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Iniciativa Liberal, Krauss e a mulher de César

23 Agosto, 2018
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Num congresso do PSD de 1995, Luis Filipe Menezes utilizou o epíteto liberal como uma forma de ofender as elites do PSD. A ofensa foi tomada a peito. Liberal era um insulto na classe política portuguesa, apenas uns pontinhos abaixo de fascista. Oito anos depois, Durão Barroso orgulhava-se de que no seu governo apoiado por PSD e CDS não havia um único liberal. Nesta altura já começavam a crescer algumas raízes do movimento liberal na blogosfera, maioritariamente em blogs com algumas dezenas de visitantes diários. No ano seguinte viria a fundar-se o Blasfémias e um ano depois o Insurgente. A partir das margens da internet, a blogosfera liberal foi convencendo e convertendo muitas pessoas com visões ideológicas diferentes, por vezes bastante distantes. Quando a crise financeira veio dar razão a muitas das previsões dos liberais em relação à sustentabilidade do estado social, muitos liberais resolveram sair do armário. Em 10 anos, ser liberal passou de insulto a, dentro de alguns círculos, algo apetecível.

O problema da blogosfera e dos jornais é que funcionam em circuito fechado. Tirando um ou outro vazamento via Facebook, o mercado das ideias dentro deste circuito é sempre limitado. O próximo passo era então evidente: a formação de um partido político. Eu disse-o por aqui há alguns anos: a emergência de partidos de matriz liberal era não só desejável (algo que aceito que seja discutível), como inevitável (algo que torna a discussão anterior desnecessária). Era aliás, o maior indicador de sucesso do liberalismo no mercado das ideias e uma forma de chegar mais longe nesse mercado. O facto de um desses partidos surgir na cabeça de alguém que está no sistema partidário há 40 anos, conhece melhor do que ninguém as tendências políticas, é também um forte indicador de sucesso do liberalismo no mercado das ideias.

Neste momento tudo indica que venha a haver 3 partidos de matriz liberal nas urnas nas próximas eleições. Nenhum deles é perfeito, mas o ponto de comparação deverá ser sempre as alternativas socialistas a que estávamos habituados. O partido de Santana Lopes será sempre o Partido de Santana Lopes e é por aí que conseguirá votos. Já a soma dos votos da Iniciativa Liberal com a Democracia21 será o indicador mais forte da penetração e simpatia dos portugueses pelo liberalismo. Inevitavelmente, há muito quem deseje que essa soma seja o mais baixa possível: socialistas de esquerda, por motivos óbvios; socialistas de direita que lutam contra alas liberais dentro dos próprios partidos e que não querem que transpareça a existêndia de um eleitorado liberal; e mesmo liberais que apreciam o seu estatuto de culto minoritário.

Infelizmente, o primeiro e mais consolidado desses dois partidos, a Iniciativa Liberal, tem um problema de origem que emerge periodicamente e será sempre um limite ao seu crescimento: um dos fundadores, e actual vice-presidente, tinha ligações recentes ao PS e a António Costa, e antes já tinha sido assessor de Sócrates. Mais ainda, justificava o seu apoio a Costa pelo cansaço em relação a um “governo neoliberal” de Passos. Como se não bastasse, a própria página da Iniciativa Liberal acabou por ser construída sob uma antiga página de apoio à candidatura de António Costa.

É evidente que uma pessoa pode mudar de opinião e evoluir. Até de forma bastante rápida como pude presenciar nos primeiros tempos de blogosfera liberal. É também possível que pessoas com tendência liberais simpatizassem com António Costa em 2014 (por exemplo, João Miguel Tavares, um liberal assumido, afirmou muitas vezes a sua disponibilidade para votar em António Costa). Aceito também que numa decisão irreflectida tenha sido difícil resistir à tentação de usar uma página já com milhares de seguidores para dar um empurrão inicial a um partido que começava do zero. Mas é inevitável, e até expectável, que nem todos tenham este tipo de tolerância. Inevitavelmente, todos aqueles que já não simpatizavam, pelos motivos acima, com a Iniciativa Liberal, encontram aqui a racionalização perfeita para o seu desdém. Muitos dos que poderiam simpatizar, não chegarão a fazê-lo ou inverterão o caminho. Alexandre Krauss pode estar inocente e ser genuinamente liberal, mas neste momento apenas prejudica a causa que diz ser sua. Se for mesmo sua, certamente permitirá que o partido continue sem o peso da sua presença.

