Nove meses de Inverno e três de Inferno
Neste período de planeamento e implementação da desgraça que se avizinha evitaria recomendar fosse o que fosse que implicasse gastar algum dinheiro, a começar por livros que são sistematicamente publicados e que se arrogam a capacidade de identificar problemas e de oferecer curas miraculosas que o são na mera condição esotérica de se saber nunca serem implementadas. Estes, que pertencem exactamente à categoria inversa dos livros de auto-ajuda — são a categoria de auto-flagelação —, normalmente são designados pelas irónicas categorias de política e economia e são escritos para habitantes das grandes cidades que, não sendo leitores da Caras, disfarçam o culto da personalidade através da dedicação ao proclamado intelecto do escritor. Como dizem os populares, “de boas intenções está o inferno cheio”.
No caso concreto, e porque se trata do oposto de promessas de um mundo melhor quando todos sabemos que nada caminha nesse sentido, recomendo efusivamente o livro “Nove meses de Inverno e três de inferno” do João Pedro Marnoto. Há poucos assim, a ilustrarem sem pontificarem; a documentarem sem julgarem. Acompanhado de um filme maravilhoso com o mesmo título, esta obra não nos apresenta promessas e sim um mundo que os fazedores de promessas teimam em insistir que já não existe. Contudo, existe e é mais real do que qualquer outro que nos tentam vender. Não existe apenas em Portugal, existe em Espanha e existe na Dinamarca e existe na Alemanha e existe na Irlanda. É diferente em cada um desses países, assim como é diferente a realidade do Douro e Trás-os-Montes retratada no filme da realidade do Algarve que também existe para lá da hotelaria. E porque é importante ver essa realidade? Pela imensa sabedoria da ruralidade, por uma visão idílica e urbana da bonomia iletrada das gentes simples? Pela superioridade comparativa de uma vida campestre, pastoral, transformadora do urbano num poeta naturalista que enaltece o que pode testemunhar com óculos cor-de-rosa num fim-de-semana em turismo rural? Não. É importante porque mostra o oposto: que há um mundo fora de Lisboa e Porto que não só não se compadece dos planos grandiosos que na urbe se tecem para a gestão territorial como o motivo pelo qual ignoram as larachas urbanas é por estas serem ruído de fundo, tão apaziguadores por indiferentes como o som do Preço Certo às refeições.
No filme podemos ver a vida a continuar enquanto um cão tosse, um galo cacareja, um apresentador de concursos graceja, um apresentador de notícias doutrina e um político arredonda discurso até o desprover de qualquer significado passível de interpretação além do som de sílabas desconexas, como qualquer outro som da terra. Se o leitor tem filhos em idade escolar, mostre-lhes o filme. São eles quem precisam entender o país, não este, não o de Lisboa, não o do Alentejo, mas todo o país, o que vê e o que não sabe o que é Netflix, porque são eles quem o poderão governar no futuro, isto se entretanto nós, os adultos, não o destruirmos. Os meus já viram e cá em casa só podemos agradecer ao João Pedro pelo privilégio.
O livro e o filme estão disponíveis em www.9inverno3inferno.com. Para conhecer mais trabalho do João Pedro Marnoto visite mediautopia.net.
Eu também AJUDO… Grátis!
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Excelente escolha. Sou transmontano, conheço está realidade, vivo está realidade, que nada tem que ver com a imagem bucólica criada num qualquer bar do Bairro Alto frequentado pela elite / bolha pensante. E depois do filme recomendo Pessoa: O provincianismo Português. Obrigatório ler para desconstruir alguns mitos instalados.
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