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Descansemos em paz

17 Janeiro, 2022

Durante alguns anos a partir de meados dos 90, naquela que foi a época dourada da geração que chegou aos anos 80 no pico do cavaquismo — enquanto noutros países lá chegaram aos anos 80 como consta no calendário — a malta manteve uma presença na internet através de escritos em blogues. Na altura, a tecnologia estava a favor da proliferação de opiniões, com todo o tipo de pessoas a publicarem registos das suas deambulações, pensamentos, receitas culinárias e fotos gamadas a outros que expressavam o tão habitual “hoje sinto-me assim”.

Depois vieram as redes sociais. Alguns migraram em exclusividade para estas, outros mantiveram uma presença dual, outros ainda ficaram pelo espaço não-imediato e contemplativo de textos ponderados, publicados em plataformas pouco dadas a vícios de dopamina com os seus thumbs up, ha-has ou sad faces. A cacofonia da igualdade, o pensamento comum, a troca do “ser interessante” pelo “ser popular”. Dão jeito: fazem com que sintamos pertencer a uma comunidade de outras pessoas que julgam pertencer a uma comunidade. Não satisfaz, mas mata a fome.

Escrevo isto enquanto descubro a faixa “The Loneliness” do álbum HitchHiker de Crystal Bowersox, e enquanto ela canta “I’m tired”, lembro-me de ter vaticinado há muito tempo que os jornais e partidos (passe a redundância) iriam destruir os blogues, colocando-nos a partilhar ligeiros comentários às suas notícias, passando os articulistas a meros DJ das más canções dos outros. No fundo, se nada temos a dizer — e creio que bem no fundo até não temos —, só poderíamos encontrar refúgio na política.

Alguns subsistem, a falar para os outros que subsistem, mas não vamos daí concluir que a coisa está viva. Não está: está morta, enterrada e em decomposição avançada. As colunas de opinião, salvo raríssimas excepções, estão no mesmo ponto de decomposição, só parecem um bocado mais conservadas à conta de um passado em que o que se escrevia era interpretado — frequentemente mal — pelos outros, os anónimos. A “sociedade civil” não existe, sendo esta apenas uma designação para os que ainda não estão “na política”, ou, em concreto, nos partidos. E como há poucos partidos (há muitos, mas a maioria é pastiche ou farsa dos outros), tudo fede, tudo apodrece devagarinho. Nunca fomos tão iguais.

Cá há o PS, o maior partido nacional, e há o PCP, um partido a sério. Para além destes, há uma miríade de pantomineiros (sem ofensa) à procura de um lugar ao sol. Ainda há o PSD, porque se há um PS tem que haver um PSD, mas é o lado B do mesmo disco, a versão instrumental de uma canção que nem por desprovida do mau poema passa a prestar. Mesmo assim, perde-se tempo a determinar quem arrasa quem, invariavelmente numa visão do mundo que o equipara ao vão de escada das bisbilhoteiras. É entediante: não é uma saída, é uma prisão.

Também não há artistas, nem há poetas, nem há pintores. Se há, são do PS, ou do seu clube infantil — o Bloco — ou jazem bêbados na berma da estrada. Há gente muito boa, muito capaz, muito interessante, mas ou tentam passar pelos pingos da chuva de um país capturado por pertença clubística ao partido, ou permanecem perfeitamente enclausurados no mundo que criaram para eles próprios, longe disto tudo, talvez a plantarem cenouras enquanto a TV fala de penas perpétuas, certificados de participação em experiências eugénicas e da pestilência da Europa, dos Macron, dos Boris, da massa de queques filhos de outros queques e cuja noção de classe é de que eles a têm e os outros não.