Eu conheço bastantes pessoas na Iniciativa Liberal e D21 (maioritariamente de interacções nas redes sociais, mas algumas pessoalmente) e sei que em grande parte têm o coração e a razão no sítio certo. Não consigo, nem nunca conseguirei perceber o ódio que emanam alguns à direita relação a essas pessoas, como é que lhes podem dedicar o mesmo tratamento que dão a um Tiago Barbosa Ribeiro, um João Galamba ou uma Mariana Mortágua. A vantagem dos partidos novos é a certeza de que ninguém lá está de forma oportunista, ninguém se envolve à espera de tachos (tirando, eventualmente, meia dúzia de burros que não sabem fazer contas). Eu sei que o Bernardo, o João, o Bernardo, o Cristiano, o Rodrigo, o Francisco, o Miguel, a Sofia e o Francisco, pese embora as discordâncias comigo e entre si, e os infelizes mas inevitáveis jogos políticos, estão nisto de boa fé. Muito provavelmente, terão o meu voto nas legislativas. Mas para terem mais do que o meu, terão que prestar atenção às lições da mulher de César.

18 comentários leave one →
  1. Cristóvão permalink
    23 Agosto, 2018 11:11

    Vou indicar algumas das bases do meu desdém pela Iniciativa Liberal (para além da referida questão PS/Costa). Ou pelo menos o meu desdém pelas ‘opções de marketing’ que escolhem:

    defesa e promoção de políticas identitárias;
    fingir que certas questões se tratam de liberalismo ou ausência do mesmo (i.e: aborto);
    apoio a uns Estados Unidos da Europa;
    apoio à UE tal como ela existe;
    prepotência em relação ao liberalismo que defendem (ver controvérsia com o Aliança do PSL);

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  2. Mario Figueiredo permalink
    23 Agosto, 2018 11:18

    “Quando a crise financeira veio dar razão a muitas das previsões dos liberais em relação à sustentabilidade do estado social, muitos liberais resolveram sair do armário.”

    O problema é que com os liberais clássicos, saíram também do armário outros tipos de liberais…

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  3. Mario Figueiredo permalink
    23 Agosto, 2018 11:29

    “Eu disse-o por aqui há alguns anos: a emergência de partidos de matriz liberal era não só desejável (algo que aceito que seja discutível), como inevitável (algo que torna a discussão anterior desnecessária).”

    Sempre defendi a existência de tais partidos. E votaria neles a cada eleição. Mas nem o IL nem o Democracia21 são partidos de matriz liberal. São, isso sim, partidos liberais. E aí é onde eu tenho problemas com esses partidos. Curiosamente, o circense Santana Lopes acabou por aparentemente ter criado, esse sim, o primeiro verdadeiro partido de matriz liberal em Portugal. A ver vamos se é verdade…

    Em relação ao IL e Democracia21, usam o Liberalismo como bandeira ideológica, atravessando o espaço político para precisamente o tipo de liberalismo social que é dominado pela extrema esquerda e pelo politicamente correcto do centralismo identitário. Se o CGP não percebe “o ódio que emanam alguns à direita em relação a estas pessoas”, então tem andado distraído ou recusasse a ver.

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    • CGP permalink
      23 Agosto, 2018 11:43

      Mário, quanto ao chamado “liberalismo de costumes” já dei aqui a minha opinião, que resumo aqui:

      1) A maioria das mudanças já ocorreram. O que vem a seguir já é rejeitado por muitos “liberais nos costumes” (quotas e afins). O que já ocorreu, nem os conservadores hoje se atravessam a pedir que invertam (quem votou contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo nunca mais propôs a sua inversão).

