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Balança comercial: défices e dívidas

12 Agosto, 2018

adamsmith-BalanceOfTrade

A meio das minhas férias o meu amigo Alexandre Mota convocou-me para uma discussão no Facebook a propósito de questões ligadas ao comércio internacional. Prometi-lhe na altura uma resposta na minha “rentrée”, mas penitenciando-me desde já pelo atraso, só este fim-de-semana tive disponibilidade para escrevinhar algo um pouco mais sistematizado e que aproveito para partilhar com os leitores do Blasfémias.

A questão de fundo, aliás suponho que partilhada pela generalidade dos interessados e mesmo especialistas, é a de que a manutenção de défices da balança comercial por muito tempo é vista como não sendo sustentável e implicando, mais tarde ou mais cedo, que o pagamento da dívida externa que gera tenha consequências nefastas se não para a actual, pelo menos para as gerações futuras. Consideram que um permanente estado deficitário das nossas transacções comerciais com o exterior poderá resultar numa desconfiança dos investidores acerca da solvência da nossa economia e, em resultado disso, gerar numa espiral de fuga de capitais com efeitos prejudiciais diversos.

Procurarei demonstrar que estes receios são largamente infundados e baseados em diversas falácias e análises incompletas sobre como funciona a economia real para além das convenções de registo contabilístico. Argumentarei que o défice comercial não implica necessariamente criação de dívida e que a componente em que tal assim aconteça, só é problemática se for assumida pelo Estado e não pelos agentes privados. Defenderei ainda que políticas públicas tendentes à redução do défice comercial são contraproducentes.

 

Gostaria desde já de convidar quem lê este post a não se deixar cair na armadilha de linguagem que é o termo “défice”. É bem justa a conotação negativa da palavra quando aplicada às contas do Estado porque implica a criação de encargos futuros para os contribuintes. As dívidas têm de ser pagas e não existe dinheiro público. Todo o financiamento do Estado provém de rendimentos e riqueza retirados aos contribuintes.

(nota: escrevo “estado” com “e” maiúsculo, apenas porque visualmente torna a leitura mais fácil e não por uma minha deferência particularmente respeitosa pela instituição…)

Mas se nos abstrairmos da nomenclatura, em comércio internacional o que se convenciona chamar de “défice” mais não é do que a diferença entre o valor em euros dos bens e serviços que entram no país e o valor dos bens e serviços que saem do país. Sendo, neste caso, o valor das importações maior do que o das exportações.

Na verdade, é tudo isto que desejamos: receber e usufruir do máximo número de coisas que nos proporcionam bem-estar, pela mínima contrapartida possível. Deste ponto de vista o diferencial entre os dois valores torna-se num superavit de coisas reais que temos à nossa disposição. Recebemos mais bens e serviços do que aqueles que enviamos para o exterior. Chamando-lhe “superavit em espécie” logo o significado psicológico da palavra se torna bem mais simpático e agradável. Espero que este aparte vos predisponha a ler o que a seguir tenho para vos dizer.

 

Os indivíduos são os agentes na economia e por isso os dados estatísticos de comércio são apenas um reflexo das suas decisões e opções de produção, consumo, poupança e investimento. No caso em apreço registam-se as trocas entre agentes separados por uma fronteira política, localizados em diferentes países. O saldo da balança comercial é assim resultado do agregado de relações comerciais voluntárias e mutuamente benéficas entre agentes individuais que consideram que para melhorar a sua condição económica é do seu interesse importar ou exportar nas quantidades e valores que entendam e acordem.

Mas as dinâmicas do comércio internacional entendem-se apenas de forma completa se analisarmos em simultâneo todas as componentes da, assim chamada, balança de pagamentos, nomeadamente as balança corrente e balança financeira.

Ajudará ainda termos presente a definição básica de cálculo da actividade económica num determinado período: PIB = C + G + I + (Exp – Imp). Daqui retiramos que o saldo da balança comercial é função do nível de poupança e investimento do país: Poupança – Investimento = (Exp – Imp).