Por tudo isto, e por mais que me abstenho de explicar, a blogosfera morreu quando morreu a cultura nacional. Quem diz nacional diz europeia e norte-americana. Cultura não são os livros, a arte ou a música: é aquilo que todos conhecemos, vivemos e sentimos, aquilo que apenas alguns conseguem expressar através de um meio, seja musical, seja pictórico, seja com letras numa página. Em Portugal restam partidos a disputarem migalhas, portanto, se restasse cultura seria a da propaganda. Que é o que agora “a ciência” é, aqui e em qualquer lado. Tal como são os “racismos”, os “ambientalismos”, os “higenismos”, as tretas de género e toda a fraude intelectual dos solitários que importam taras de bandas ainda mais culturalmente delapidadas.

Deus nos ajude, porque mais ninguém nos poderá ajudar. Por isso, ergamos o cálice destas lágrimas e brademos aos céus: a blogosfera morreu, a cultura morreu, a Europa morreu, o país morreu, os adolescentes só comunicam a abanar mamas no Tik Tok por incentivo das escolas pelas regras do “novo coronavírus”, viva então Portugal! Não deixa saudades.

9 comentários leave one →
  1. Andre Miguel permalink
    17 Janeiro, 2022 19:32

    Excelente e demolidor. Grande texto

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  2. André Silva permalink
    17 Janeiro, 2022 21:40

    Doloroso de tão arrasadoramente certo.

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  3. Weltenbummler permalink
    18 Janeiro, 2022 09:03

    quer continuar cada vez mais pobre?
    VOTE PS, CDU, BE, PAN , LIVRE

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  4. lucklucky permalink
    18 Janeiro, 2022 16:50

    As coisas podem sempre ficar piores…

    The state of California has agreed to remove an “Aztec chant” from its ethnic studies curriculum following a legal settlement with several plaintiffs

    The new curriculum would have had students praying to the Aztec dieties Tezkatlipoka, Quetzalcoatl, Huizilopochtli and Xipe Totec.

    Part of the chant read “Xipe Totek, Xipe Totek, transformation, liberation, education, emancipation. imagination revitalization, liberation, transformation, decolonization, liberation, education, emancipation, changin’ our situation in this human transformation.”

    The co-chair of the California Ethnic Studies Model Curriculum, Tolteka Cuauhtin (left), had said the chants were to “regenerate indigenous spiritual traditions” as Christians had committed “theocide” to “oppress marginalized groups.”

    The Thomas More Society filed a lawsuit in September challenging the chants on behalf of Californians for Equal Rights Foundation and three parents. Special Counsel Paul Jonna said “The Aztecs regularly performed gruesome and horrific acts for the sole purpose of pacifying and appeasing the very beings that the prayers from the curriculum invoke.”

    Jonna added “Any form of prayer and glorification of these bloodthirsty beings in whose name horrible atrocities were performed is repulsive to any reasonably informed observer.” He also noted the California and U.S. constitutions “prohibit prayer in public schools – particularly prayers drafted by public officials.”

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    • Francisco Miguel Colaço permalink
      21 Janeiro, 2022 20:47

      Os Astecas californianos que se manifestem.

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  5. LTR permalink
    19 Janeiro, 2022 00:05

    Estou lixado da minha vida. Vejo mal, não domino o telefone, não sei o que é o Tik Tok, não uso o Facebook, a duração dos debates sobre o futuro do país parece-me muito mais curta do que as diárias da bola e dos relatos do jogador do ténis que mentiu aos australianos, cheira-me a fossa, tenho delírios com uma série em que um elefante socrático no meio da sala fala um dialecto que não aprendi na escola, e tenho saudades do ZX Spectrum e do Cavaco.

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    • Manuel permalink
      27 Janeiro, 2022 17:33

      Há emuladores de spectrum online com os jogos quase todos, um mimo.
      Quanto ao Cavaco, tem saudades exactamente do quê? Da simpatia, ou do que hoje se chama “socialismo”?

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  6. pattygoncalvessilva permalink
    20 Janeiro, 2022 08:38

    Sim. Tem razão.
    A cultura em Portugal já não existe.
    Tudo isto é triste, tudo isto é fado…
    RIP

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