      Nada do que se alterou nos últimos 15 anos teve um impacto significativo na sociedade. Tudo o que teve impacto aconteceu nos 30 anos anteriores e nenhum conservador colocou, nem coloca, isso em causa.
      Eu tenho muitas dúvidas em relação ao aborto. Acho muito provável que venha a ser considerada uma prática grotesca daqui a 100 anos e que venhámos todos a ser julgados pela história por a permitirmos. No entanto, parece-me que no actual ambiente cultural a sua defesa é merecedora de alguma tolerância.
      Estes assuntos têm uma importância residual na política partidária. Evidência disso é a forma como acontecem em paralelo em todos os países ocidentais, independentemente de terem mais governos de esquerda ou de direita.

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      • Cristóvão permalink
        23 Agosto, 2018 12:10

        Casamento para pessoas do mesmo sexo.

        Ora aí está um bom exemplo. Em vez de defenderem que o Estado não deve casar ninguém, defendem mais envolvimento do Estado no casamento, expandindo (e/ou desvirtuando) o seu conceito e propósito em nome de uma alegada ‘igualdade’. Dizem que defendem menos Estado, excepto quando é para promover políticas identitárias.

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      • CGP permalink
        23 Agosto, 2018 12:40

        (boring)

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      • Mario Figueiredo permalink
        23 Agosto, 2018 13:20

        A posição do CGP não é a posição desses partidos. Porque defende a sua existência e nos termos em que eles se apresentam, está para lá do meu alcance e nunca consegui perceber a partir dos seus textos. Se é porque defende alguma coisa a todo o custo, não é a forma como eu pessoalmente gosto de ver as coisas a ser feitas. Alguma coisa a todo o custo, resultou na merda da 3ª República que temos.

        Entretanto. teria também muito para dizer sobre esse parágrafo marcado com 1). Mas aí as nossas divergências são de ainda maiores. Concordo, isso sim, que nem todas as mudanças de teor liberal-social são ou foram negativas. Mas daí até achar que não existiram mudanças significativas nos últimos 30 anos que estão hoje a ser colocadas em causa, ou que muitas das mudanças actualmente em curso não são potencialmente ruinosas para a nossa sociedade vai uma grande diferença. Ainda para mais se tomarmos em consideração os perigos do maniqueísmo gradualista que referi no último post do Rui A.

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  4. 23 Agosto, 2018 11:37

    Para que possam ter o teu voto nas próximas eleições e para que este não seja nulo, esses partidos terão que se unir.

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  5. 23 Agosto, 2018 14:31

    Sou eleitor essencialmente de branco/nulo, ou de mal menor quando a situação o requer em absoluto (e.x. votei PPC contra Sócrates).

    Tenho seguido com algum interesse o IL. Acho algumas das tomadas de posição corajosas e ambiciosas, sobretudo no plano da redução do estado e na primazia do indivíduo sobre aquele.

    No entanto, a insistência com que vêm a público com iniciativas pro-homossexualidade e pro-morte (eutanásia / aborto) é para mim incompressível — sobretudo pelo que disse o próprio CGP: a maior parte dessas mudanças sociais já ocorreram e estão plasmadas na lei, e nem as alas conservadoras dos partidos parlamentares se atrevem a questioná-las. Portanto, qual a eficácia de abanar essas bandeiras? Que se seja a favor do casamento entre homosexuais, respeito. Que se faça disse uma das bandeiras políticas mais visíveis do IL (e.x. participar em marchas gay), aí tenho muitas dúvidas. Racionalmente só compreendo essa estratégia na óptica de não alienar os millenials liberais nos costumes. Mas tem como efeito contrário alienar quase instantaneamente os liberais económicos que são conservadores nos costumes.