A teoria económica diz-nos que os défices da balança comercial resultam primeiramente de factores macroeconómicos. Tendo em conta a equação acima, se o nível de poupança nacional baixar, o saldo entre exportações e importações “deteriorar-se-á”. O mesmo acontecerá se o investimento aumentar.

O país terá um défice da balança comercial sempre que o valor do investimento seja superior ao da poupança nacional. Daí que o capital necessário a esse nível de investimento tenha de vir do estrangeiro, “corrigindo” o “desequilíbrio”.

O equivalente será dizer que a poupança nacional total não chega para financiar as oportunidades de investimento no país. O capital que Portugal consegue atrair por exemplo através da venda de activos, IDE ou participação no capital das nossas empresas permite-nos comprar mais ao estrangeiro do que aquilo que vendemos ao exterior.

O capital estrangeiro torna mais fácil que as empresas portuguesas invistam em I&D melhorando a produtividade dos seus trabalhadores, expandam a sua capacidade produtiva ou, por via subida do seu valor de mercado, as poupanças de milhares de aforradores bolsistas tenham um maior retorno.

Enquanto formos receptores líquidos de capitais estrangeiros, manteremos défices da balança corrente. Este influxo de capitais acontece não porque os investidores estrangeiros não tenham alternativas de aplicação dos fundos, mas porque comparativamente o nosso país é atractivo. Em determinadas classes de activos, mesmo considerando um perfil de risco mais elevado, Portugal apresenta rentabilidades mais interessantes do que noutras geografias.

Um défice comercial pode ser também explicado pela simples circunstância de haver um diferencial entre aquilo que produzimos anualmente e o que gastamos no mesmo período em consumo privado, consumo público e investimento. Essa diferença será colmatada através de um valor mais elevado de importações do que de exportações.

 

É importante desmistificar duas ideias que normalmente andam associadas aos alertas sobre a insustentabilidade dos nossos défices comerciais: a venda de empresas ou imobiliário a estrangeiros não constitui nenhuma dívida para o vendedor, nem equivale a dizer que se permite um maior consumo através da hipoteca de rendimentos futuros que de outra forma esses activos nos garantiriam.

Os investidores estrangeiros passam a ter direitos sobre rendimento de produção futura para a qual o seu próprio capital investido contribuirá para maximizar. Não estamos pois a perder as joias da coroa, mas sim a maximizar o valor e a rentabilidade dos nossos activos.

O défice comercial apenas se converte em dívida externa se e quando os estrangeiros nos emprestam dinheiro. Além de empréstimos bancários, tal acontece por exemplo com a compra de obrigações corporativas ou de títulos de dívida pública.

Evidentemente, os agentes privados podem abusar do crédito ao consumo ou não obter os resultados esperados dos investimentos que realizam alavancados em dívida. Haverá nesses casos riscos de incumprimento. Mas os impactos negativos da sua deficiente alocação de recursos ou da excessiva despesa no cumprimento dos seus compromissos financeiros responsabilizam directamente apenas esses intervenientes, os empresários e trabalhadores dessas empresas. Os “default” são localizados e não afectam a economia de forma generalizada.

Não significa isto que o défice da balança comercial seja completamente inócuo. Embora a questão da “sustentabilidade” não se coloque nas transacções entre particulares ou empresas actuando em mercado competitivo, problemas existem que são criados pelo Estado através das suas políticas e despesas.

Nesses casos sim, pelo capital que é emprestado ao Estado respondem todos os actuais e futuros contribuintes. Um incumprimento dos compromissos creditícios terá impacto generalizado e global na economia.

Pelo facto de ser aplicada em investimentos não reprodutivos, despesas dificilmente justificadas ou na duvidosa redistribuição de recursos (em qualquer dos casos sempre de forma excessiva e crescente) é apenas sobre esta a componente pública da dívida externa que se coloca a questão da sustentabilidade. Infelizmente o valor desta dívida pública externa não é despiciendo.

No entanto, para a economia no seu conjunto e a generalidade dos indivíduos, o impacto de uma falha de pagamento é idêntico, independentemente da nacionalidade e origem dos capitais que alimentam o monstro estatal.

