandes cidades e das indústrias exportadoras, permitindo que as mercadorias sejam transaccionadas a preços mais competitivos e acessíveis e contribuindo para a melhoria ambiental das cidades.

    Esta afirmação é, obviamente, incorrecta. O senhor que escreveu isto deveria actualizar os seus conhecimentos em termos de Economia, de Ecologia e de de desenvolvimento sustentado. Até para copiar dos outros é preciso ter alguma inteligência de modo a não cometer os mesmos erros que os outros já descobriram ter cometido.

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  20. zedeportugal's avatar
    6 Novembro, 2008 20:06

    Correcção: em 18. onde se lê “e que reproduzem modelos”, deve ler-se “é que reproduzem modelos”.

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