Uma valente confusão sem grande interesse que nem me apeteceu estruturar
Das Bedenklichste in unserer bedenklichen Zeit ist, dass wir noch nicht denken1.
— Martin Heidegger (1889–1976)
Os blogs estão mortos, tal como está Deus. Não há nada inerentemente mau neste princípio, só dele decorre o terror da responsabilidade individual. Durante a massa da história registada, Deus serviu o propósito de enquadramento das acções humanas. O Bem e o Mal, portanto, mesmo quando a divisória que os acantona acaba escondida pela espuma das marés dos tempos. Deus morreu quando deixou de exercer influência na definição do certo e do errado — independentemente das pessoas com fé que aderem a diferentes igrejas, é nas sociedades seculares que encontram a bússola comportamental do seu Bem e Mal. Em suma, os comportamentos são moldados por medo de condenação a pena de prisão e não por condenação à danação eterna.
Os blogs, durante algum tempo, criaram um “nós”, uma sensação de comunidade, mas essa comunidade só foi possível de sustentar através do princípio da materialização. Não há rede social ou qualquer outro formato digital que permita a manutenção de comunidade através da separação física que um ecrã proporciona. Sem a corporização das pessoas no mesmo espaço físico, enquanto pode subsistir alguma forma de comunicação, perde-se a comunidade. Os blogs morreram quando deixamos de fazer jantares. É mesmo tão simples como isso.
Comunicamos com palavras, uma ferramenta da oralidade. Diferentes línguas têm diferentes ritmos, diferentes sons, gerando diferentes musicalidades auditivas. Não existe uma relação unívoca entre uma língua e outra. Não admira que se discuta animada e apaixonadamente sobre qual das traduções de Dostoevsky melhor consegue a aproximação ao texto original.
Quando digo que os blogs estão mortos, não me refiro necessariamente ao que entendemos por blog e sim, de uma forma abrangente, a qualquer das ferramentas digitais de expressão escrita ou audiovisual à distância. Inclui tudo, seja Twitter, Facebook ou qualquer outra coisa. Isto porque não há materialização corpórea dos intervenientes. Sem as pessoas se conhecerem, sem estarem na presença uns dos outros, a comunicação torna-se fraccionada, parcial, um aglomerado de palavras sem emissão directa do ser que as profere. Uma abstracção.
Não foi por passarem a existir versões impressas acessíveis da Bíblia que se dispensou o sermão. Não é por passar a eucaristia dominical na televisão que se pode dispensar a missa presencial. “A mensagem é o meio” (McLuhan), logo a mensagem da eucaristia é a própria comunidade que se agrega na igreja. O conteúdo é o próprio evento.
No mundo digital não há eventos. Nem sequer há artigos de jornal: a mensagem é o ecrã. Artigos de jornal existiam quando a mensagem era o papel, o acto de o dobrar e de o transportar debaixo do braço, um acessório de identificação do indivíduo.
(Em The White Lotus, uma mini-série HBO, a certa altura as duas adolescentes que se apresentam como existindo sem porém viverem – uma contradição muito milenial – ironizam com o bronco sobre terem um consultor de moda para os livros que devem usar na berma da piscina).
Por isso, agora somos todos existencialistas em declarada má fé. O inferno são as outras pessoas. A democracia nem sequer existe além de um artifício ficcional (quem elegeu a Ursula von der Leyen?). Somos governados por ecrãs, por figuras ausentes, desconhecidas, que estabeleceram uma comunidade real, presencial, estabelecida por apatia da des-comunidade global, mas que se encontram fisicamente para delinear o Bem e o Mal e a consequente salvação ou danação dos súbitos, obrigados a aceitar os preceitos burocrato-divinos estabelecidos. A alternativa do inferno deixou de ser uma perspectiva tão negra como antes era.
Podemos simular uma discussão acerca dos BMW da TAP, mas tal seria irrelevante. Seriam bits e bytes dignos da Les Assassins des Fauteuils Rollents2 que comporiam parte do “the Entertainment” (Infinite Jest, David Foster Wallace) e que apenas serviriam para perpetuar a má fé de Sartre, a nossa incapacidade de assumir responsabilidade pela decisão individual de optar pelo entretenimento light perante quer a ameaça de fome extrema imposta pela neo-religião de combate ao carbono, quer a ameaça de de devastação nuclear.
Assim, perante o Geworfenheit3 (Heidegger) que o mundo me apresenta, escapando a viver em má fé, resta-me assumir a responsabilidade pelas minhas acções, sendo que estas poderão ser melhor descritas pelo filosofo americano Paul Simon:
Hello darkness, my old friend
I’ve come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains
Within the sound of silence
1 Tradução mais ou menos aceitável: o maior pensamento crítico neste tempo crítico que vivemos é que nós não pensamos.
2 Seria algo como “os assassinos das cadeiras de rodas”, mas o uso de rollent em vez de roulant intui para um trocadilho com “laissez les bon temps roulez” ou “deixar os bons tempos rolarem”.
3 Conceito usado por Heidegger para descrever a condição humana de ser “atirado para o mundo”, ou seja, de não existir escolha humana para o local ou a família em que um indivíduo nasce.
4Olá escuridão, minha velha amiga / Encontramo-nos novamente / Por uma visão lentamente introduzida / Deixar semente enquanto dormia / E essa visão plantada na minha mente / Subsiste / Por entre o som do silêncio.
Excelente.
«Os blogs estão mortos, tal como está Deus»
Sim, Deus era apresentado e ensinado nos altares das igrejas
do nosso mundo e em casa pelos familiares.
Com os altares dos templos, templos em via de desertificação,
substituídos pelos ecrans das TV,
o homem na sua liberdade total, cheia ou vazia?
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Agora, como diz Carl Sagan, há “Um Mundo Infestado de Demónios”.
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Porra, pá!
Há muito tempo que não lia algo tão inteligentemente escrito.
B R A V O !!!!!!
Quando é o próximo jantar?
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Quando as SFD & Bilionários se deram conta da maravilha que é a WWW para manter a MANADA BOÇAL mansa e ainda mais ineficaz do que já era… Assim e seguindo a tradição!
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Perfeito…

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Legenda: “- F*ck the EU!”
(chamada hackeada entre Victoria Nuland e o embaixador Pyatt)
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Maioria da MANADA europeia nem sequer sabe disso…
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Famosa mas que ninguém sabe ou raramente se lembra! São os nossos ALIADOS americanos…
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Como diria o senhor de “la palisse”
Isto é o fim da picada, tal como a “narrativa” dos últimos dois xuxas, ambos e dois a justificarem os “amigos” do papel e dos bmw,s
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Do texto todo fiquei-me por estas duas frases : «…Não foi por passarem a existir versões impressas acessíveis da Bíblia que se dispensou o sermão. Não é por passar a eucaristia dominical na televisão que se pode dispensar a missa presencial.(…)». Tudo o resto faz jus ao título: “Uma valente confusão sem grande interesse que nem me apeteceu estruturar”.
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A tradução correta da frase alemã é:
O mais preocupante neste nosso tempo preocupante é que nós ainda não pensamos.
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Para quem nao conhece…
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