O problema não está nos défices da balança comercial em si mesmos, mas sim nos défices orçamentais e na dívida pública que para ele contribuem. A nuance no argumento é absolutamente substancial e caso se perca o foco na identificação da origem do problema, o risco de agravar a situação sobe exponencialmente.

 

Como vimos anteriormente, o défice da balança comercial é de natureza macroeconómica, função dos níveis de poupança e investimento na economia e, por isso, políticas públicas no âmbito do comércio internacional são ineficazes e apenas refletem uma visão mercantilista e estatista das relações voluntárias trans-fronteiriças.

Se algum ajustamento é necessário à economia, ele deve ser deixado à actuação do livre-mercado e não planeado centralmente. Os agentes certamente teriam outras taxas de poupança caso os desincentivos fiscais ao aforro fossem abolidos ou se abandonasse uma política de redistribuição penalizando quem mais riqueza produz. Um aumento da poupança nacional levaria automaticamente à redução do défice comercial e da necessidade de ir buscar tanto capital estrangeiro para o investimento doméstico, sem recorrer a políticas de comércio internacional que distorcem o mercado.

A obsessão com a balança comercial sem ter claro que apenas uma das suas componentes se traduz em dívida e que, desta, só a componente pública pode ter efeitos negativos sobre a generalidade dos contribuintes, incentiva os decisores políticos a tomarem medidas para reduzir o “desequilíbrio”. Esse voluntarismo provocará necessariamente alterações nos fluxos de capital, modificando os padrões de especialização das economias e prejudicando os consumidores, as empresas e os trabalhadores.

Caso se pretenda alterar o nível de poupança do país, a única intervenção pública saudável e eficaz será através da redução da despesa pública e, portanto, do défice orçamental do Estado. O que actualmente é necessário à economia é aumentar os graus de liberdade para estabelecer livremente trocas e transacções a nível internacional e, em particular, para importar.

A intervenção estatal de promoção das exportações e redução do défice da balança comercial tem como efeito a redução do influxo de capitais. Isso teria implicações na menor procura por títulos do Tesouro, aumentando o custo do Estado no seu próprio financiamento e repassando esse acréscimo à banca comercial, por exemplo no que ao custo do crédito à habitação diz respeito. Menor capacidade de poupança e investimento teriam os portugueses.

Claro que se pode argumentar que a capacidade do Estado se financiar nos mercados externos não é necessariamente boa para obrigar à redução da despesa pública. No entanto, não se pode negar que a procura internacional de títulos do Tesouro contribui para um ambiente económico e do sistema financeiro mais favorável ao crédito à economia privada realizar investimentos produtivos.

A dado momento, em teoria, os nossos credores internacionais poderiam no entanto avaliar como demasiado arriscada a insolvência da República e dar-se-ia início a um êxodo de capitais através da venda dos activos detidos por estrangeiros. O mesmo poderia acontecer com os investidores domésticos que certamente colocariam os seus capitais a salvo noutras geografias.

Mas esse cenário poderia dar-se quer com uma balança comercial positiva quer negativa. A confiança dos investidores conquista-se e assegura-se através de políticas orçamentais do Estado que contenham a despesa e diminuam a exposição ao risco e à eventual necessidade de vir a sobrecarregar ainda mais o contribuinte com impostos, retirando à economia privada a sua capacidade de poupança e investimento.

Sem o influxo de capital vindo do exterior, aproveitar-se-ia ainda menos todas as oportunidades de investimento que o país oferece e estaríamos limitados ao nível de poupança interna disponível, privando a economia nacional de melhoramentos na sua produtividade.

É por causa da relação do défice comercial com o nível de investimento na economia que o aumento do “desequilíbrio” da balança está tipicamente associado a uma melhoria das condições económicas do país.

 

Em jeito de conclusão afirmo novamente que os défices da balança comercial não são em si mesmo problemáticos nem insustentáveis. A balança corrente resulta fundamentalmente da mobilidade internacional de capital e das diferenças entre investimento e poupanças domésticas sendo a determinante destas de natureza macroeconómica.

O défice da balança comercial não gera necessariamente dívida. A solução para um nível de endividamento externo sustentável não virá do valor das exportações ser superior ao das importações.

