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Melhor a emergência

18 Março, 2020

Aparentemente, parece do bom senso que se as medidas implementadas ou a implementar podem ser enquadradas nas leis já existentes, não seria desejável a instauração do Estado de Emergência. Também me parecia isso. Até ontem. Até ler o despacho do Administrador de Saúde de Ovar a decretar o encerramento de estabelecimentos comerciais e a limitação de movimentação dos cidadãos. Espera lá, uma autoridade administrativa pode fazer isto? [Nota: nada tenho contra a medida nas actuais circunstâncias, parece sensata, não abusiva, necessária e a ser implementada ali e noutros locais que a justifiquem. Mas não é esse o ponto que quero discutir, mas sim da sua legalidade e seus impactos futuros e duradouros].

Diz o Governo que a Lei da Protecção Civil existente e a Lei de Bases de Saúde, permitem decretar quarentena obrigatória, encerramento de estabelecimentos, limitação de circulação pessoas, encerramento de fronteiras, enfim, toda a panóplia de medidas que temos ouvido nos últimos dias, podendo ser implementadas consoante o próprio governo decrete estado de alerta ou de calamidade, local, regional ou nacional. Sucede que estamos falar de direitos básicos das pessoas: liberdade de circulação, liberdade de trabalho, liberdade de reunião, respeito pela propriedade privada, direito à greve, etc. etc. Ora, não parece que a lei por si mesma possa ser justificativo de tais limitações serem decididas por meras autoridades administrativas ou mesmo pelo próprio Governo. A nossa Constituição, felizmente, prevê precisamente que tais liberdades e direitos apenas possam ser limitadas ou mesmo suprimidas temporariamente em situações de Estado de Emergência o qual tem de ser proposto pelo Presidente e aprovado pela Assembleia da República. Que é o que me parece que deve ser feito e quiçá, já devia ter sido implementado há mais tempo. A declaração de Estado de Emergência tem de prever taxativamente os direitos a restringir, por quanto tempo e em que circunstâncias. É portanto a melhor forma de garantir as nossas liberdades, pois tais medidas não são atribuídas de forma permanente a entidades administrativas ou ao governo. Pelo contrário, a aceitar-se a vigência (contrária à Constituição) das medidas decorrentes das leis da protecção civil e de lei de saúde, é aceitar que tais medidas entrem na legislação corrente e permanente.

E se todos aceitamos, nas actuais circunstâncias as medidas restritivas, se até defendemos a sua implementação o quanto antes, se entendemos que não há abusos, nem desvios por parte das autoridades administrativas/governo, nada no entanto nos garante que ao aceitar-se a vigência dessas leis, elas no futuro não venham a ser aplicadas de forma distorcida ou abusiva. E como tal, deve-se evitar, hoje e agora, a sua aplicação, recorrendo-se antes ao Estado de Emergência que é fortuito, temporário e excepcional. Não deixa rasto.

Até porque precisamente há antecedentes negativos:  a legislação que permite a requisição civil e militar é pre-constitucional (é de um dos governos do camarada Vasco Gonçalves). Se antes de ser redigida a Constituição se justificaria que tal legislação existisse, já depois da CRP, a mesma viola taxativamente a Constituição por ser uma limitação muito grave aos direitos laborais, nomeadamente de greve, garantidos na CRP. E o que temos visto nos últimos 40 anos? Por motivos de lutas laborais, os governos recorrem a essa legislação para acabar com conflitos laborais. Tais requisições são aplicadas por meros motivos político/laborais sem relação com qualquer circunstância que a CRP preveja a aceitação de limitação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Não é de espantar que o Governo (e seria qualquer Governo), defenda que não precisa de Estado de Emergência, que tem o enquadramento legal necessário para agir neste momento. Precisamente porque pretende que tais leis sejam aceites como normais, como em determinadas circunstâncias (decididas e avaliadas apenas e só pelo Governo) se podem aplicar. Agora não haverá qualquer contestação para a sua aplicação, mas ficaria aberta a porta para vierem a ser aplicadas em circunstâncias muito diferentes. É um poder que não se deve dar ao Estado, a abertura permanente para a restrição dos direitos dos cidadãos. A existir limitação, que seja sempre apenas pela via excepcional, limitada, temporária, autorizada pelo parlamento, do Estado de Emergência.

6 comentários leave one →
  1. Procópio permalink
    18 Março, 2020 15:18

    Há quem tenha saudades das medidas congeminadas pelo camarada vasco, assim como há cada vez mais desmiolados à solta. Já não cabem nos manicómios.
    Há que pense em ensaios para situações futuras.
    Entretanto na China já quase toda a gente voltou ao trabalho.

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  2. 18 Março, 2020 15:25

    Concordo.Penso que na Madeira também já se ultrapassou a legalidade. Nem as autonomias Espanholas independentistas do País Basco e Catalunha foram tão longe.Face ao exposto, é inevitável o estado de emergência para cobrir estas coisas.

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  3. JCA permalink
    18 Março, 2020 15:46

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    Leio sempre com respeito as suas opiniões que suponho pessoais.
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    Em circunstancias normais OK. Mas estamos em circunstancias excepcionais especiais que mudam minuto a minuto. Adito:
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    os autarcas e os delegados de saude locais são mentecaptos ou incompetentes na defesa das suas populações ?
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    O medo burocratico da regionalização ou da perca do centralismo e o reativo recuo para estado de emergência não fazem sentido pratico ou operacional no momento especial e unico que estamos a viver, ninguém aceita
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    surge fazer sentido as autoridaes centrais burocratiicas de Lisboa adaptarem-se ao movimento imediato de defesa das populações locais, e é perfeitamente possivel.
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    Penso eu de que.
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  4. Luís Lavoura permalink
    18 Março, 2020 15:59

    Excelente post do Gabriel Silva. Aplauso!!!

    Aliás, tudo nesta crise se configura para uma supressão de direitos. Por exemplo, o teletrabalho – agora é considerado admissível que os patrões mandem as pessoas trabalhar em casa, como se as pessoas fossem supostas pagarem do seu bolso um espaço para trabalharem, os seus instrumentos de trabalho, e os seus consumíveis de trabalho. No futuro, ficará aberta a porta para que algumas empresas passem a funcionar somente dessa forma – com os trabalhadores a pagarem do seu bolso tudo aquilo que anteriormente era da responsabilidade da empresa. E nã vejo um sindicato a denunciar esta situação!

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  5. 18 Março, 2020 19:31

    Com um bocado de sorte, ainda hei-de ver a vossa casa a arder, e os bombeiros reunidos em plenário para decidirem se fazem greve ou não ! Tudo legal, o plenário foi convocado com todos os formalismos de acordo com a lei !
    Serviços mínimos ? Sim, devem dar para salvar a porta de entrada, mas só depois de terminar o plenário !

    Vão mas é dar banho ao cão …

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  6. Ana Vasconcelos permalink
    20 Março, 2020 10:35

    Em cheio. A limitação dos direitos liberdades e garantias deve ser sempre excepcional e a decisão da sua instauração exigir sempre a decisão afirmativa de todos os órgãos de soberania. O perigo é um governo ao abrigo de uma qualquer lei poder, a qualquer momento, limitar os direitos liberdades e garantias.

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