    Em suma, acho que a posição mais elegante e coerente (mas também bastante radical), em matéria de casamento, seria dizer que os casamentos devem ser contratos individuais, sendo que o estado não interfere. Quem quiser celebra esse contrato na igreja, quem quiser fá-lo no notário, sob um texto acordado. E assim, pode haver contratos hetero, homo ou poli…

    Também me tem desagradado no IL a espanhofilia, e o posicionamento radicalmente anti-Catalão (uma causa essencialmente liberal!!!).

    Finalmente, gostaria de ver o IL defender um Europeísmo mais “civilizacional” do que extritamente político, se é que me faço entender…

    Bem sei que nenhum partido pode agradar a todos. E que ninguém se pode sentir representado a 100% por nenhum partido (excepto aqueles que estão na politica para o tacho, obviamente). Mas estou disposto, como digo acima, a votar em males menores, e mais ainda em bens menores. Tenho pena é que o IL já apresente, na minha óptica, tantas máculas.

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    • Cristóvão permalink
      23 Agosto, 2018 15:42

      Nem mais!

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    • Sérgio Loureiro permalink
      24 Agosto, 2018 19:19

      FBS, faço parte da IL e gostei do teu comentário. Levantas questões que nos devem fazer pensar. E posso garantir que a IL é pluralista nas suas posições. Somos suficientemente novos (como organização) para aceitar muitas outras formas de resolver as questões que enfrentamos como sociedade, à medida que formos crescendo. Somos práticos e realistas. Uma das coisas que me fez aderir à IL foi exatamente a capacidade assumida desde sempre de ter muitas correntes representadas. E a grande resistência que sinto vem de fora em relação à IL, mais que em separação direita-esquerda, nos purismos ideológicos dos liberalismos diversos. Na IL aceitamos todos os liberais. A única exceção – mas nisso serão sempre eles os primeiros a recusar entrar – serão talvez os ancaps, que são o Jeremias o Fora-da-lei do liberalismo. Eu pessoalmente respeito a visão que eles têm, apenas não consigo imaginar como seria uma sociedade em que os princípios deles fossem postos em prática. Mas dava-lhes as Berlengas para experimentarem.

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    • Luis Lavoura permalink
      3 Setembro, 2018 15:29

      a maior parte dessas mudanças sociais já ocorreram e estão plasmadas na lei

      O suicídio assistido não está plasmado na lei, pelo contrário, ainda há pouco tempo foi claramente rejeitado. Tem portanto perfeito cabimento um partido político declarar qual é a sua posição relativamente a ele. Trata-se de uma questão claramente e totalmente em aberto!

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    • Luis Lavoura permalink
      3 Setembro, 2018 15:32

      dizer que os casamentos devem ser contratos individuais, sendo que o estado não interfere

      Essa é uma posição totalmente tola e irrealista. Todos os Estados têm regras e leis relativamente aos casamentos e ao seu (não) reconhecimento.

      Ademais, a generalidade dos “contratos individuais” também têm regras. O Estado somente reconhece alguns contratos individuais, outros não.

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    • Luis Lavoura permalink
      3 Setembro, 2018 15:34

      Também me tem desagradado no IL a espanhofilia, e o posicionamento radicalmente anti-Catalão

      Não sei em que é que a Iniciativa Liberal é anti-catalã. Nunca vi tal posicionamento nela. O que a IL tem é relações de amizade com um partido espanhol que é anti-catalão. Mas tem-no devido a considerar que esse partido é liberal, não por esse partido ser anti-catalão.

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  6. Andre Miguel permalink
    23 Agosto, 2018 14:40

    Parafraseando CGP: (boring)

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  7. Luis Lavoura permalink
    3 Setembro, 2018 15:26

    O facto de um desses partidos surgir na cabeça de alguém que está no sistema partidário há 40 anos

    Santana Lopes não tem em vista um partido liberal. Ele tem em vista chegar ao poder. Só fala em liberalismo da boca para fora. Não acredito minimamente que o partido de Santana Lopes possa ser descrito como um partido liberal.

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