Para reduzir a componente “tóxica” e insustentável do defice comercial, o Estado deverá reduzir significativamente o seu âmbito de actuação e restringir as dívidas incorridas em nome dos contribuintes.

A balança de pagamentos é, por definição, sempre equilibrada e de saldo nulo. A quantidade de euros que sai do país é exactamente igual à quantidade de euros que entra no país, ainda que por vias e classificações contabilísticas diversas.

Exportar mais do que importar é irrelevante pois não é o sector privado que absorve sôfregamente as nossas poupanças através de impostos. Precisamos é de reduzir substancialmente o Estado, ter superavits orçamentais e libertar meios para as empresas e os contribuintes usarem o capital disponível na criação de riqueza através suas próprias escolhas, de forma autónoma e livre.

Numa economia de mercado os agentes são responsabilizados individualmente pelas suas eventuais dívidas, excepto o Estado que faz impender sobre todos nós os seus desvarios.

 

*

 

6 comentários leave one →
  1. 12 Agosto, 2018 22:46

    “Procurarei demonstrar que estes receios são largamente infundados e baseados em diversas falácias e análises incompletas sobre como funciona a economia real”

    É essa a diferença entre um engenheiro computacional e um economista. O primeiro sabe que o seu programa “perfeito” escrito no papel, vai de certeza não só falhar no compilador, como mesmo depois crashar na execução. O segundo acredita mesmo que a sua invenção escrita no papel é perfeita.

    “Nothing can be more absurd than this whole doctrine of the balance trade”

    Bem, essa deve ser a mesma opinião filosófica de um antigo cliente que me deu um calote…

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  2. Procópio permalink
    12 Agosto, 2018 22:50

    “Precisamos é de reduzir substancialmente o Estado, ter superavits orçamentais e libertar meios para as empresas e os contribuintes usarem o capital disponível na criação de riqueza através suas próprias escolhas, de forma autónoma e livre”.
    Precisamos mas não vamos ter.
    A geringonça vai descer aos infernos. A UE que a sustenta oscila. Este grupo de oligarcas que a comandou desde o início está em crise.
    https://www.cfr.org/board-directors

    Entretanto os merdia vão difundindo A Grande Mentira da geringonça, sem oposição.
    A inspiração é de Joseph Goebbels, não duvidem.
    “Se contar uma mentira suficientemente grande e continuar repetindo, as pessoas acabarão acreditando. A mentira pode ser mantida apenas enquanto Estado possa controlar as consequências políticas, económicas e / ou militares da mentira. Desse modo torna-se de vital importância para o Estado usar todos os seus poderes para reprimir a dissidência, pois a verdade é o inimigo mortal da mentira, e, portanto, por dedução, a verdade é o maior inimigo do Estado. ”
    Até durante as entrevistas televisivas a supostos responsáveis pelos “sucessos” incluindo o padrinho sorridente percebemos a repressão em curso. Vai acentuar-se.
    A repressão é o único superavit em curso.

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    • 12 Agosto, 2018 23:17

      O procópio sabe que essa frase do Goebbels não foi dita como uma receita, mas antes como uma acusação, semelhante a que o proprio procópio faz. Num artigo escrito “Aus Churchills Lügenfabrik”(A fabrica de mentiras de Churchill).
      escreveu ele:
      “The essential English leadership secret does not depend on particular intelligence. Rather, it depends on a remarkably stupid thick-headedness. The English follow the principle that when one lies, one should lie big, and stick to it. They keep up their lies, even at the risk of looking ridiculous.”

      Mas como a história é escrita pelos vencedores …

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      • Sigmund Vienna permalink
        20 Agosto, 2018 15:45

        Ainda bem que, neste caso, os vencedores não foram outros.

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  3. Nulo permalink
    13 Agosto, 2018 01:01

    Prevê-se para breve a criação do ministério da verdade, o que vai simplificar sobremaneira todo este debate sobre interpretações e variantes. Não haverá, por inutilidade, mais debates e todos vocês vão poder concentrar-se em actividades realmente produtivas de interesse para o bem estar colectivo, de acordo com o superiormente definido nos orgãos que representam a vontade do Povo soberano.

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